Este artigo foi inicialmente publicado em 19 de junho de 2016.
Em 1998, a revista científica The Lancet publicava uma investigação da autoria do médico Andrew Wakefield que relacionava a vacina tríplice (para o sarampo, papeira e rubéola) ao autismo. A segurança das vacinas foi questionada e só no Reino Unido a taxa de vacinação baixou vertiginosamente. O susto, esse, foi geral.
Cinco anos mais tarde, em fevereiro de 2004, o jornalista Brian Deer publicou o seu primeiro artigo sobre o caso Wakefield, no jornal The Sunday Times, provando que a investigação era fraudulenta. Mais artigos se seguiram e, em 2010, a revista The Lancet assumiu o erro e Wakefield perdeu a licença para exercer medicina no país de origem.
Agora, Brian Deer vem a Portugal no âmbito do segundo congresso “Área Pediatria Médica”, organizado pelo hospital D. Estefânia, que se realiza de 23 a 25 de junho. Deer vem para explicar como descobriu que o estudo que assustou milhões era falso e como o seu principal autor tinha recebido dinheiro de partes interessadas para publicar informação incorrecta.
Em entrevista ao Observador, conta também que tanto foi considerado um herói por ter desmascarado Wakefield como foi chamado de “assassino de crianças” por pais que optam por não vacinar os filhos. Mais do que isso, aponta o dedo às publicações científicas e questiona a credibilidade de algumas investigações: “As pessoas acreditam naquilo que leem em publicações médicas e, acredite, elas não deviam.”
O estudo de Andrew Wakefield mudou a forma como se olha para as vacinas. O que o fez investigar o caso?
Tudo começou com um trabalho de rotina há muitos anos, em 2003. Acabei por debruçar-me sobre o assunto e depressa tornou-se óbvio que havia algo mais por detrás do estudo que foi responsável pelo susto das vacinas.
O que o fez pensar que a investigação era uma fraude?
O estudo publicado na revista científica The Lancet, em 1998, alegava que havia um hospital no norte de Londres — não muito importante — onde pais começaram a aparecer com crianças que tinham vários tipos de problemas mentais, como autismo, por exemplo. Eles chegaram a dizer coisas como “O meu filho tem autismo e isso apareceu duas semanas após ter tomado a vacina tríplice”. Este estudo teve por base as primeiras 12 famílias que apareceram [no hospital] e que disseram estas coisas. Assim que o estudo foi publicado criou-se uma enorme preocupação entre o público. O hospital chegou a realizar uma conferência de imprensa e isto despertou um alarme global sobre a segurança das vacinas.
O que começámos por perceber foi que estas famílias foram, de facto, trazidas ao hospital de modo a fazerem aquelas alegações e prosseguirem com um processo judicial. Foi a primeira descoberta: estas não eram famílias ao acaso. Se fossem, isto poderia ser muito preocupante, poderia ser o primeiro sinal de uma catástrofe oculta. Mas descobriu-se que era um esquema porque Andrew Wakefield tinha sido contratado por uma firma de advogados para organizar um caso contra os produtores de vacinas. Ao longo dos anos ficou-se a saber mais coisas, como quanto dinheiro ele recebeu dos advogados para fazer isto. A dada altura, chegou-se à questão dos dados publicados e percebemos que nem um deles tinha sido relatado com exatidão no estudo. Os editores da revista britânica [The Lancet] acabaram por concluir que isto era uma fraude.
Chegou a falar com todos os pais envolvidos?
Não falei com todos os pais, falei com cinco famílias, julgo, e outras pessoas terão falado com mais uma em meu nome. Mas o caso não é maioritariamente baseado no que os pais dizem, porque a maior parte destes pais pensou que ia ganhar cerca de 3 milhões libras [quase 4 milhões de euros] cada como resultado do processo judicial em que estavam envolvidos — nem sei quanto valeria 3 milhões de libras naquele tempo, mas hoje talvez correspondesse a 10 milhões de dólares –, pelo que não são propriamente grandes amigos meus, ainda que duas ou três famílias tenham feito queixa contra o autor do estudo.
Mas alguns dos pais confirmaram-lhe que os dados tinham sido incorretamente relatados no estudo.
Sim, alguns pais fizeram isso. Mas a investigação não se baseia no que os pais dizem, mas antes nos registos médicos — os registos das crianças foram analisados e introduzidos no domínio público. Mas, sim, é verdade que muitos dos pais se queixaram sobre a forma como os dados dos seus filhos foram reportados e dois deles acusaram Andrew Wakefield de fraude. Não se pode fazer uma investigação séria baseada pura e simplesmente no que as pessoas dizem.
Nunca assumi uma posição sobre se as vacinas podem ou não causar autismo, baseei-me apenas em factos.
Como é que conseguiu provar isso, sendo um jornalista e não um cientista?
Eu não estou a lidar com assuntos científicos, mas sim com factos — quando é que determinados diagnósticos e sintomas foram registados, por exemplo. São factos. Quando um avião cai, queremos saber quais as razões por detrás da queda, o que passa por dados factuais. Nunca assumi uma posição sobre se as vacinas podem ou não causar autismo, baseei-me apenas em factos.
Para algumas pessoas, Wakeflied é um mártir da medicina; para outros, um charlatão. Isto ainda é uma realidade?
Sim, há pessoas que dizem isso [que Wakefield foi alvo de uma armadilha]. Há uma indústria enorme de pessoas que alegam que eu estou a trabalhar para a indústria farmacêutica, que estou envolvido numa qualquer conspiração ou que profissionais da medicina estiveram envolvidos de modo a danificar a reputação do autor, mas ainda não vi qualquer prova disso e não tenho quaisquer ligações à industria farmacêutica ou o que quer que seja, apenas avancei com uma investigação jornalística. Mas claro que há pais que vão dizer estas coisas.
Encabeçar esta investigação bem-sucedida teve algum impacto na sua vida pessoal?
Tive algumas pessoas a dizer o quão bom foi e outras a serem abusivas. De todas as vezes que Andrew Wakefield faz um vídeo a dizer mal de mim — ele faz muitos vídeos na internet –, recebo e-mails de pessoas que não conheço a acusarem-me de matar crianças e de assassinar bebés, perguntam-me como é que consigo viver comigo mesmo. A diferença entre mim e ele é que tudo o que eu publicar é verificado por editores ou advogados, entre outras pessoas; antes de eu colocar alguma coisa no domínio publico sou alvo das leis britânicas de difamação, que são muito severas, enquanto ele não está sujeito a nada disso. É um mundo muito estranho.
O estudo em questão causou um susto mundial. Ainda se lembra do impacto que teve? Consegue descrevê-lo?
Ao início teve um impacto tremendo no Reino Unido porque nós não temos nenhuma lei que obrigue os pais a vacinar as crianças — é um sistema totalmente voluntário [à semelhança do que acontece em Portugal]. Andrew Wakefield participou numa conferência de imprensa a dizer que acreditava numa possível ligação entre a vacina tríplice e o autismo, e aconselhou os pais a não usar esta vacina e apenas a aceitar vacinas individuais — o que foi um guião, era parte do processo em que estava envolvido. Ninguém sabia que ele estava a receber muito dinheiro dos advogados para dizer estas coisas, mas quando ele o disse a comunicação social publicou muito material a sugerir, muitas vezes, que isto era uma boa ideia — os jornalistas estavam a colocar-se no lugar de cientistas. As taxas de vacinação caíram de uma forma dramática, penso que de 96% para menos de 50% em algumas partes de Londres. Começámos a ver surtos de sarampo. As taxas de vacinação continuaram a cair até surgirem os meus primeiros artigos, no início de 2004, e atualmente as taxas voltaram ao que eram antes. Mas nos EUA, por exemplo, estamos a ver muitos pais a rejeitarem vacinar os filhos.
Estudos falsificados são uma realidade frequente na medicina?
Para ser honesto, acho que esse é um dos aspetos mais importantes disto tudo. Se ele conseguiu fazer isto com esta investigação, que apenas envolveu 12 crianças e uns milhares de libras, o que mais se passa nos hospitais e nas universidades ao redor do mundo? Não falo apenas no domínio das vacinas, mas em todas as áreas da ciência. Para mim, isso é muito, muito preocupante, porque eu trabalhei neste caso durante 10 anos, todos os dias, para perceber o que se passou com esta investigação. O que acontecerá nas outras áreas da ciência onde nenhum jornalista consegue ter 10 anos de trabalho financiado? Acho que a história da vacina tríplice é um sinal preocupante, sobretudo à medida que a ciência chega a áreas que estão cada vez mais longe da compreensão do público. Isso pode ter sérias consequências para a humanidade. Será que estamos seguros, de um modo geral, face ao que se passa em hospitais e em universidades em todo o mundo?
Considerando esses casos, quem são os beneficiários?
A longo prazo ninguém beneficia, mas a curto prazo tem que ver, na maior parte das vezes, com investigadores e cientistas. Uma das coisas que descobrimos sobre Wakefield é que ele estava a tentar montar uma série de empresas que iriam explorar as suas alegações, incluindo vacinas individuais e vários produtos para o autismo. Muitas vezes percebe-se que as pessoas que estão envolvidas em ciência fraudulenta têm algum interesse financeiro pessoal. É muito difícil fazer alguma coisa sobre isso, é muito difícil ter, por exemplo, editores de publicações científicas a levar estudos falsos a sério porque cria um custo editorial para eles, é muito caro se tiverem de verificar se os seus artigos são ou não verdade. Os estudos que aparecem nas publicações científicas são anónimos, no sentido em que não se conhecem os pacientes ou, em alguns casos, as técnicas utilizadas e os dados estão envoltos em confidencialidade médica. As pessoas acreditam naquilo que leem em publicações médicas e, acredite, elas não deviam.
Mais do que qualquer outra pessoa, acho que os pais [que fizeram as denúncias iniciais] são as maiores vítimas deste processo.
Isso quer dizer que a credibilidade das investigações científicas não foi afetada?
Acho que o público ainda não estabeleceu essa relação. Há alguns jornalistas e algumas publicações no mundo que estão focados neste assunto, mas é muito difícil que o público também se foque. O susto das vacinas não foi propriamente bom para isso porque, de cada vez que se fala na vacina tríplice ou na segurança das vacinas, os médicos de saúde pública levam-nos todos para surtos de sarampo. Não quero relativizar a importância dos surtos de sarampo, mas nunca estive particularmente interessado nisso, mas outros jornalistas estão — se pensarmos de um ponto de vista jornalístico, os sustos relacionados com as vacinas são fantásticos porque, em primeiro lugar, é assustador e, depois, se isso se propaga há muita cobertura mediática. Se citarmos um médico a dizer “Vacinas causam autismo” isso é, de facto, uma história muito barata de se fazer, não exige muito esforço. Muitas organizações de media, sobretudo no Reino Unido, têm olhado para estas histórias como uma forma de entretenimento que assusta os leitores e vende produtos jornalísticos.
Está a querer dizer que os jornalistas não vão mais além, é isso?
Sim, e acho que se percebe porquê, sobretudo atualmente, com a pressão dos orçamentos e os jornalistas a terem cada vez menos tempo. É cada vez mais difícil para os jornalistas aprofundarem uma história.
Apesar de o estudo ter sido descredibilizado, ainda há famílias que o usam como argumento para não vacinarem os filhos. O que tem a dizer sobre isso?
Imaginemos uma mãe cujo filho é o centro do seu mundo e que, de repente, nota que há algo de errado com ele. Com o tempo começa a aperceber-se que o seu filho não é como as outras crianças, apesar de não saber do que se trata. A mãe vai querer saber porque é que isto está a acontecer. Estes pais querem uma explicação e foi isso que este homem, Wakefiled, fez. Este homem deu-lhes respostas, disse-lhes que a vacina era a culpada por o filho ser diferente. Muitos pais agarram-se a este homem porque ele deu-lhes uma resposta. Mais do que qualquer outra pessoa, acho que esses pais são as maiores vítimas deste processo.
O que aconteceu aos dois médicos que associaram as vacinas ao autismo?