Há um plátano oriental (Planatum orientalis, para os biólogos da botânica) plantado nas margens do rio Tejo, onde o frio dominava na terça-feira, 22 de novembro. Não havia forma mais simbólica de marcar mais um dia da Semana da Ciência e Tecnologia, que se celebra em Portugal desde 1996. Reza a lenda que foi debaixo de árvores como estas, verdejantes da primavera e encarnadas no outono, que os grandes filósofos gregos refletiram sobre o bem e o mal, sobre a condição humana, sobre o saber. Agora, no auditório do Pavilhão do Conhecimento, e à sombra de um plátano, nasceu também mais uma ideia: a Fundação Francisco Manuel dos Santos apresentou oficialmente a plataforma GPS, uma ferramenta ao jeito de uma rede social onde os cientistas portugueses espalhados pelo mundo se conhecem e onde nós, que por cá ficamos, podemos conhecer o percurso dos seus cérebros.
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“GPS” significa Global Portuguese Scientists.
Dizia o padre António Vieira que os portugueses têm “para nascer pouca terra, para morrer toda a Terra; para nascer, Portugal, para morrer, o mundo”. Os portugueses que o GPS – um acrónimo inventado pelo físico e reconhecido divulgador científico, Carlos Fiolhais – coloca no mapa são estes: os aventureiros, os inspirados pelo pensamento crítico próprio da ciência, aqueles a quem o mundo além fronteiras falou mais alto, mas a quem o país de origem ainda sussurra ao ouvido. Através de uma ferramenta em tudo semelhante a um Facebook, os cientistas portugueses pelo mundo podem inscrever-se no site e acenar a partir dos países onde trabalham para o resto do mundo: é assim que se conhecem, que trocam esforços entre eles e que encontram raízes nacionais do outro lado do planeta. E nós, mesmo os que não vivem entre caixas de Petri ou relatórios de estudos, podemos a partir dos nossos sofás saber por onde andam e o que têm para dizer os cérebros que importámos lá para fora. “É uma necessidade que temos, esta de conhecer os cientistas portugueses pelo mundo. O GPS conecta pessoas. Nós precisamos delas, ainda mais se forem cientistas. Mas onde estão eles? Vai passar a saber-se”, garantiu Carlos Fiolhais.
Imagine que tem um mapa à sua frente. Nesse mapa vão surgindo, minuto após minuto, pequenos pioneses (essa palavra tão portuguesa) com a esfera armilar desenhada onde podemos encontrar cientistas de qualquer área – das ciências tecnológicas às ciências sociais – um pouco por todo o mundo. O que o GPS faz é pegar no algoritmo do Google Maps e permitir que todos eles se inscrevam. É assim que sabemos que há um biólogo evolutivo em Adelaide (Austrália) chamado Bruno Simões, que estudou nos Açores, e que o antropólogo Francisco Freire está neste momento na Mauritânia, depois de ter estudado em Lisboa. Agora, com uma conta no GPS, o Francisco pode contactar o Bruno se precisar de ajuda de um biólogo para as suas investigações; e Bruno pode conversar com Francisco mesmo que só precise de falar com alguém sobre vinho do Porto e pastéis de Tentúgal. Mas o que moveu mentes destas lá para fora?
A fuga dos (nossos) cérebros
A resposta não pode ser simples: há muito a contribuir para que os nossos cientistas façam de Portugal um centro de formação para depois saírem de cá e aplicarem os seus conhecimentos lá fora – a chamada fuga de cérebros. Desde logo, a mobilidade científica: uma “coisa natural e necessária” em qualquer pessoa que queira ver a sua carreira e o seu intelecto a evoluir. É o que nos recorda David Marçal, coordenador do projeto GPS: “Há países, claro, que são importadores líquidos de cientistas. Portugal está numa posição em que é exportador porque há outros países que têm sistemas mais desenvolvidos e são polos de atração”. Para o bioquímico, isso é prova de que o país precisa de uma reforma científica e tecnológica para não só reter os nossos cérebros, mas também ser palco de ciência de qualidade. “Apesar da mobilidade natural, que leva cientistas a entrarem em laboratórios que não dominam e a ganharem novas valências, Portugal não tem de se resignar a ser um centro de formação superior. Temos de tornar as carreiras científicas mais atrativas, menos precárias e mais protegidas socialmente”.
Depois temos a herança histórica, que é um fardo que nos acompanha e que só depois da Revolução dos Cravos começa a tornar-se mais leve. No final do século XIX e inícios do século XX, a taxa de analfabetismo em Portugal rondava os 70%. Em Inglaterra, precisamente no mesmo período, essa taxa ficava-se pelos 3%: as pessoas eram convidadas a participar em discussões de âmbito científico e estavam inspiradas pelos avanços feitos por Charles Darwin nas áreas da evolução das espécies. Cá em Portugal, as discussões científicas estavam cingidas aos grupos sociais mais eruditos. “Durante grande parte do século XX, Portugal continuou a ser um país com baixas qualificações. Só a partir do 25 de Abril é que se começou a democratizar os graus mais elevados da educação em Portugal. É uma herança pesada que principalmente nas últimas décadas, depois da adesão do país à CEE, tem vindo a procurar recuperar“, considera David Marçal.
Recuperar não é apenas melhorar os equipamentos dos laboratórios, investir em mais estudos científicos e melhorar os planos curriculares em universidades. Recuperar é conquistar: é preciso levar a melhor ciência que se faz mundo fora até às casas dos leigos que não sabem como funciona um vírus, mas que têm de saber que eles existem e como devem ser tratados. Carl Sagan, astrofísico e um grande divulgador científico, escreveu no seu último livro que vivemos num tempo em que estamos completamente dependentes da ciência e da tecnologia, mas que muito pouca gente conhece a ciência e a tecnologia que nos permite ter a vida que temos. “Acho que é um perigo que uma sociedade muito dependente da ciência não a conheça fundamentalmente. As pessoas têm de perceber o que é a ciência, têm de ter cultura científica”, defende David Marçal.
Quando a ciência nos pisca o olho
E o coordenador do GPS não nega: este site também serve para isso. “Nós conseguimos aproximar os cientistas à sociedade portuguesa e estamos a falar da população, não apenas de outros investigadores. Eles agora estão mais acessíveis e querem ter reconhecimento e participar na sociedade portuguesa, ocupar o seu espaço no debate público para esclarecer as pessoas a quem servem”, explica o bioquímico que conduz o projeto. É possível fazê-lo sem “vulgarizar” a ciência ou fazer com que ela perca o rigor de que depende. É possível falar de ciência com o mesmo fascínio com que se via o “Espaço 1999” nos anos 70, a “Guerra das Estrelas” nos anos 80 e as aventuras de Buzz Lightyear às portas deste milénio. Arthur C. Clarke, um inventor e escritor, disse uma vez que “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia” – esta é a terceira lei que se estipulou quando dissertou sobre a relação entre o Homem e a tecnologia. O computador ou o telemóvel com que agora está a ler este artigo era, há cem anos, fruto de uma imaginação muito fértil. “Eu não acho que a ciência se esteja a aproximar do fantástico ou da ficção: eu acho é que há planos da ficção que se estão a tornar possíveis por causa da ciência“, corrige David. A ambição é, em certa medida, boa porque move esforços no mesmo sentido. São “aglutinadores”, adjetiva o coordenador do GPS. Olhe-se para o exemplo mais recente de Elon Musk, que à frente da empresa SpaceX está a por vários jovens a fazer as malas para partirem rumo ao planeta da guerra. Há quem lhe queira por travões, puxar os pés para a Terra, mas a NASA quando nasceu era igualmente sonhadora.
É aqui que entra a segunda lei de Clarke: “O único caminho para desvendar os limites do possível é aventurar-se um pouco além dele, adentrando o impossível”. Mesmo que os cientistas mais experientes e distintos torçam o nariz porque (e aqui vai a primeira lei): “Quando um cientista distinto e experiente diz que algo é possível, quase de certeza que tem razão. Quando ele diz que algo é impossível, ele está muito provavelmente errado”. Planos que normalmente parecem transcendentes ou fora de alcance – como ir a Marte, encontrar a cura para a sida ou reanimar um ser morto – são normalmente os mais excitantes para a população e isso, considera David Marçal, é explicável de forma muito simples: criam empatia. Ver um humano a pisar Marte, a desafiar o poder de um vírus ou a rebaixar a morte é ver toda a humanidade, um pedaço de cada um de nós, a fazer mesmo. Quando Kennedy prometeu aos norte-americanos que iam ser os primeiros a pisar a Lua provou exatamente isso: pôs as fábricas a mexer, as universidades de engenharia em profusão e um país movido por uma missão. Ora, nem toda esta gente sabia bem como levar humanos para a Lua. Mas estava completamente disposta a que parte dos seus impostos fosse investida no progresso científico.
É também isso que move o GPS. E David Marçal garante que o código genético desta plataforma, de cientistas para cientistas e para um país inteiro, tem o objetivo da divulgação científica num dos seus genes: “As pessoas percebem a importância da ciência, sabem que vivem melhor graças a ela e que é na ciência que está a esperança. E sabem por um motivo muito simples: porque estão vivas”.
Última atualização: 2 de dezembro de 2016 às 15h38