No final de contas, o Brexit acabará por não acontecer“. A declaração, feita por um diplomata britânico que o Financial Times não identifica, indica que há quem acredite que a saída do Reino Unido da União Europeia ainda é evitável, apesar de ter vencido o Leave no referendo de 23 de junho.

Esta já foi uma das questões abordadas no início da semana no texto Verdades e mentiras sobre o Brexit. É certo que a União Europeia já vê o Reino Unido como tendo um pé de fora do clube, tanto que o segundo dia do Conselho Europeu, esta quarta-feira, já foi realizado com David Cameron regressado a Westminster. E quem ouviu Jean-Claude Juncker, o presidente da Comissão Europeia, a dirigir-se aos eurodeputados britânicos dizendo que “é a última vez que se sentam aqui”, não terá ficado com grandes dúvidas sobre o que acabará por acontecer.

Mas é um facto que o Reino Unido ainda não acionou o Artigo 50º do Tratado da União Europeia (revisto pelo Tratado de Lisboa), onde se estabelecem as condições em que um estado membro pode abandonar a UE. Aí, sim, o processo necessariamente de avançar e teria um prazo de dois anos para estar concluído. Até isso acontecer, há quem mantenha a esperança — e não apenas este diplomata citado pelo FT. Um antigo político bem conhecida, o ex-primeiro-ministro Tony Blair, disse claramente que pode haver tudo menos certezas nesta fase:

“Não nos excluiria da Europa para já, okay? Quero dizer, não estou a ver-nos a ter outro referendo. Mas não excluiria qualquer cenário neste momento.”

A ideia do segundo referendo foi avançada por várias figuras logo durante o fim de semana, com vários relatos de que algumas pessoas estariam arrependidas de ter votado Leave. Isto depois de ver a forte quebra da libra e algumas declarações por parte de líderes do movimento pela saída. Mas essa possibilidade tem perdido força à medida que os dias passam — como ilustra a posição assumida por Tony Blair.

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Sob pressão dos líderes europeus para avançar rapidamente para a ativação do Artigo 50º, ainda não é claro que isso esteja no horizonte próximo. Basta pensar que esta quinta-feira deu um passo em frente aquela que poderá ser a candidata mais forte à sucessão de David Cameron na liderança do governo — Theresa May — e a ministra, ao mesmo tempo que excluiu o segundo referendo, indicou que a invocação do Artigo 50º só deverá acontecer quando houver uma estratégia clara para a negociação.

Theresa May admitiu que o Artigo 50º, por vontade de um governo por si liderado, poderá não ser ativado antes do final do ano.

E o Reino Unido pode esperar até 2017 para começar a sair?

Esta é uma das questões mais complexas nesta matéria. O Artigo 50º indica, claramente, que tem de partir da iniciativa do país em causa pedir a ativação do artigo. Sendo assim, que direito tem a Europa para estar a pressionar o Reino Unido para que avance “rapidamente”? A questão é que em fevereiro houve uma negociação entre David Cameron e os parceiros europeus que resultou em algumas cedências ao Reino Unido, sendo que o agendamento do referendo era parte integrante do acordo final. Não se pode assim dizer que o referendo de 23 de junho tenha sido, puramente, um exercício interno.

É por esta razão que muitos líderes de governos europeus, incluindo António Costa, já disseram que já passamos o “ponto de não retorno”. Mas, na realidade, em termos formais esse ponto de não retorno só acontece quando for ativado o Artigo 50º.

O Conselho Europeu não tem qualquer autoridade legalmente prevista para obrigar um país a acionar o Artigo 50º. “Mesmo que um país viole os direitos, liberdades e princípios definidos pela Carta dos Direitos Fundamentais da UE, o pior que pode acontecer [a esse país] é perder os direitos de voto“, afirma uma nota do Commerzbank sobre as implicações legais do Brexit.

“Qualquer Estado-membro pode decidir retirar-se da União, no respeito dos termos da sua Constituição” (Artigo 50º)

O problema é que o Reino Unido não tem uma Constituição escrita. É dos poucos países mundiais com alguma dimensão que não tem Constituição formal. Mas há um princípio sempre seguido de subordinação ao Parlamento que indica que uma decisão desta importância teria de passar por uma aprovação dos deputados de Westminster. Por muito difícil que seja ignorar o desejo expresso por 17,5 milhões de britânicos, só com esse ok do Parlamento é que deverá ser possível avançar para ativação do Artigo 50º.

É aqui que pode ser decisivo saber quem avança para a sucessão a Cameron. Michael Gove, por exemplo, foi figura-chave da campanha pelo Leave e, já depois do referendo, deixou claro que defende uma “divergência gradual” com os parceiros europeus até à saída da União Europeia. Contudo, a outra favorita, Theresa May, apoiou o Remain (ficar na UE). Apesar de nesta quinta-feira May ter dito que “Brexit significa Brexit” e que o voto popular tem de ser respeitado, os pontos de partida de Gove e May não são comparáveis. A escolha dos Conservadores para o Parlamento poderá, portanto, ser decisiva.

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Michael Gove afirmou várias vezes que não avançaria, mas acabou por candidatar-se à sucessão a Cameron. Já Theresa May candidatou-se numa conferência de imprensa muito elogiada e é favorita.

Mas como é que o Reino Unido poderia, exatamente, acabar por não sair? Qual poderia ser o processo?

Numa nota enviada esta quinta-feira pelo Rabobank aos seus clientes, o banco holandês não esconde a sua preferência por um cenário em que o Reino Unido tivesse votado pelo Remain. Adverte, por isso mesmo, que as suas opiniões devem ser lidas à luz dessa preferência. Ainda assim, o Rabobank salienta que “o parlamento do Reino Unido tem uma predisposição pró-Remain“.

“Até à véspera do referendo, 629 dos 650 deputados britânicos tinham tornado pública a sua posição e 479 (73,7%) mostraram-se a favor da permanência”, lembra o Rabobank.

Isso não significa que o Parlamento britânico queira arriscar “ser visto como estando a ignorar a vontade do povo”. O Rabobank admite que “o risco de que o Reino Unido venha a invocar o Artigo 50º é muito elevado“. Ainda assim, eis aquilo que dá alguma esperança ao banco holandês de que o Brexit poderá ser revertido:

“É possível que os restantes 27 membros cheguem a um compromisso que dê um novo enquadramento ao debate do Brexit e isso seja suficiente para merecer uma nova consulta popular sobre este assunto — seja através de um segundo referendo ou, talvez mais provável, através de eleições antecipadas que funcionem, na realidade, como um novo plebiscito”.

Se, nos próximos tempos, a libra esterlina continuar a cair e as dificuldades económicas vaticinadas pelos Remainers se confirmarem, talvez haja muita gente que mude de opinião e isso contribua para inverter o resultado do referendo — que, recorde-se, não foi tão esmagador assim (52% vs 48%). É este o cenário de wishful thinking do Rabobank — ou talvez não tanto — para que o Reino Unido acabe por não sair da União Europeia.

Do ponto de vista da Europa, contudo, isso criaria um precedente perigoso — “mostraria que a União Europeia pode ser levada a negociar à mão armada“, ressalva o banco holandês.

Em alternativa, a estratégia sugerida por Jerry Seinfeld a George Costanza, na mítica sitcom Seinfeld, poderá ser uma opção.