O 10 de Junho – Dia de Portugal, Camões e das Comunidades Portuguesas – está a chegar e com ele mais uma lembrança da nossa História e de velhas glórias, às quais somos, de forma generalizada, bastante apegados. Quem pensa na História de Portugal, pensará nos Descobrimentos Portugueses. “Por mares nunca dantes navegados”, já dizia Camões n’Os Lusíadas, da coragem dos marinheiros portugueses que partiram no séc. XVI à descoberta do desconhecido, do caminho marítimo para a Índia que possibilitou subsequentes avanços para Oriente e que estenderam a rota comercial portuguesa através do Sudeste Asiático até ao Japão.

Então porque haveriam os japoneses fazer um jogo sobre os Descobrimentos? Permitam-me continuar com um pouco de História.

Os portugueses foram os primeiros europeus a chegar à Terra do Sol Nascente quando Fernão Mendes Pinto desembarcou em Tanegashima em 1543 e foram os responsáveis pela introdução das armas de fogo, do Cristianismo, pela fundação e desenvolvimento da cidade de Nagasaki (a mesma que foi alvo da bomba nuclear que ditou a rendição do Japão na II Guerra Mundial) como porto comercial, de métodos de culinária como o tempura e pela adição de cerca de 500 palavras no seu léxico – de facto, a primeira tradução de um dicionário japonês para outra língua foi feito por padres Jesuítas para português, em 1603. Oda Nobunaga, famoso senhor da guerra japonês que deu início à unificação do Japão, teve o padre Jesuíta português Luís Fróis na sua corte de conselheiros.

O arcabuz que os portugueses introduziram no Japão foi apelidado de Tanegashima, nome da ilha onde os portugueses desembarcaram pela primeira vez e que é hoje um objecto de colecção. Existem sociedades formadas por entusiastas que praticam disparo especificamente com este tipo de arma. Foi a que mudou para sempre o modo de se fazer guerra no Japão e destronou a famigerada katana em batalhas de pequena a larga escala. Hoje em dia os japoneses usam palavras portuguesas, a maioria delas ligadas aos bens comercializados na época, como furasuko (frasco), tabako (tabaco), shabon (sabão), karuta (cartas de jogar) ou bidoro (vidro) – já agora, foram também os portugueses que introduziram a técnica de vidro soprado no Japão.

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Antes que isto se torne num artigo sobre História (tarde demais) gostaria agora de colocar a mesma questão acima de forma inversa: porque não haveriam os japoneses de fazer um jogo sobre os Descobrimentos? E, já agora, porque não haveriam os portugueses de o jogar?

“Uncharted Waters” (ou “Daikoukai Jidai”, o nome original japonês que significa literalmente a Era dos Descobrimentos em português) é um jogo que, estranhamente, poucos portugueses conhecem.

Posso dizê-lo com relativa confiança porque tive a oportunidade de perguntar a vários amigos, todos eles gamers, se o conheciam. Quase nenhum o reconheceu. “O “Uncharted”? Conheço, claro!” disse-me um. “Não, esse é o jogo da Playstation 3. Este é um jogo japonês passado na época dos Descobrimentos. É mais antigo.” – Explicava-lhe. “Ah… Nunca ouvi falar.” – Respondia-me.

Sendo um jogo da minha infância, estranhei que mais pessoas não o conhecessem. Foi a sondagem referida acima, realizada a nível pessoal a sujeitos dentro do meu espetro e que partilham interesses semelhantes, que me motivou a escrever sobre ele – afinal não há só indies desconhecidos, mas também oldies desconhecidos. E que melhor forma de espalhar a palavra há do que falar sobre ele no Observador?

Lançado em 1992 pela Koei para a Super Nintendo, “Uncharted Waters” é um RPG de aventura, comércio e exploração marítima que começa no Portugal Quinhentista, poucos anos depois da assinatura do Tratado de Tordesilhas e de Bartolomeu Dias ter atravessado o Cabo das Tormentas, entretanto e por causa disso renomeado de Boa Esperança. No jogo encarnamos o papel de Leon Franco, um jovem descendente de uma família nobre caída na pobreza e na desgraça que se vê forçado a trabalhar como mercador em Lisboa. Determinado em recuperar a antiga glória da sua linhagem e com um desejo de aventura, o nosso personagem faz-se ao mar com um barco e tripulação pequenos, à descoberta de novas rotas comerciais e das suas riquezas.

O jogo consiste em explorar o mundo e descobrir novos portos e localizações para fazer comércio ao mesmo tempo que se desenrola uma história. O comércio é simples à superfície – comprar barato e vender caro – mas esconde um sistema bastante complexo por trás onde os preços flutuam devido a influências sociais, económicas e políticas, locais e globais. Conforme vamos fazendo dinheiro podemos comprar barcos novos ou em segunda mão e fazer-lhes melhorias. Em cada viagem temos de assegurar que temos a nossa frota em boa condição, que temos água e comida suficientes, que temos um imediato e um navegador competentes, que a tripulação está saudável e nos é leal, etc. Podemos também atacar outros navios e pilhá-los, o que irá afetar a relação das nações desses navios com Portugal. Muitos destes aspetos fazem lembrar o mais velho “Sid Meier’s Pirates”!

Com o desenrolar da nossa aventura vamos expandindo a frota, enriquecendo e ganhando fama. Fama essa que pode levar a sermos convidados pelo Rei de Portugal a executar missões ou expedições em nome da Coroa e a ganharmos títulos de nobreza e terras. Se enriquecermos o suficiente, podemos usar o dinheiro até para comprar portos ou cidades em nome de Portugal, o que normalmente atrai a ira de outros Reinos. O mais longe que podemos chegar é possivelmente obter a permissão d’el Rei para cortejar a princesa Christiana.

Se estranharam o nome, são igualmente capazes de ter reparado no facto de nunca ter existido uma princesa Christiana, que pela época seria filha de D. Manuel I. O nome do personagem principal – Leon – também não é um nome tipicamente português. O jogo tem a sua dose de imprecisões, não só históricas, como também geográficas. Para dar um exemplo, na costa Este da Sicília, onde devia estar Siracusa, encontramos a cidade de Maiorca – que obviamente deveria estar imediatamente no Sudeste de Espanha e não no Sul de Itália.

Imprecisões à parte, este é um jogo que me divertiu bastante em criança, nos meus 10 anos, enquanto me esforçava por perceber o que personagens diziam entre si com o meu inglês subdesenvolvido e sorrindo cada vez que via a referência a uma palavra que reconhecia da minha pátria. Era estranhamente satisfatório saber que estava a jogar um jogo com um personagem português e a moldar a História do meu país. Ver palavras como “João” ou “Alcobaça” escritas num jogo (mesmo que escritas como “Joao” e “Alcobaca” por não terem fonts para tiles ou cedilhas), para mim eram uma novidade refrescante. “Os portugueses também podem estar num jogo” pensava eu na minha inocência infantil.

Perdi o cartucho.

Há cerca de 10 anos consegui readquirir uma cópia de “Uncharted Waters” em segunda mão e jogá-lo novamente. Senti-me um batoteiro por saber para onde navegar para descobrir imediatamente a Madeira e os Açores (com um mapa mundo ao lado é mais fácil explorá-lo, quem diria?). Foi aí também que me apercebi das imprecisões históricas e geográficas que referi anteriormente e consegui realmente compreender a história na sua totalidade. Contudo não deixei de perder aquela sensação de fascínio, que era equivalente a seguir os jogos do Cristiano Ronaldo nos seus primeiros anos no Manchester United, algo que também fazia naquela altura em que usava o patriotismo à flor da pele.

Depois disso consegui jogar à sequela “Uncharted Waters: New Horizons” em que podemos jogar com João Franco, o filho de cabelo loiro e sedoso de Leon Franco (para os japoneses seremos todos loiros de olhos azuis?) e da princesa Christiana (alguém disse spoilers?) e cinco outros personagens – uma espanhola, um britânico, um italiano, um holandês e um turco – cada um com a sua história, e cada enredo interligado com cada um dos outros personagens. É um jogo bastante superior ao primeiro, só que não possui o mesmo valor nostálgico nem o foco centralizado em Portugal.

Existe actualmente um MMO da série com o nome “Uncharted Waters Online” que está disponível na plataforma virtual Steam, em que podemos criar o nosso português no século XVI. É uma série de grande sucesso no Japão, mas quase irrelevante na Europa – os dois primeiros jogos tiverem inclusive mais vendas nos Estados Unidos do que neste lado do Atlântico. Além destes, há outros três jogos desta série que nunca foram lançados fora do Japão, graças ao parco sucesso dos primeiros jogos – que mereciam mais da nossa atenção.

Fernando Pessoa dizia (e toda a gente gosta de citar com um ar erudito) :”Falta cumprir-se Portugal”.

Tiago Leonel Ferreira, Rubber Chicken