Recuemos a 2003, o ano da mudança. Quando Orna Donath começou uma investigação sobre homens e mulheres israelitas que não querem ser pais. As conclusões associadas à sua tese de doutoramento tiveram uma repercussão tal que, hoje, há quem considere a socióloga da Universidade de Telavive o “rosto global das mães arrependidas”, uma expressão à partida invulgar mas que dá destaque a um tema ainda considerado tabu.

Durante a investigação houve uma frase em particular que ficou retida na memória da socióloga: “Se não fores mãe, vais arrepender-te”. Por algum motivo a afirmação fugia da boca de terceiros com enorme facilidade, pelo que Donath começou a interessar-se pelo outro lado da moeda, a cara da coroa: há quem se arrependa de ter sido mãe?

O estudo em questão envolveu entrevistas a 23 mulheres, algumas já avós, que se arrependem de terem sido mães. É nesse contexto que a investigadora escreve que a maternidade pode ser “uma fonte de concretização pessoal, prazer, amor, orgulho e felicidade”, mas também “um reino de aflição, desamparo, frustração, hostilidade e desilusão”. Também Orna não quis ser mãe, uma opção de vida que lhe deu, por vezes, direito ao rótulo “aberração”, sobretudo num país onde as mulheres têm, em média, três filhos.

O estudo deu origem a um livro, publicado em Espanha com o título “Madres arrepentidas: Una mirada radical a la maternidad y sus falacias sociales” [Mães arrependidas: um olhar radical sobre a maternidade e as suas falácias sociais] — além de Espanha foi também publicado na Alemanha, onde teve e continua a ter muito impacto. Em 2017 a obra de Donath chegará a mais oito países, Portugal incluído (segundo o site Delas, será publicado pela editora Bertrand, embora a data de lançamento ainda não seja conhecida).

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Fúria e insultos de um lado, acolhimento do outro. A autora e investigadora não tem medo de pôr o dedo numa ferida que, com o tempo, torna-se cada vez mais profunda. Orna Donath está mais do que habituada a falar à imprensa, pelo que, tendo em conta as muitas entrevistas que já deu, reunimos as principais de ideias da mulher que diz não existir relógio biológico ou instinto maternal.

A (falsa) ideologia da maternidade

A ideia da pressão social para preencher o papel de mãe é uma das mais defendidas/argumentadas por esta investigadora de 40 anos. Numa entrevista ao jornal espanhol El País, em outubro deste ano, Donath deixa claro que a sociedade faz a promessa num só tom, ao garantir que todas as mulheres saem a ganhar por serem mães.

Tudo não passa de um impulso ideológico para se ser mãe, diz a socióloga, citada pelo The Guardian. Impulso esse que pode ser encontrado em todas as esferas da sociedade e que está assente na ideia de que a felicidade feminina só está completa através da maternidade.

As mulheres que assumem que não querem ser mães são, assim, vistas como egoístas e pouco femininas. Por outro lado, a investigadora defende que quando a experiência da maternidade não é tão cor-de-rosa como o inicialmente pensado, muitas mulheres acabam por se sentir verdadeiros monstros — é, então, necessário baixar as expetativas de maneira a existir menos sentimento de culpa.

Mulheres donas do próprio corpo

“A presunção social de que toda a mulher quer ser mãe, ou precisa de ser mãe em algum momento da sua vida, está profundamente enraizada em vários países, incluindo em Israel”, lê-se no estudo citado. A socióloga já antes argumentou que o estudo — e o livro que dele derivou — tem como principal objetivo criar um espaço de debate para que se fale abertamente sobre esta forma de arrependimento.

Donath defende que as mulheres são donas do próprio corpo e que deveriam ter mais autonomia e controlo sobre as suas próprias vidas:

Precisamos de deixar para trás todos os estereótipos sobre as mulheres e começar a tratá-las como seres humanos, com as suas diferenças, virtudes e defeitos, [capazes das] suas próprias decisões. É preciso dar às mulheres a oportunidade para que elas sejam [tudo] o que quiserem ser”, disse, desta vez numa entrevista ao El Mundo.

A dificuldade em assumir o arrependimento

Também ao jornal El Mundo, a investigadora argumentou que, para uma mulher, é particularmente difícil estar consciente de que lamenta ter sido mãe. “O arrependimento não é uma emoção fácil. Não só em relação à maternidade, mas em geral. Demora tempo até se compreender que se cometeu um erro ao ter filhos […]. Isto acontece mais vezes do que imaginamos.”

Na investigação desenvolvida pela socióloga há uma distinção clara: o arrependimento expresso é em relação à experiência (maternidade) e não em relação aos filhos. “A maior parte das mães salientou que ama os filhos, mas que odeia a experiência da maternidade. (…) Este arrependimento não tem nada que ver com as crianças em si”, lê-se no estudo.

Para Donath, o arrependimento é ainda considerado um sentimento monstruoso e quem o admite sentir é automaticamente catalogada como má mulher ou má mãe. “Tens de gostar de ser mãe porque é o mais importante que te pode acontecer enquanto mulher, tal como a sociedade nos diz”, chegou a explicar.

A “mentira” do instinto maternal

Para a socióloga existem dúvidas quanto à expressão instinto maternal: “Sim, tentamos proteger a vida do bebé, damos-lhe comida, é uma criatura indefesa, mas isso não tem de ser necessariamente equivalente a instinto maternal. Em todo o caso, se existir, não é domínio exclusivo das mulheres”, disse ao El País.

Relógio biológico como instrumento político

E o que dizer do relógio biológico? Numa entrevista recente ao site português Delas, Donath explicou que o relógio biológico pode ser encarado como uma ferramenta política cuja função é colocar a mulher no seu devido lugar:

Esta imagem emergiu nos anos 70 do século passado, ao mesmo tempo em que cada vez mais mulheres decidiam se queriam casar-se ou não, escolhiam com quem fazer sexo, e saíam às ruas para lutar pelo direito a fazer um aborto – o que significa, lutavam por ter mais propriedade sobre seus corpos e vidas. Não é uma coincidência que a imagem que tenta alinhar-nos e levar-nos de volta ao ‘nosso lugar natural’ eleve sua voz precisamente ao mesmo tempo”.