Um mês chegou para Romain Puertólas escrever a história que está a dar a volta ao mundo e a vender às centenas de milhares. Só em França vendeu 300.000 livros. A incrível viagem do faquir que ficou fechado num armário IKEA, publicado em Portugal pela Porto Editora, é a estreia do escritor francês de apelido espanhol e já tem acordo para chegar ao cinema.

“Quando era novo queria ser cabeleireiro-trompetista, mas o destino trocou-lhe as voltas. Oscilando entre França, Espanha e Inglaterra, foi sucessivamente DJ, compositor-intérprete, professor de línguas, tradutor-intérprete, comissário de bordo, mágico, antes de tentar a sua sorte como cortador de mulheres num circo austríaco”. A biografia que acompanha o livro serviu de ponto de partida para a conversa que o Observador teve com Romain Puértolas num hotel em Lisboa.

O que é realmente verdade na sua apresentação?
Na biografia? É tudo verdade.

Autor de 450 romances num ano?!
Bem, isso é um pouco exagerado, mas quase. Quase. Escrevo muitíssimo, passo a vida a escrever, vêm-me sempre ideias e é demasiado. Não tenho o que se costuma chamar de “síndrome da página em branco” do escritor, que por vezes pensa: “E agora, o que escrevo?”. Para mim é o contrário. “Meu Deus, tenho demasiadas coisas!”.

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Tantas que por vezes tem de as escrever em camisas, como o faquir indiano que escolheu para protagonizar o seu romance?
Escrevo em camisas, sim. [aponta para a camisa que veste nesse dia, toda escrita a caneta]. Os dois primeiros capítulos d’A incrível viagem do faquir que ficou fechado num armário IKEA escrevi-os nesta camisa, numa viagem de avião, com uma caneta têxtil, assim dá para lavar. Sim, lavo-a [risos].

romain puertolas

A camisa onde Romain se fartou de escrever. ©Divulgação

Com tanta vontade de escrever, porque é que o primeiro romance só chega agora?
Porque só me publicaram agora. É a oitava história que escrevo, mas rejeitaram-me sempre os manuscritos. Eu continuava a escrever e a enviar, até que um dia me publicaram.

Vai tentar publicar agora os primeiros manuscritos?
Não. O que fiz antes é passado. E como tenho tantas ideias prefiro publicar coisas novas. O meu segundo livro está pronto e vai sair em França a 14 de janeiro de 2015, embora o título ainda seja surpresa. Estou a escrever agora os seguintes.

Será que o IKEA vai aproveitar a ideia da cama de faquires e juntá-la ao catálogo?
[risos] Não creio que aproveitem porque em França não querem nada connosco. Queriam até tirar a palavra IKEA do título do livro e querem tirar os logótipos também, que estamos a usar em França. Queriam tirar tudo! Os nossos advogados conseguiram finalmente falar com eles e conseguimos manter a palavra IKEA no título, que era o mais importante. Em Espanha foi o contrário, fizeram-me uma entrevista de duas páginas. Depende de país para país.

Como é que se lembrou de um faquir para personagem principal?
Não sei, mas como costumava fazer vídeos no Youtube a explicar truques de charlatães, veio-me à cabeça a imagem de um faquir. Além disso é uma personagem bastante divertida para escrever, com o seu turbante, o bigode, os piercings, as cicatrizes… E dá para jogar com várias características, com os truques que faz, porque são tudo truques de manipulação, é tudo falso. Mas era isso que o fazia divertido para escrever.

O que é A incrível viagem do faquir: uma metáfora sobre as diferenças entre países do norte e do sul do mundo?
A sua incrível viagem é dupla. Primeiro é uma viagem verdadeira, física, que passa por França, Espanha, Itália, Inglaterra e Líbia, mas também é uma viagem iniciática, que ele faz como pessoa. Começa com alguém que engana os outros para se tornar depois numa pessoa melhor, uma pessoa boa. É uma viagem de personalidade.

Anteriormente era inspetor de polícia e trabalhava precisamente com imigração ilegal. Foi ali que encontrou inspiração?
Eu trabalhava na polícia de fronteiras, mas não estava na fronteira, trabalhava em Paris na unidade central. Era mais um analista cujas funções incluíam viajar para ver as diferentes formas de lidar com a imigração e compilar informação. Então eu tinha a visão global da imigração ilegal, e é a minha experiência que coloco aqui neste livro, como as piadas sobre as pessoas não saberem como se cruza uma fronteira. Depois, pus-me no cérebro de um clandestino, para tentar ver como pensa, como vive, as emoções que sente quando atravessa uma fronteira, e porque o faz, o que busca, as injustiças por que passa e o facto de não ser considerado humano, mas sim como um estrangeiro, um estranho. Só porque não fazes parte do Espaço Schengen.

É verdade aquilo que relata no livro? Que se o imigrante se recusar a dizer de onde vem, que usam estereótipos para relacionar a pessoa com um sítio? Por exemplo, se tem determinado bigode e chapéu, veio de Espanha?
Isso foi um exagero. Porque há muita gente que não fala, por isso não conseguimos identificar a nacionalidade, nem de onde vêm. Aí começa a investigação e se encontramos nos seus pertences, por exemplo, uma garrafa “Luso”, é uma pista de que pode vir de Portugal. Mas há que investigar um pouco mais. No livro, fiquei-me pelo nível de “se tem um bigode, é francês, ou espanhol”. Joguei muito com os estereótipos, mas foi um exagero para efeitos cómicos. E também para – verdade – denunciar um pouco a postura de tanto nos faz de onde vêm, queremos é enviá-los para o mais longe possível, porque sabemos que no dia seguinte vão tentar passar a fronteira de novo.

O tom do livro é sempre cómico, exceto quando os personagens falam das suas experiências de emigração. Aí a escrita torna-se muito séria.
Sim, e é a primeira pessoa que repara nisso. Em todas as entrevistas que dei, em vários países, dizem-me que eu falo da imigração ilegal de maneira humorística. E não é verdade, como acabou de dizer. Todo o livro é humorístico, salvo as pequenas passagens em que falo da imigração ilegal. Faço-o de maneira séria, triste e poética, porque é uma coisa dramática, e não vou falar de maneira muito humorística de algo dramático. De pessoas que nascem em países pobres de África que têm a ilusão de caminhar até à luz – Europa, América – como uma borboleta, para trabalhar, para ganhar dinheiro e enviarem à família para que não morram de fome. É triste.

Tem um apelido espanhol. Os seus pais eram imigrantes? É daí que vem a sua sensibilidade para o tema?
O meu avô materno era espanhol e foi imigrante em França, até se naturalizar francês. Nasceu espanhol e morreu francês.

Passou dificuldades que o tenham inspirado de alguma maneira para o livro?
Não porque ele nunca me contou a sua história. Só sei que fez parte da geração de espanhóis, que era a mesma geração de portugueses que emigraram para França, e que tinham muita vergonha que lhes dissessem “olha, aquele é espanhol”. Queriam muito integrar-se, então o meu avô falava muito pouco do seu lado espanhol. A minha avó, francesa, não gostava quando dizíamos que ele era espanhol. Havia vergonha. Agora é o contrário, as pessoas não se querem integrar, querem afirmar a sua nacionalidade. Mas voltando à sua pergunta, não sei muito sobre ele, só que esteve na guerra e que foi preso pelos alemães. Era uma pessoa feliz, como eu, deu-me a sua felicidade e o seu otimismo natural. Era assim que o via.

Achei curiosa a personagem do inspetor inglês de ascendência indiana, que trata Ajatashatru de forma tão dura. Há uma passagem em que Ajatashatru comenta que provavelmente os pais do inspetor também viajaram clandestinos para que hoje ele tenha uma boa vida.
Quis falar dos que se creem, como se diz… Mais papistas que o Papa. São os imigrantes que chegam, por exemplo, a França e que depois votam na extrema-direita porque não querem mais imigração. Eles conseguiram chegar, então não querem mais gente. Isto parece-me um pouco paradoxal, e é isso que quero passar com este inglês descendente de indianos, cujos pais chegaram a um país melhor, também escondidos num camião. Agora ele está na polícia e também não quer mais imigrantes. É uma crítica.

Algum editor lhe fez o mesmo que Gérard François [personagem do livro que é editor] faz a Ajatashatru, querer mudar-lhe o final do livro como condição para o publicar?
Não, não, o meu editor não mudou nada [risos].

No livro, brinca com o facto de o editor já estar a imaginar o primeiro livro de Ajatashatru em todas as livrarias e traduzido em 32 línguas. O primeiro livro do Romain já está em 40 países…
É um bestseller, sim! Quando escrevi a história pensava que nunca na minha vida seria publicada. Então, como quando escreves és Deus, pude escrever o que queria e quis recompensar o meu faquir com um bestseller. Foi a maneira que arranjei de viver o que nunca seria verdade. Mas tornou-se realidade. Passei pelo que passou o faquir, mas em muito melhor.