Na China venderam-se, em 2016, qualquer coisa como 23,9 milhões de automóveis de passageiros e comerciais ligeiros. Um valor recorde que faz deste, inquestionavelmente, o maior mercado automóvel do mundo. Determinante, portanto, tanto para os fabricantes locais, como para quase qualquer marca que pretenda vingar nos dias que correm – assim não espantando que 57% das vendas tenham sido asseguradas por modelos oriundos de fabricantes estrangeiros.

E o raciocínio é válido, também (ou sobretudo…), para as propostas mais luxuosas, radicais e exóticas, que voltam a ter na China o seu mercado de eleição – esperando-se que dentro de dois anos seja o mais importante do planeta também para este tipo de proposta. E voltam porque, em 2014, as vendas deste tipo de automóvel retrocederam por lá qualquer coisa como 20%.

Tudo porque Xi Jinping, o mais poderoso presidente chinês desde Deng Xiaoping, no cargo desde 2012, encetou em 2014 uma cruzada não só contra o consumo desenfreado, como contra a corrupção. Que não abrandou, tendo em 2016 sido punidos na China, por este delito, 415 mil detentores de cargos públicos, mais 23% do que em 2015.

Ora, tendo os automóveis de luxo servido tantas vezes de presentes para garantir favores políticos, é fácil perceber porque caíram as vendas. Havendo a isto que juntar a criação do imposto de “ultra luxo” de 10% para os automóveis de preço superior a 175 mil euros, como forma de promover um consumo mais razoável.

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A Ferrari tem na China um dos mercados com maior índice de crescimento

Mas, paulatinamente, as vendas deste sector têm vindo a crescer e, em 2016, atingiram já valores próximos dos de 2013. Com o declínio das ofertas de automóveis relacionadas com a corrupção a serem compensadas pelo aumento do consumo privado. O que não espanta quando se tem em linha de conta que o número de milionários chineses aumentou nada menos do que 10% em 2016 (prevendo-se que duplique para qualquer coisa como 1,7 milhões de pessoas até 2026), e que a confiança dos consumidores naquele país é a mais elevada desde o eclodir da crise financeira global que, naturalmente, não deixou de afectar a economia chinesa, que até então batia consecutivos recordes de crescimento anual.

A força dos números

Nada como os números para ilustrar o peso que o mercado chinês assume para a operação dos construtores mais reputados do planeta. Em 2016, Maserati, McLaren e Porsche bateram por lá os seus recordes de vendas. As da Lamborghini subiram mais de 50% relativamente a 2013. A Bentley não tem mãos a medir com as encomendas para os seus modelos mais dotados e, claro, onerosos.

Em concreto, a Aston Martin faz saber que tem já esgotada a produção do DB11 alocada este ano para o mercado chinês, onde espera vender 270 automóveis, contras os 170 vendidos em 2016. A Ferrari assume que a China é determinante para a sua operação a nível global. As vendas da Maserati subiram nada menos do que 119% face ao ano passado, o que levou a marca a decidir aumentar em 50%, para um total de 75, o número de pontos de venda na China (que partilha com a Alfa Romeo). A McLaren estabeleceu como objectivo vender 300 automóveis na China em 2017, depois de praticamente ter duplicado as suas vendas em 2016, para 235 unidades.

Mudar o paradigma

Mas, na China, nem tudo são rosas neste particular. Desde a sua abertura ao exterior, há cerca de 20 anos, as marcas que pretendam operar no país são obrigadas a encontrar um parceiro local, e não podem deter mais do que 50% da nova sociedade. Uma medida que, até agora, tem funcionado bem em prol dos fabricantes locais, em especial os detidos pelo Estado.

Segundo a associação chinesa do sector, estes lucraram, em 2014, 9 mil milhões de euros com estas parcerias. Com as três maiores marcas estatais chinesas (SAIC, Dongfeng e Guangzhou) a registarem, no seu conjunto, 7 mil milhões de euros de lucros em 2016, ou seja, quase quatro vezes mais do que em 2007.

Algumas das marcas chinesas terão dificuldades em sobreviver, caso o Governo termine com o actual proteccionismo à indústria local

Facilmente se compreende, pois, que muitos vejam com bons olhos o abandonar (no mínimo, o afrouxar) desta política proteccionista. Casos da General Motors, da Nissan ou da Volkswagen, que já têm na China o principal destino dos seus produtos, e cujos resultados financeiros decerto melhorariam em vários milhares de milhões de dólares caso pudessem assumir o controlo total, ou pelo menos maioritário, das suas operações no país. Até porque, por lá, as margens tendem a ser superiores às conseguidas na Europa, nos EUA ou no Japão.

Pressão adicional nesse sentido tem sido feita pela nova administração norte-americana. Já desde o período de campanha eleitoral que Donald Trump tem manifestado a sua intenção de avaliar os motivos pelos quais existe um déficit em quase todas as trocas comerciais realizadas pelos EUA, com a China à cabeça, em que o saldo lhe é desfavorável em 45%. Trump já ameaçou mesmo impor uma taxa de 45% aos produtos importados da China, havendo rumores que apontam no sentido de o seu homólogo chinês ter dados sinais de estar disposto a abdicar do referido proteccionismo, no encontro que juntou ambos, no início deste mês, na Florida.

Aliás, na China, esta discussão dura, pelo menos, desde 2013. Nos corredores do poder, os que defendem uma maior liberalização sustentam o seu argumento na necessidade de os fabricantes locais serem, por esta via, forçados a inovar e a aumentar a qualidade dos seus produtos em todos os domínios. Outra das defensoras da medida, e subscritora do argumento, é a Geely, proprietária da Volvo, e que acaba de mostrar no Salão de Xangai o primeiro modelo da recém-criada Link & Co., marca decididamente apostada na inovação a diversos níveis.

O futuro passa por aqui

Mas também existe o outro lado da questão, pois se os fabricantes estrangeiros tomarem conta das suas operações no território, decerto que os locais sofrerão um forte revés. Veja-se o exemplo da SAIC, a maior empresa do sector, e parceira da General Motors e da Volkswagen: dos 5,67 milhões de automóveis de passageiros que vendeu em 2016, apenas 6% foram chineses, nomeadamente da Roewe e da MG. Adivinhando-se que a situação da Dongfeng e da Duangzhou não seja muito diferente.

E isto acontece, em boa parte, porque as marcas de automóveis chinesas, na sua maioria, se encontram ainda numa fase embrionária da sua existência. Praticamente desconhecidas fora do país, mesmo em “casa” ocupam os segmentos mais baixos do mercado, carecendo de um forte desenvolvimento em termos de imagem, e de produtos com outro nível de qualidade, nos mais variados capítulos.

Por isso, também não faltam os que defendem a manutenção do actual estado de coisas. Alegando que, com uma hipotética liberalização, quase todos os construtores chineses estarão condenados à extinção, incapazes de concorrer com os seus homólogos estrangeiros e respectivos produtos, mais evoluídos e apelativos.

A poluição atmosférica foi o motor para a transformação da China no maior mercado para veículos eléctricos

Como em tudo, há quem esteja como que a “meio caminho” entre as duas opções. É esse, curiosamente, o caso das marcas premium alemãs: todas se afirmam satisfeitas com as parcerias que estabeleceram, embora não enjeitando, antes aceitando de bom-grado, uma outra liberdade para assumirem uma maior participação nas sociedades que estabeleceram.

Certo é que, de uma forma ou de outra, pela China passará o futuro da indústria automóvel como hoje a conhecemos. E até num horizonte temporal mais alargado, considerando que é por lá que, actualmente, vigoram das medidas mais exigentes no domínio da propulsão eléctrica, o que poderá fazer da China um dos principais, se não o principal, pólo de desenvolvimento daquela que é tida como a mobilidade do futuro.