A noite de 31 de outubro é, dizem, de bruxas. Um pouco por todo o mundo, as crianças mascaram-se de fantasmas e outras criaturas mágicas e assustadoras, esculpem abóboras, pregam sustos e chantageiam os adultos. “Trick or treat“, doce ou travessura, que é como quem diz: ou me dás algo com que adocicar a boca ou faço-te trinta por uma linha. A moda tem mais expressão nos países anglófonos, mas por cá já tem muitos adeptos, mesmo se haja outras manifestações que reclamam mais antiguidade.

Bruxas, o que é isso? Em Cidões, uma aldeia do concelho de Vinhais, no distrito de Bragança, a pergunta é mais ou menos esta. Luís Castanheira, organizador da Festa da Cabra e do Canhoto, garante que este evento “não tem nada a ver com bruxas”. Quando muito, o dia das bruxas veio a Trás-os-Montes buscar inspiração. A história remonta aos povos celtas, que na noite de 31 de outubro para 1 de novembro assinalavam a passagem da estação clara para a estação escura com uma festa, chamada Samhain. “Queimava-se tudo o que era mau, comiam bem, bebiam bem e desejavam boa sorte aos outros” para o tempo frio que se avizinhava, explica Luís Castanheira, que nos 45 anos que já leva de vida só não foi à Festa da Cabra e do Canhoto quando era demasiado novo para essas cavalgadas.

Em Cidões, “o demónio está à solta”. O melhor é ir ver com os próprios olhos.

Porque é (quase) de cavalgada que se trata. Quando os sinos tocam as doze badaladas e o último dia de outubro termina (este ano será o primeiro de novembro, mas já lá vamos), uma carruagem puxada por uma junta de bois repleta de rapazes passa pelas ruas da aldeia a fazer saltar da cama aqueles que já para lá foram. Aí, “o demónio está à solta, viramos tudo ao contrário”, diz Luís. E está mesmo a falar a sério: os rapazes roubam coisas, metem-se com as raparigas, viram tudo do avesso.

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Mas isto é só no fim de um elaborado ritual. No início da noite faz-se uma fogueira, queima-se o canhoto (um tronco), come-se carne de cabra (e javali, febras, chouriços, entremeada, capão, castanhas assadas, “só coisas boas”) e convive-se. Enfim, faz-se a festa. Este ano, “prevê-se uma enchente louca”, afirma Luís Castanheira. Por isso, a festa foi movida do 31 de outubro para o primeiro dia (e noite) de novembro. E “acrescentaram-se pormenores”: deusas celtas, um druida, um ritual de ascensão da lua, archotes de fogo a ladear toda a estrada que liga a capital concelhia à pacata aldeia e ainda um cabrão “de sete ou oito metros” (figura de bode em madeira) construído pelos alunos da Escola Secundária de Vinhais – e que já tem destino certo: o fogo, onde se expiam todos os males. A partir da meia-noite, dois DJ garantem a animação pela noite dentro com música celta. Com tão variado cardápio, qualquer semelhança com o Halloween parece ser pura coincidência.

Uma chantagem saudável

Se há tradição que parece não ser contestada por mais nenhum povo do mundo (a não ser o galego), é o chamado ‘pão por Deus’. As crianças, munidas de cestos, vão de porta em porta, no primeiro dia de novembro, pedir bondade aos vizinhos – e saem com os bolsos cheios de alimentos.

“Antigamente vinha muita gente, mesmo de terras vizinhas”, lembra Fernanda Barreto, habitante da aldeia de Aranhas, no concelho de Penamacor, distrito de Castelo Branco. Nos seus tempos de garota, “havia gente muito pobre e era por necessidade” que pediam o ‘pão por Deus’. Nessa altura, havia batatas, alhos, cebolas, frutos secos e alimentos nobres para repartir. “Ficávamos todas contentes quando nos davam figos secos nas casas mais ricas”, ri-se Fernanda, que ainda hoje vê bandos de crianças passear pelas ruas estreitas da aldeia a pedir o santoro.

“Santoro ó dia, já é meio-dia” é o pregão usado pelas crianças à cata de comida.

O santoro? Sim, é como se chama o ritual do ‘pão por Deus’ em Aranhas e aldeias beirãs vizinhas. É também o nome de um bolo que “os padrinhos encomendam para dar aos afilhados” neste dia, explica a aldeã. Quem não tem padrinho, avia-se com fruta e dinheiro, mas para os adultos há castanhas, romãs, tremoços e jeropiga. Muita jeropiga.

Apesar da fama que tem ganho, o ‘trick or treat’ do Halloween não conseguiu ainda destronar o ‘pão por Deus’, que é hábito de muitas aldeias… mas não só. No meio da floresta de betão de Mem Martins, em Sintra, este ano as crianças saíram à rua para recolher alimentos e apelar à solidariedade dos seus vizinhos. “Em vez de se pedir as habituais guloseimas, pediremos um alimento não perecível para ajudar a associação Diakonia, que presta apoio alimentar a várias famílias carenciadas da comunidade de Algueirão – Mem Martins – Mercês, bem como aos sem-abrigo da zona”, explica Cátia Bandeiras, do grupo de jovens paroquial, que decidiu promover a iniciativa este ano pela primeira vez.

O objetivo do grupo era ajudar, “reavivando uma tradição que está em desuso nas zonas urbanas”. Reavivar sim, substituir não. “Muitos jovens católicos vão a festas de Halloween e isso não torna menos crente quem vai sair no dia 31 de outubro”, afirma Cátia, que até admitia que as crianças fossem mascaradas para o ‘pão por Deus’, porque “quem se diz cristão deve ser alegre e levar alegria a todos”.

Ora aí está. Seja na aldeia ou na cidade, vestido de bruxa ou não, a pedir guloseimas ou jeropiga, a alegria é a palavra de ordem por estes dias. Mesmo em Cidões, antes dos excessos previstos para logo à noite, os católicos cumprem o ritual de Todos-os-Santos, indo à missa, pedindo perdão pelos pecados, comungando e, nalguns casos, visitando os cemitérios onde descansam os familiares. Depois, do cristão ao pagão vai um pequeno passo. E sem dramas. Como se diz por lá:

“Quem da cabra comer

e ao canhoto se aquecer

Com certeza um ano de boa sorte vai ter”

Ámen.