É o caso mais complexo dos inquéritos do chamado Universo Espírito Santo: o caso Eurofin. O número da alegada fraude imputada aquela sociedade suíça já atinge, segundo os indícios recolhidos pelo Ministério Público (MP), mais de 10 mil milhões de euros. É esse o valor total de diversos produtos financeiros de alto risco colocados junto de clientes do BES com a promessa de que se tratavam de produtos de rentabilidade garantida (como um depósito a prazo) quando, na verdade, eram títulos de dívida de diversas sociedades do Grupo Espírito Santo (GES).

No centro do inquérito da Eurofin estão suspeitas da prática do crime de abuso de confiança precisamente porque existem indícios de que o BES e os seus clientes terão sido enganados e instrumentalizados para financiar ilicitamente o GES naquele montante. O Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) investiga ainda indícios de fraude fiscal e de branqueamento de capitais. Tudo com a alegada participação de altos quadros do GES e do BES.

O Ministério Público (MP) acredita que a Eurofin terá servido para criar e implementar alegados esquemas de financiamento fraudulento de diversas sociedades do GES com o objetivo de ocultar o passivo das holdings que dominavam os negócios da família Espírito Santo. Tudo à custa dos clientes do Banco Espírito Santo (BES) e de outros bancos internacionais dominados pela família Espírito Santo e com a própria instrumentalização do BES.

Os esquemas de financiamento fraudulento

Comecemos por uma contextualização do que era o GES. Além de atividade em Portugal, Luxemburgo e Suíça, o grupo da família Espírito Santo organizava-se em duas áreas:

  • A área financeira, onde imperava a Espírito Santo Financial Group (que detinha a participação da família no BES e geria as participações do ES Bank Panama e o ES Bank Dubai) e a Espirito Santo Financiére (que geria as participações em instituições financeiras francesas e suíças, como o Banque Privée Espirito Santo e o BES de La Vénetie);
  • A área não financeira que incluía as holdings Espírito Santo Control, a Espírito Santo International, a Espírito Santo Resources, a Rio Forte Investments e a Espirito Santo Services.

Desde finais de 2008, a ESI passou a acumular prejuízos, tendo-se verificado uma degradação galopante da sua situação financeira até finais de 2014 — que acabou por contaminar todas as outras sociedades detidas pela família Espírito Santo e levaram a ESI, a Espírito Santo Control, a Espírito Santo Financial Group (ESFG) e a Rio Forte a ficar sob gestão judicial desde 2014.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Segunda contextualização: entre 2008 e 2014, quer os prejuízos, quer os investimentos e custos operacionais da área não financeira do GES terão sido suportados pela constante emissão de títulos de dívida por parte, nomeadamente, da ESI e a Rioforte.

Tal dívida acabou por ser colocada junto de clientes das instituições financeiras da ESFG por via de contratos de gestão discricionária que habilitava os gestores de conta a investir o dinheiro dos clientes. Isto é, clientes do BES, sucursais e subsidiárias, como o Banque Privée Espirito Santo (Suíça), o BES de La Vénetie (França), o ES Panamá e o ES Bank Dubai desconheciam que estavam a adquirir aqueles títulos de dívida.

O objetivo da colocação da dívida juntos dos clientes (que desconheciam totalmente o que estava a acontecer) visava, segundo as suspeitas dos investigadores do Ministério Público, dissimular o real estado das contas da ESI e das sociedades por esta dominadas.

De acordo com os indícios recolhidos pelos investigadores, o montante do passivo ocultado nas contas da ESI passou do valor de 180 milhões de euros de 2008 para cerca 1,4 mil milhões de euros em 2012. Tal alegada ocultação levada a cabo pelos responsáveis do GES implicaram, no final, uma retificação no passivo real da ESI que chegou a 4,7 mil milhões de euros — e tornou inevitável o processo de insolvência da mesma sociedade.

O processo de ocultação do passivo contou, segundo os investigadores do Ministério Público, com a colaboração estreita de uma sociedade suíça chamada Eurofin — que teve origem numa entidade do GES e, segundo o MP, era controlada por pessoas próximas de Ricardo Salgado.

Na prática, a Eurofin disponibilizava um conjunto de sociedades veículo (muitas delas, sociedades offshore sedeadas nos mais diversos paraísos fiscais) para servirem de contraparte em operações com alguns dos investidores que tinha comprado títulos de dívida emitidos pelas sociedades do GES, assim como assumia a titularidade de determinados investimentos e participações sociais em nome do grupo da família Espírito Santo.

Ao que o Observador apurou, os investigadores do DCIAP que lideram os inquéritos do Universo Espírito Santo detetaram quatro situações de financiamento do GES alegadamente fraudulentas promovidas pela Eurofin:

  • Colocação de dívida do GES junto de clientes. A Eurofin concentrou-se, a partir de 2008, em recolher liquidez para financiar os investimentos efetuados em nome do GES. Assim, terão sido colocados até ao final de 2013 cerca de 2,8 mil milhões de euros de títulos de dívida de diversas sociedades do GES junto de clientes do BES, do Banque Privée Espirito Santo (Suíça), do BES de La Vénetie (França) através de Special Purpose Vehicle (SPV).

O que é um SPV?

Mostrar Esconder

Chama-se Special Purpose Vehicle, é uma sociedade veículo e serve para adquirir ou financiar a aquisição de ativos específicos. Genericamente, o SPV é uma empresa subsidiária que tem a obrigação de garantir as suas obrigações mesmo que a empresa mãe entre em processo de insolvência.

O problema é que os clientes não sabiam que detinham esse SPV e desconheciam a realidade financeira das sociedades do GES. Além disso, os SPV eram formalmente geridos pelo Crédit Suisse mas, na realidade, a gestão pertencia ao BES com o objetivo de ocultar a dívida das sociedades do GES.

  • Obrigações do GES cupão zero. Com o objetivo de amortizar os financiamentos da Eurofin, o BES emitiu um conjunto de obrigações próprias, de cupão zero.

O que são obrigações de cupão zero?

Mostrar Esconder

São obrigações que não têm cupão (taxa de juro) mas que é emitida com desconto em relação ao seu valor nominal. Ou seja, um investidor que compre uma obrigação de 100 euros por 95 euros (desconto de 5%), sabe que no final do contrato receberá mais 5 euros do que o montante investido inicialmente.

O MP entende que essas emissões tiveram como objetivo fomentar mais-valias que terão sido canalizadas para as sociedades-veículo da Eurofin, num total de cerca de 800 milhões de euros. Tais mais-valias terão sido obtidas, segundo os investigadores do DCIAP, com engano de clientes (que nada sabiam) e do BES (que não obteve qualquer retorno financeiro pelas responsabilidades que assumiu). E em benefício das sociedades da área não financeira do GES que eram financiadas pela Eurofin. Para tal, foram utilizadas diversas unidades bancárias domiciliadas em Londres, Ilhas Cayman e Luxemburgo.

  • Criação de sociedades-veículo para comprar junk assets do BES. A Eurofin terá igualmente servido para a criação e utilização de sociedades-veículo para aquisição de ativos desvalorizados ou com valor perto de zero (como as obrigações Lehman Brothers, por exemplo) para que o banco não tivesse que assumir a sua titularidade e suportar, também contabilisticamente, eventuais prejuízos. Desta forma, a capacidade financeira do BES era melhorada e evitava-se o registo de imparidades financeiras no balanço do banco. De acordo com o MP, esta atividade terá sido sempre omitida aos investidores e ao público em geral.
  • Produtos de rentabilidade garantida com 10 mil milhões de euros colocados nos clientes. O MP suspeita igualmente que o GES terá instrumentalizado o BES para financiar-se através de outros tipos de produtos financeiros, como as chamadas séries comerciais, operações sobre títulos compostos por ações preferenciais emitidas pelas SPV ou obrigações com cupão emitidas pelo BES.

O que eram as séries comerciais do BES?

Mostrar Esconder

De acordo com o site da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários, o código que se inicia por SCBES era um código meramente interno utilizado pelo BES. “Estes instrumentos correspondem a investimentos em obrigações (emitidas pelo BES) ou ações preferenciais (de entidades relacionadas com o BES), e foram designados pelo BES como Séries Comerciais. Na sua substância, consistiu na aquisição de títulos pelos clientes em mercado secundário, com a promessa de recompra futura pelo BES, numa data predeterminada e a um preço predefinido, prometendo desta forma ao cliente, na maturidade do investimento, a recuperação do capital investido, assim como da rentabilidade acordada”, lê-se no site da CMVM.

Os investigadores do DCIAP suspeitam que o BES colocou cerca de 10 mil milhões de euros em produtos desta natureza junto dos seus clientes entre janeiro de 2011 e abril de 2014 com a intermediação da Eurofin. O problema mais grave é que, na ótica do MP, existem indícios de que tais produtos foram apresentados aos clientes do BES como se de rentabilidade garantida se tratassem. Isto é, como se fossem depósitos a prazo. O MP suspeita ainda que estas transações serviram igualmente para camuflas puras operações de reporte ou acordos de recompra com ganhos fiscais alegadamente ilícitos.