Título: “Dicionário crítico de filosofia portuguesa”
Coordenação: Maria de Lourdes Sirgado Ganho
Editora: Temas e Debates / Círculo dos Leitores
Páginas: 812 páginas
Preço: 26,91€
Eis um livro que, apesar da sua utilidade, desilude a vários títulos. Não por causa dos seus colaboradores, que, independentemente da irregularidade fatal neste tipo de projectos, fazem o seu trabalho convenientemente, e às vezes excelentemente, mas por causa de certas decisões editoriais que, por vezes, roçam o inexplicável, quando não entram fundo por lá dentro.
O melhor é começar com o prefácio, da autoria da coordenadora, Maria de Lourdes Sirgado Ganho, um prefácio que funciona como introdução, o que o faz parecer surpreendentemente breve para uma obra de 812 páginas: ocupa apenas 3 páginas e umas poucas mais linhas. A brevidade em si não constitui, obviamente, um defeito. Há casos em que a concisão possui virtudes exemplares. Não é esse, tristemente, aqui o caso. Recolhemos deste prefácio pouquíssima informação. A saber, que o Dicionário contém, na sua primeira parte, entradas que vão desde autores “anteriores à fundação da nacionalidade” até outras que versam sobre “autores ainda vivos”. A segunda parte é constituída por sinopses “das obras mais representativas da tradição filosófica portuguesa”. Como informação, temos pouco mais: a realização do Dicionário foi possível graças a um financiamento, iniciado em 1999, da FCT, e foi dada liberdade aos colaboradores, dentro de certos limites genericamente formulados. O resto do prefácio é ocupado com agradecimentos aos vários colaboradores e termina com a expressão do sentimento de pertença a uma tradição que vai de Paulo Orósio a Manuel da Costa Freitas, uma tradição marcada por “um pensar autónomo português e em português”.
Porque é que isto é pouco? Por várias razões. A principal razão é que uma obra deste tipo procede necessariamente, em virtude dos limites da sua extensão, a certas omissões. Em muitos casos, elas não são ditadas por razões óbvias. Conviria, portanto, explicá-las. Ora, isso não acontece aqui. Fala-se da “representatividade” das obras escolhidas para as sinopses e subentende-se a dos autores tratados nas entradas da primeira parte. Mas o que interessava era conhecer os critérios, por definição problemáticos, que presidiram à decisão de considerar representativos autores e obras. Nenhuma palavra é dita na matéria. O que torna desnecessariamente inexplicável a exclusão de vários autores, sobretudo contemporâneos.
Filosofia pouco ecuménica
Passemos agora à primeira parte, dedicada às entradas sobre autores. Como escrevi, há excelentes entradas, que conjugam indispensáveis indicações biográficas com exposição competente da posição filosófica dos autores. E há entradas claramente menos boas, onde o segundo aspecto é manifestamente descurado em estrito benefício do primeiro. Esta atitude é claramente prejudicial para a satisfação das expectativas que o Dicionário cria. Mais do que conhecer o percurso académico de um filósofo, estamos interessados em saber o que ele pensou e sob que forma organizou o seu pensamento.
O problema principal não reside, no entanto, aqui. Ele reside sobretudo nas entradas que dizem respeito a autores cuja obra começou a tomar corpo sensivelmente a partir da década de setenta do século passado. Com pouquíssimas excepções, não há sinal de obras filosóficas que se construíram em torno de reflexões sobre, por exemplo, temas centrais da estética, da lógica, da filosofia da linguagem ou da filosofia política, ou então que visaram a elucidação de autores maiores da tradição filosófica, como Leibniz, Kant, Hegel ou Wittgenstein. Nada há, como apontei, no prefácio, que explica tal decisão de exclusão. Pessoalmente, não encontrei, salvo uma ou duas excepções, nenhum dos autores cuja obra filosófica sempre me pareceu mais fecunda e com quem aprendi alguma coisa. E não se trata aqui de uma consideração subjectiva. Trata-se mesmo, em alguns casos, de autores que, dentro das possíveis condições de acesso da filosofia ao espaço público, gozam de alguma notoriedade. Em contrapartida, autores que se inscrevem na corrente da chamada “filosofia portuguesa”, isto é, daqueles que reivindicam uma irredutível singularidade do pensamento filosófico português, de uma maneira especificamente portuguesa de praticar a filosofia, encontram-se, nas obras publicadas nesse período de tempo, muito melhor representados.
Apresso-me a dizer que nada tenho contra a menção a esses autores. Desde que o espírito sopre, o pensamento é bem-vindo. Além disso, concordando-se ou não com os seus projectos filosóficos, são, ou foram, filósofos portugueses que merecem ser conhecidos, e num ou noutro caso beneficiei com a leitura dos brevetes. O problema é outro: é a falta de ecumenismo filosófico, indispensável numa obra deste tipo, que vem à luz. Como justificar, por exemplo, que nenhum autor trabalhando no contexto da chamada tradição analítica mereça uma entrada? E poderia mencionar várias outras correntes significativas do pensamento contemporâneo que se encontram por inteiro silenciadas. Face a isto, insinua-se uma dúvida no espírito do leitor. E ela prende-se com o próprio título da obra.
Dicionário crítico da filosofia portuguesa. Para quem aborde o livro desprevenidamente, a expressão “filosofia portuguesa” não coloca problema algum: ela denota, pura e simplesmente, a filosofia feita por portugueses, escrita em português ou noutras línguas. Há, no entanto, uma acepção mais particular, mais idiossincrática, de “filosofia portuguesa”: aquela que se refere ao tal programa que sublinha a radical singularidade do pensamento português face à filosofia tal como praticada noutros lugares. E se nada no título do Dicionário nem no prefácio que o abre (pelo menos numa primeira leitura, mesmo que atenta) indica que este pretende adoptar a segunda acepção da expressão “filosofia portuguesa” que acabei de referir, é ela que parece tomar conta das entradas relativas ao período mencionado. Não nos outros períodos, bem entendido, onde um salutar ecumenismo é praticado, e onde se incluem até, e muito bem, autores estrangeiros cuja actividade filosófica decorreu em Portugal. Mas tal falta de espírito ecuménico, que parece revelar um propósito programático tácito, nunca explicitado, macula a obra. Comparado com isso, pequenos detalhes que relevam de uma deficiente revisão dos textos – vários autores, cuja data da morte é mencionada à abertura das entradas, são ditos exercerem (no presente) funções lectivas em tal ou tal universidade –, são coisa menor.
Se passarmos agora para a segunda parte do dicionário, onde se apresentam sinopses de obras relevantes da filosofia portuguesa, este defeito é ainda, se possível, mais patente. Mas antes de retomarmos essa discussão, uma nota sobre a organização desta segunda parte: ela é, no mínimo, caótica. As obras sucedem-se umas às outras sem obedecerem a qualquer ordem discernível: cronológica, temática ou alfabética. Obras do século XV sucedem-se a obras do século XX; tratados que incidem sobre filosofia do conhecimento vêem-se seguidos por obras de filosofia jurídica e política; e quanto a qualquer ordenação alfabética (por autor ou obra), ela brilha pela ausência. Mais: sinopses de livros do mesmo autor encontram-se separadas, num caso, por 93 páginas (há outras duas ocorrências semelhantes). Noutro caso, há sinopse da obra de um autor identificado que não é mencionado na primeira parte. Confesso que não percebo a incúria (não encontro melhor expressão) que terá presidido à elaboração de tal caos. Umas pouquíssimas horas de trabalho, se calhar uma hora, tê-lo-iam evitado. Aproveito para mencionar que o livro não contém igualmente qualquer índice onomástico ou conceptual, de que este tipo de obra imensamente beneficiaria, e cuja realização, nos nossos dias, não oferece problemas de maior.
Virtudes e efeitos
Mas passemos agora às sinopses propriamente ditas. Tal como nas entradas, há-as boas, uma ou outra excelente, e menos boas. Mas a tal inflexão em direcção ao sentido idiossincrático de “filosofia portuguesa”, no que respeita às obras mais próximas de nós no tempo, é, se possível, ainda mais notória. Por uma vez, referirei nomes. O que justifica, por exemplo, e é um exemplo entre muitos, embora um exemplo de peso, que nenhum livro de Fernando Gil (que, é uma das excepções acima mencionadas, beneficia de uma competente entrada na primeira parte) pareça digno de uma sinopse, enquanto que Álvaro Ribeiro mereça que duas das suas obras sejam analisadas? Por este último, ao contrário do primeiro, ter feito o elogio do “modo português de filosofar, isto é, o modo português de atingir o conhecimento supranormal de uma realidade sobrenatural” e de ter decretado que as filosofias europeias, em contradistinção da filosofia portuguesa, são “túmulos em vez de naus”? É essa concepção da filosofia, uma concepção que opõe uma espécie de vivificante e náutica virtude lusitana à natureza tumular do pensamento europeu alheio, que preside à organização do Dicionário e ao seu entendimento da filosofia portuguesa? Por uma razão ou outra, sou mais sensível ao cómico do que ao resto, que é triste, e a concepção parece-me, desculpe-se-me, risível.
É com tristeza que me senti obrigado a escrever o que escrevi. Porque uma obra deste tipo, fruto de muito esforço conjugado, poderia constituir um instrumento de trabalho precioso e várias das entradas e das sinopses apresentam interesse, elevada competência e profissionalismo, e, no entanto, tanto o incipiente prefácio quanto a falta de ecumenismo (que, insisto, deve ser de regra numa obra deste tipo) no tratamento de autores contemporâneos, bem como a caótica organização da segunda parte, destroem em parte as suas virtudes como instrumento de trabalho e obscurecem as efectivas qualidades de muitas das contribuições.
Deixo de lado uma última questão, que incide sobre a inclusão de várias entradas sobre poetas e romancistas. É verdade que não estou bem a ver um “Dicionário crítico da filosofia inglesa” a incluir, digamos, Shakespeare, no número dos filósofos, por muito que filósofos e estudiosos analisem, com irrepreensível legitimidade e ocasional proveito, os elementos filosóficos das obras de Shakespeare. Apenas que, tecnicamente, Shakespeare não é um filósofo. Mas, na lista das críticas que este Dicionário merece, essa seria a última na ordem da importância, até porque a matéria é, de direito e de facto, debatível, e um excessivo dogmatismo no capítulo não se recomenda. Em contrapartida, as deficiências anteriormente referidas são muito efectivas e se não fazem deste livro um falhanço absoluto – e não o fazem, repito, graças à qualidade de muitas das contribuições e ao interesse geral do projecto –, prejudicam gravemente a realização do programa que o seu título dá a ver. É muita pena.