Descobri Lavoura Arcaica numa prateleira do Continente do Vasco da Gama há dezasseis anos. Peguei no livro por causa do título. Na contracapa uma recomendação autoritária de Eduardo Prado Coelho. Comprei o livro e logo na página inicial isto: “o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, a rosa branca do desespero, pois entre os objectos que o quarto consagra estão primeiro os objectos do corpo.” A rosa branca do desespero.
E assim, desconhecendo tudo sobre Raduan Nassar, avancei sôfrego pela fúria genesíaca das suas palavras e quando terminei a leitura eu era outro e a língua portuguesa também já não era a mesma para mim. Sensação semelhante à de ler Sagarana, de Guimarães Rosa, ou a de descobrir a poesia de Manoel de Barros: de repente apercebemo-nos de ter passado a vida ao lado da língua verdadeira, apercebemo-nos de que a língua portuguesa que usamos no dia-a-dia é, em comparação com aqueles milagres, um instrumento rombo que serve para comprarmos pão e pedirmos desculpa ao chefe por mais um atraso.
Lavoura Arcaica tinha a força primordial de um livro bíblico e a inventividade linguística de um escritor moderno. Era, ao mesmo tempo, arcaico e intemporal, história e mito, tabu e transgressão, família e desejo. Aquela edição incluía um posfácio de Sabrina Sedlmayer em que além de uma breve análise da obra a autora falava da biografia de Raduan Nassar e da sua decisão de abandonar a literatura para administrar uma fazenda a 250 km de São Paulo. Fiquei a saber que o escritor só tinha publicado mais uma novela (Um Copo de Cólera – cuja tradução para inglês foi semifinalista do Man Booker International Prize) e um livrinho de contos (Menina a Caminho). Li Um Copo de Cólera com antecipado fervor, mas só se perde a virgindade uma vez e eu já me tinha entregado a Lavoura Arcaica, felizmente. Nunca li os contos.
À falta de mais livros, o nome de Raduan Nassar passou a ser falado quase exclusivamente pela sua reclusão, pela sua desistência da literatura ou, para ser mais exacto, pela sua inactividade literária visto que participou em actividades de promoção da sua obra e até vendeu os direitos de Lavoura Arcaica para o cinema (e, depois de ver o filme do grande Luiz Fernando Carvalho – realizador de telenovelas como “Renascer” e “Irmãos Coragem” –, elogiou o resultado final). É pena que o ruidoso folclore à volta do silêncio literário do escritor – alimentado, em parte, pela célebre frase de Nassar de que “não há criação artística que se compare a uma criação de galinhas” – não sirva apenas para promover o que merece ser promovido, embora se possa argumentar que a renúncia radical do autor tenha tido o efeito secundário de fazer brilhar mais intensamente a única pérola da sua colecção ou de, pelo menos, obrigar o leitor a confrontar-se com Lavoura Arcaica – seu único romance – por não ter muito por onde escolher. É este equívoco que a atribuição do Prémio Camões a Raduan Nassar, sendo de inquestionável justiça, também desfaz: para estar no lugar que merece, uma obra-prima não tem necessariamente de coroar uma pilha de livros (quase sempre menores). Dispensa acompanhantes e, depois de escrita, dir-se-ia que até dispensa o autor.
A este, saibamos perdoar o seu entusiasmo pecuário. Ele saberá que chega sempre o dia em que as galinhas, mesmo as mais esquivas, como no conto de Clarice Lispector, acabam na panela. Mas os grandes livros, como Lavoura Arcaica, renascem de cada vez que um leitor os descobre.
Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor, e autor do romance As Primeiras Coisas, vencedor do prémio José Saramago em 2015