De que forma a massa muscular (magra) pode influenciar o tratamento do cancro? E porque é que é tão importante assegurar que os doentes oncológicos ingerem uma boa quantidade de proteína? Trabalhando num dos maiores centros de investigação nesta área, a nutricionista Carla Prado alerta para o problema da perda severa de massa magra durante os tratamentos oncológicos e para as complicações associadas à baixa quantidade de massa muscular.

Mais importante que o peso, sublinha, é a composição corporal dos pacientes, ou seja, perceber de que forma estão distribuídas a massa magra e a massa gorda pois “é do músculo que o corpo retira células para defender o corpo”. E quando essa massa magra é baixa, compromete o sucesso dos tratamentos, garante. E cita uma metanálise que mostra que “doentes com pouca massa muscular têm 1.44 vezes mais chances de morrer mais cedo do que os que têm mais massa muscular”.

Carla Prado tem estudado, nos últimos anos, a relação entre a gordura visceral e a diminuição da massa magra e o impacto que a composição corporal dos doentes tem no tratamento oncológico e na sobrevida. Professora na Universidade de Alberta do Canadá, especializada em alimentação, nutrição e saúde, Carla Prado formou-se em nutrição no Brasil, onde nasceu, e em 2004 decidiu rumar ao Canadá onde fez o doutoramento e o pós-doutoramento em nutrição e metabolismo no Instituto do Cancro em Alberta. Seguiu-se um segundo pós-doutoramento pelo Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos.

Esteve em Portugal, na semana passada, a convite do grupo Luz Saúde para falar no congresso internacional “Leaping Forward Oncology” e o Observador esteve à conversa com a nutricionista.

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No cancro da mama e da próstata os doentes ganham gordura e perdem músculo e isso é o pior caso”

Porque é que a questão da composição corporal é tão importante quando falamos de doentes oncológicos?
Quando pensamos em cancro, pensamos naquela pessoa bem pequena e de peso baixo, mas mais de 50% dos pacientes com cancro, mesmo em Portugal, têm sobrepeso ou até mesmo obesidade. E estudos mostram que 50% dos doentes com um índice de massa corporal (peso) normal, apresentam baixa quantidade de massa magra (sacopérnia). A verdade é que só o peso da pessoa não nos diz quão saudável ela é. Duas pessoas podem ter o mesmo peso na balança, mas a composição corporal (quantidade de músculo e gordura) ser diferente. Uma pode ter pouca massa muscular, outra média e outra muita. E o problema é que a pouca massa magra (massa muscular) pode estar escondida pelo peso. E o tratamento ainda faz perder mais. Por exemplo, no cancro da mama e da próstata os doentes ganham gordura e perdem músculo e isso é o pior caso. Chama-se obesidade sacopérnica. O doente até pode perder peso, mas a proporção é toda bagunçada.

E qual o problema de ter pouca massa magra no caso dos doentes oncológicos?
Quando um doente tem pouca massa magra durante o tratamento, a qualidade de vida é menor e a pessoa nem consegue fazer atividades comuns como sentar e levantar da cadeira, entrar e sair do carro, abrir uma garrafa. Ou seja, os movimentos fáceis tornam-se difíceis e os doentes ficam mais dependentes.

O músculo é um tecido responsável pela imunidade. É uma reserva de nutrientes, de aminoácidos e proteína. É do músculo que o corpo retira células para defender o corpo.”

Além da fraqueza, normalmente associada aos tratamentos, há outros riscos decorrentes de uma baixa taxa de massa magra?
Sim, descobrimos que estes pacientes quando recebem quimioterapia desenvolvem toxicidade severa porque não conseguem lidar com a droga e o corpo não consegue nem combater o cancro nem receber o tratamento, e, quando submetidos a cirurgias, desenvolvem complicações e ficam mais tempo no hospital. Por fim, o tempo de sobrevida (que é o tempo de vida a partir do diagnóstico) é menor. Descobrimos também que até o cancro já curado pode voltar mais rápido.

Mas já perceberam porquê? Qual o papel da massa magra?
O músculo é um tecido responsável pela imunidade. É uma reserva de nutrientes, de aminoácidos e proteína. É do músculo que o corpo retira células para defender o corpo. Ainda não sabemos bem os mecanismos, mas sabemos que é importante.

E como se consegue que um doente oncológico aumente a massa magra?
Há nutricionistas que podem prescrever dietas, dando quantidades diferentes de proteína para ver quanta massa magra os doentes ganham e como isso vai influenciar o tratamento. Nós já recrutámos 10 pacientes com cancro colorretal e estamos agora a aplicar dieta com diferentes quantidades de proteína. O estudo começou há oito meses, mas os resultados preliminares revelam que se consegue prevenir a perda de massa magra durante os tratamentos.

Mas essa dieta inclui suplementação alimentar?
O nosso estudo é só com alimentação mas, nalguns casos, para atingir a quantidade de proteína pretendida, uma das refeições pode ter um pozinho (proteína power).

Qual a importância aqui da proteína?
O músculo, a massa magra, é feito de proteína. E quando o corpo tem uma boa quantidade de proteína o sistema imunitário vai fortalecer-se e naturalmente vai combater o cancro.

É preciso que haja o acompanhamento de um nutricionista e pensar no que é que os doentes oncológicos conseguem comer.”

E como se aplica essa dieta? O mais comum quando se faz um tratamento de quimioterapia é sentir enjoos e perda de apetite.
Sim, daí a importância da medicina individualizada. É preciso que haja o acompanhamento de um nutricionista e pensar no que é que os doentes oncológicos conseguem comer. Por exemplo, se o suplemento for de baunilha o doente vai enjoar. É preciso estudar o alimento. E as empresas de nutrição que estão a produzir estes produtos também devem pegar nestes elementos e pensar em que tipo de nutrientes precisam este doentes e de acordo com isso produzir esses produtos.

Esta preocupação com a massa magra e a proteína é válida para qualquer tipo de cancro?
Sim. Isto aplica-se a todo o tipo de cancro e a qualquer estágio. Aliás, se compararmos um doente com cancro de estadio 1 e outro com cancro em estadio 4, se o primeiro tem pouca massa muscular e o segundo tem muita, o tempo de sobrevida é menor no primeiro caso. Segundo uma metanálise recente, que inclui 37 estudos e mais de 7.700 pacientes, doentes com pouca massa muscular têm 1.44 vezes mais chances de morrer mais cedo do que os que têm mais massa muscular, independentemente do tipo de cancro e do estadio do mesmo.

Mas qual o nível ideal de massa magra?
Varia consoante a idade e o peso, mas o sexo é o mais importante.

E como se pode avaliar a composição corporal?
Há vários métodos a serem desenvolvidos. Toda a gente diz que o DXA, o teste para a osteoporose (densiometria), também mede a composição corporal e depois dizem: ‘ah, mas é caro’. Mas a verdade é que todas as linhas de pesquisa médica se desenvolveram com máquinas e nós continuamos a medir o peso que Hipócrates já media. Com estas máquinas que se usam para fazer tomografias computorizadas (TAC), juntando-lhes um software, podemos avaliar a composição corporal, na 3ª vértebra lombar.

Porque é que então os hospitais não seguem esta prática e não usam esse software? Porque é caro?
Para utilizar na prática clínica ainda está no início. O primeiro artigo que publicámos sobre isto foi em 2008. É um assunto novo ainda e os médicos estão céticos, embora já haja evidência suficiente.

Além da dieta, qual a importância do exercício físico também durante os tratamentos?
É muito importante! É que o músculo é feito de proteína, mas o exercício estimula o crescimento das células e é também muito importante. É importante que pacientes com cancro procurem ajuda. Você quando não trata disto não consegue tratar o cancro nem metaboliza a droga da quimioterapia, porque não tem massa magra suficiente.