Título: “A Doença, o Sofrimento e a Morte Entram Num Bar”
Autor: Ricardo Araújo Pereira
Editor: Tinta-da-China
Páginas: 112
Preço: 13,90€

ricardo araújo pereira

O título do mais recente livro de Ricardo Araújo Pereira (RAP) é uma escolha muito feliz, uma vez que nele encontramos aquele que me parece ser o resumo ideal de alguns dos traços mais comuns tanto do humorista como do livro que se acaba de publicar. Começamos com um tom sério e pesado (A Doença, o Sofrimento e a Morte) que é rapidamente deflacionado, transformando-se num início famoso de um sub-género de anedotas tipicamente anglo-saxónicas. Neste livro, RAP, sempre refugiado num estilo auto-deprecatório, vai procurar mostrar que o humor não é uma parvoíce a ser remetida para programas televisivos ligeiros, mas uma forma literária respeitável que exige trabalho e com uma linhagem que não pode ser menosprezada (basta reparar que o índice remissivo do livro ocupa cinco páginas povoadas de nomes como Pessoa, Wilde e Jesus Cristo), enquanto se descreve indirectamente a si mesmo como um herdeiro do melhor humor inglês e americano. Mas faz isto sem nunca se levar muito a sério e pedindo-nos que façamos o mesmo.

Ler este livro como a espécie de manual de escrita humorista que a capa sugere seria, no entanto, um erro, tal como seria esperar dele uma historiografia precisa das origens do humor. Numa recente entrevista dada ao Público, RAP descreve o esforço de fazer humor como o de lutar mano-a-mano contra uma enguia e essa talvez seja a melhor metáfora para descrever o livro. Mal abrimos a primeira página, encontramos cinco diferentes epígrafes de escritores muito respeitáveis como Shakespeare, Beckett, Camilo Castelo Branco, Sartre e Chesterton, o que nos deixa à espera de um livro sofisticado e com altas pretensões académicas, que são imediatamente descartadas pela epígrafe final de George Foreman sobre uma luta contra Muhammad Ali. Logo depois, viramos a página e encontramos um poema sobre o caraças. E é desta tensão entre alguém que tem coisas importantes para nos dizer, mas que se recusa a ser encarado como algo mais do que um palhaço que o livro (e, aliás, a carreira de RAP) vive. Em muitos momentos, RAP alega que não sabe quase nada daquilo de que quer escrever, uma sugestão que não podemos levar muito a sério por ser rapidamente desmentida pela evolução do texto.

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Imaginemos um homem de meia-idade que entre num consultório médico por culpa de uma interminável crise de soluços. Perante isto, o médico começa por lhe dizer que a mesma se poderá dever a uma crise alérgica. De seguida, porém, o médico rebate essa possibilidade, dizendo que, se fosse uma crise alérgica, manifestar-se-iam sempre outros sintomas que o paciente não tem e desata a elencar, descartando logo a seguir, uma interminável lista de possíveis enfermidades, desde tumores malignos a refeições mal digeridas, o que faz o paciente oscilar, naturalmente, entre o pânico e a serenidade. No final, com o paciente já em completo desespero por um diagnóstico, seja ele qual for, o senhor doutor conclui, dizendo que se parece tratar, afinal, de cancro nos ovários, mas que, seja como for, o melhor seria com certeza consultar algum médico, saindo do consultório a rir e a correr, deixando o paciente espantado com o absurdo do episódio.

A história acima poderia resumir o percurso do livro. RAP, com uma mestria e uma capacidade de síntese notáveis, acompanha o leitor por inúmeras (aparentemente doze, sendo que algumas dessas são, na verdade, versões umas das outras) tentativas de resposta à pergunta “O que é o humor?”, todas elas ilustradas com exemplos claros e inteligentes que podem ser extraídos tanto de um quadro de Jacques-Louis David como de um episódio de Seinfeld. Isto, claro, para além dos exemplos que o próprio escritor cria, recorrendo ao seu enorme talento criativo, sem nunca chamar a atenção para isso, uma vez que chamar a atenção para as suas próprias piadas seria, como todos sabemos, o maior erro de um humorista. À medida que uma nova teoria surge, vamo-nos apercebendo de que cada uma destas teorias “explica apenas parte do fenómeno. Mas, mesmo todas juntas, parecem ficar aquém de uma explicação satisfatória” (página 19). Ficamos então à espera que RAP conclua que tentar resumir o humor a uma única causa e a uma única origem seria demasiado redutor. Só que não é isso que RAP faz no final do seu livro. Em vez de acabar no tom tipicamente deflacionado, sugerindo não ser capaz de chegar a qualquer conclusão, o livro termina com uma ideia a que o humorista recorre muitas vezes e que não parece muito promissora, tal como a possibilidade de um homem de meia-idade ter cancro nos ovários.

Já no último capítulo (perspicazmente apelidado de “Últimas Palavras”), RAP invoca o mito de Deméter e um monólogo famoso de Hamlet para ilustrar a ideia de que é o riso que nos separa dos animais e de Deus propondo que “o homem é o único que ri porque também é o único que tem consciência da sua própria extinção” (página 108). Sendo verdade que o homem é tanto a única criatura que ri (se excluirmos, claro está, as hienas da equação) como a única com consciência da sua própria extinção, é difícil encontrar uma relação de causalidade forte entre essas duas verdades, como RAP sugere, tal como seria difícil argumentar que somos o único animal que tempera a comida por sermos os únicos (se excluirmos, claro está, os outros primatas) a ter um polegar oponível que nos permite mergulhar um dedo na sopa sem grandes consequências. Não é que não seja razoável achar que muitas vezes nos rimos para conseguirmos lidar com o pânico da nossa finitude (tal como não é absurdo achar que muitas vezes usamos o polegar para medir quão apurada está a canja), o problema é que descartar todas as outras explicações para o humor que RAP tão argutamente apresentou em detrimento desta parece precipitado.

Uma vez, há já muitos anos, estava a jogar à cabra-cega num jardim com uns amigos. O meu amigo vendado, como é da natureza da cabra-cega, estava a entrar em desespero completo por não conseguir encontrar ninguém, até que uma senhora rechonchuda de meia-idade se aproximou dele. O meu amigo não foi de modas e mal a apanhou arremessou-a para o chão com violência e, radiante de felicidade, disse o nome do jogador que achava ter capturado. Enquanto isto acontecia, eu, indiferente ao pânico do meu amigo e à consternação da senhora caída, ria-me muito. Mesmo, mesmo muito.

Poderia, para justificar ter-me rido tanto, recorrer a várias teorias elencadas no livro: a constatação da minha superioridade cognitiva em relação àquele meu amigo vendado; a compreensão de uma incongruência entre o que aquele meu amigo esperava ver ao retirar a venda e o que se passou; a adição de distância ao drama (aquilo não me estava a acontecer a mim); ou a frustração da expectativa que o meu amigo tinha de poder sair da sempre ingrata posição de cabra-cega. Poderia até recorrer a uma outra teoria qualquer, como, por exemplo, a de que eu sou um palerma. No entanto, ver nisto uma reacção à consciência de que vou um dia morrer parece-me exagerado.

Quer isto dizer que o livro de RAP está assente num erro? Quer apenas dizer que, como aliás o próprio alerta várias vezes, não devemos lê-lo à procura de uma resposta definitiva ao que quer que seja. RAP é, essencialmente, um extraordinário humorista e um escritor muito talentoso e, por isso mesmo, se lhe apontarmos esta incoerência ou uma outra qualquer, ele limitar-se-ia a responder-nos que não é médico e sairia a correr de estetoscópio em punho.

João Pedro Vala é aluno de doutoramento do Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa.