Já tinha sido assaltada nove vezes quando se sentou perante um homem que tinha sido condenado pelo crime de furto. Luísa Barreiro queria deixar de sentir medo de cada vez que entrava em casa ou se encontrava sozinha. Queria também perdoar quem quer que a tivesse assaltado. Por isso, perante aquele homem, acabou por dizer o significado que o ouro furtado tinha para ela. Mais do que o valor, era uma lembrança da mãe. No final, o homem, que já tinha provocado dor idêntica a alguém, acabou por abraçá-la. Houve perdão.
O perdão entre o ofensor e o ofendido é uma boa definição para aquilo que é a Justiça Restaurativa. Um modelo já aplicado há mais de 30 anos em países como os Estados Unidos e que a associação Confiar-PF pretende implementar em Portugal, seja nas cadeias, nas escolas, em centros educativos ou mesmo através dos departamentos de ação social das câmaras municipais. Mas não é a única definição. Mais do que uma vítima perdoar um criminoso, a Justiça Restaurativa procura que o ofensor perceba os efeitos do seu crime na vítima. Porque só assim poderá interiorizar o que fez e melhorar o seu comportamento. Não reincidindo e integrando-se novamente na sociedade.
“Esta metodologia é altamente impactante, porque o sentimento de vitimização desaparece. A vítima vê o ponto de vista do ofensor e percebe que o crime não foi cometido diretamente contra ela, foi escolhida casuisticamente”, diz ao Observador o psicólogo forense Jorge Silva.
O psicólogo integra a associação Confiar-PF e é um dos “facilitadores”, assim se chamam estes intermediários, que testou o modelo no ISCSP (Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas) integrado num projeto de Justiça Restaurativa financiado pela União Europeia. No painel estiveram presentes três condenados por crimes como furto, roubo, utilização de arma proibida e tráfico de droga. E, do outro lado, Luísa Barreiro e um casal que já tinham sido vítimas de crimes semelhantes aos praticados por aqueles três homens. Não há correspondência entre ofensor e vítima. “A vítima vê naquele ofensor o espelho do seu ofensor e o ofensor vê através do testemunho da pessoa o que fez à sua vitima”, explica Jorge Silva.
Para Luísa Barreiro, estes encontros, ao longo de um mês e durante hora e meia de cada vez, foram “um processo doloroso”. “É interessante este confronto. Estarmos frente a frente, a vítima a chorar, sensibilizada, e eles estão a olhar para nós. A pensar que nunca lhes passou pela cabeça aquilo que provocam na vítima. Não percebem o valor afetivo daquilo que levaram.”
Da última vez que foi assaltada, a nona vez, Luísa, já aposentada, estava dentro do carro estacionado à espera da filha. Tinha a janela um pouco aberta quando um rapaz lhe deitou a mão ao pescoço e lhe arrancou a “última coisa que tinha”: uma gargantilha em ouro. Quando se refere, emocionada, à última coisa “que tinha”, fala num conjunto de peças em ouro deixadas pela sua mãe e às quais tinha um forte apego emocional. Todas as outras peças foram levadas em assaltos à sua casa. “Sempre que saímos de casa estamos com a preocupação de verificar se a porta foi bem fechada. Mas são pessoas que estudam a situação”, diz.
Reino Unido, primeiro país europeu a aplicar
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A primeira cidade europeia da Justiça Restaurativa foi Hull, no Reino Unido. Aqui, onde há uma forte comunidade piscatória e onde os homens saíam para pescar e as mulheres para vender peixe, os filhos ficavam sozinhos. Os mais jovens começaram a dedicar-se à criminalidade. O trabalho que seguiu os princípios da Justiça Restaurativa envolveu a polícia e as escolas e os resultados revelaram-se muito positivos.
O psicólogo Jorge Silva explica que estas sessões começam com uma entrevista inicial a cada um dos elementos, vítima e ofensores. Só depois se colocam frente a frente, quando são promovidos uma série de exercícios que os põem a falar sobre o que fizeram e sobre o que sentiram.
Luísa é uma vítima diferente. Também ela é voluntária da Confiar e faz voluntariado nas prisões. Já apoiou mais de 50 reclusos. Aliás, chegou a ser diretora adjunta de um estabelecimento prisional. Ainda assim, sente-se uma “vítima e bem vítima”. Mesmo percebendo que muitos dos autores dos crimes acabam por cair nas malhas do sistema, porque nunca foram devidamente “reabilitados”.
“Senti a diferença das outras vítimas, porque elas não tinham contacto com os reclusos e com a realidade deles. Foi muito positivo, porque eles foram postos numa perspetiva que nunca tinham avaliado. O ofensor nunca pensou que ao assaltar a casa estava a lidar com sentimentos das pessoas. E depois as lágrimas na nossa cara… É uma catarse, estamos de coração aberto. E não é nada fácil. E depois há o abraço no final, como é óbvio. É a tal reconciliação e perdão dos outros”, afirma Luísa.
Reclusos presos mudaram comportamento
A docente de Direito Penal na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Sónia Moreira Reis, foi quem coordenou uma experiência semelhante na cadeia do Linhó durante um mês e meio. Já tinha trabalhado este tema naquela cadeia, mas não através da Confiar. Aqui, foram quatro os reclusos e quatro as vítimas que participaram no painel de estudo. Os crimes: dois de violência doméstica, um deles com tentativa de homicídio, e outros dois contra a propriedade.
Também aqui não houve correspondência real entre agressor e vítima. Em comum, têm o crime que um praticou e de que o outro foi vítima. Mas não foi fácil. Um suspeito de violência doméstica é visto no meio prisional como alguém que cometeu um crime tão grave como a pedofilia, por exemplo. Por isso, estes reclusos raramente assumem os seus crimes.
60%
Não há números oficiais sobre a reincidência, mas dados da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais apontam para uma taxa de 46% de reclusos que voltam a cometer crimes. O psicólogo forense Jorge Silva acredita que este número atinja os 60% e que uma forma de reduzi-los poderá ser a partir da aplicação do modelo de Justiça Restaurativa, de forma a reinserir o recluso na sociedade civil.
“Ao princípio foi muito difícil eles falarem. Por um lado, tínhamos o medo das vítimas; e, por outro, o medo dos agressores, que receavam ser atacados. Tivemos que trabalhar a confiança e a empatia. Sabíamos o mínimo dos mínimos relativamente aos crimes pelos quais tinham sido condenados, fazia parte das regras não falar pelos ofensores. Eles têm que dizer por viva voz. Foi preciso trabalhar muito para assumir o que fizeram. Foi um trabalho difícil, duro e muito complexo”, explica Sónia Moreira Reis.
Primeiro, foi explicado a cada um dos intervenientes o que era isto da Justiça Restaurativa. Depois, foram feitas entrevistas individuais para os “facilitadores” perceberem se eles estavam preparados. Só depois aconteceu o frente a frente. “Foi muito difícil, foi duríssimo. Todo este processo foi árduo. O papel das vítimas, que nada ganharam do ponto de vista pecuniário, foi fundamental. O que partilharam, a sua experiência pessoal, foi muito marcante para todos”. No fim, foram os próprios reclusos que, num ato simbólico, ofereceram chocolates às vítimas. Todos trocaram contactos e ainda hoje falam.
70%
70% dos filhos de pais que cometeram crimes e que foram presos cometem crimes. Muitas vezes, refere o vice-presidente da associação Confiar, Luís Graça, estas crianças estão ligadas à prática de bullying dos reclusos e ao absentismo escolar. Estes jovens acabam por ter este tipo de comportamentos. Daí a necessidade de trabalhar com eles, usando um modelo de Justiça Restaurativa, por exemplo.
O comportamento destes reclusos na prisão melhorou. E a forma com que as vítimas olham para quem comete um crime também. “O nosso primeiro foco foi o que é a vítima e as suas necessidades, em que pensa, o que sente. Grande parte do trabalho foi focado nisto. A vítima não é quem está preso”, alerta Sónia Moreira Reis. “Tentamos mostrar que, embora a Justiça Restaurativa seja uma forma de justiça que preconiza o diálogo entre agressores e vítimas, pode prevenir o conflito”, acrescenta. Jorge Silva diz que esta forma de justiça pode ser usada para qualquer tipo de crime, exceto os que envolvem violência sexual e infantil. Ainda assim, há países que a aplicam em diversos crimes. Para o psicólogo forense, pode ser “um complemento ou uma ferramenta da justiça”.