Com a quase totalidade do país a viver um cenário de seca, pouca gente pensa em cheias. Mas a Câmara Municipal de Lisboa vai finalmente avançar com o processo de construção de dois túneis de drenagem para escoar a água de chuvas intensas para o rio Tejo. O projeto, que entrou no final de julho em consulta pública, só vai entrar em obras provavelmente no próximo ano deverá ficar concluído em quatro anos, ou seja, em cima de novas eleições autárquicas.
O plano para desenvolver o Plano Geral de Drenagem de Lisboa recebeu a luz verde final numa reunião camarária em junho e foi remetido para a avaliação de impacte ambiental pela autarquia à Agência Portuguesa de Ambiente. O investimento global é de 180 milhões de euros, mas obra principal e com mais impacto é a construção de dois túneis, um de 5,5 quilómetros entre Santa Apolónia e Monsanto e outro de 1,5 quilómetros, entre Chelas e o Beato, orçados em 85 milhões de euros. Os estudos prometem uma solução para 100 anos que pode evitar neste período cerca de 20 inundações graves com prejuízos de centenas de milhões de euros.
É sobretudo por causa da extensão do primeiro túnel que a obra vai ser submetida à avaliação de impacte ambiental. A opção de escavar a grande profundidade — o túnel de Monsanto/Apolónia atinge mais de 70 metros de profundidade em algumas áreas, enquanto na galeria Chelas/Beato, a profundidade chega a 50 metros — é justificada com o objetivo de “reduzir as intervenções e perturbações à superfície de forma muito significativa”
Apesar destas dimensões, o estudo de impacte ambiental encomendado pela autarquia, diz que a obra não vai afetar grande parte de Lisboa, “pelo facto de a construção ocorrer , maioritariamente em profundidades”. A fase de construção prevê intervenções à superfície em seis zonas de Lisboa — Campolide, Avenida da Liberdade/Santa Marta, Avenida Almirante Reis, Santa Apolónia, Chelas e Beato, ainda que o resumo técnico entregue para o processo de avaliação de impacte ambiental refira que serão “intervenções muito localizadas”. Este resumo sintetiza os vários documentos na consulta de estudo de impacte ambiental realizado pela empresa 4RS.
As seis áreas da cidade que vão ter intervenções
Em causa estão obras para a entrada do túnel Monsanto-Santa Apolónia em Campolide (zona 1 no mapa), intervenções em pontos localizados na Avenida da Liberdade e Rua de Santa Marta (zona 2) e a Avenida Almirante Reis (zona 3) e a saída para o rio em Santa Apolónia (zona 4) que será construída em vala. No caso do túnel Chelas-Beato, as intervenções à superfície vão ocorrer em zonas muito localizadas de Chelas (zona 5) e do Beato (zona 6).
As intervenções localizadas e o seu impacto
Ruído, limitações no trânsito, mais camiões a circular, constrangimentos nos acessos e mobilidade, pó, fazem parte da lista de impactos negativos apresentados no estudo de impacte ambiental e que serão sentidos durante a fase de construção, prevista para durar quatro anos. A circulação automóvel não será interrompida em nenhuma das áreas, mas apenas reduzida, garantem os autores do estudo. Para atenuar esses impactos, o calendário de execução não é o mesmo para todas as zonas.
Uma das áreas com maior movimentação será em Campolide, junto à quinta do Zé Pinto, próximo da linha ferroviária. Aqui vai ficar instalado durante três anos o estaleiro, com a consequente entrada e saída de materiais e trabalhadores. O túnel Monsanto-Santa Apolónia deverá exigir o transporte para vazadouro de um volume de terras de 275 mil metros cúbicos, que será feito sobretudo a partir de Campolide, o que deverá implicar sete camiões por hora. O impacto no tráfego do Eixo Norte Sul e rua de Campolide, deverá ser inferior a 1% do atual movimento.
Na Avenida da Liberdade e Rua de Santa Marta, as intervenções à superfície são menores, e passam pela construção de poços de interceção das águas. Nesta zona sensível da cidade, os efeitos serão sentidos sobretudo ao nível soció-economico. Traduzindo: constrangimentos localizados na mobilidade e acessos e perturbação das atividades locais, residenciais e económicas, e mais ruído e mais poeiras nas esplanadas.
Admitem-se ainda perturbações nas vias envolventes Avenida da Liberdade, Rua de Santa Marta e Barata Salgueiro, com condicionamento da circulação faseado, mas sem interrupção. As intervenções previstas para a Avenida Almirante Reis e Rua Antero de Quental, onde será construído outro poço de interceção, são semelhantes.
Já em Santa Apolónia, a construção do troço em vala até à zona de descarga no rio terá “impactes de um modo geral mais significativos no que respeita aos fatores socioeconómicos, ruído e potencialmente património. As locais mais afetados serão a Igreja Ortodoxa Russa, as esquadra da PSP, a creche APPI, Museu Militar, bem como restaurantes, sobretudo com esplanadas, e residências.
Também se esperam condicionamentos do parque de estacionamento e da paragem de autocarro, bem como da circulação viária e pedonal nas ruas do Museu de Artilharia, Jardim do Tabaco, Teixeira Lopes e Avenida Infante D. Henrique (principal via de ligação entre a parte leste e oeste de Lisboa na zona ribeirinha).
Simulação da vala de descarga até Santa Apolónia
Em Santa Apolónia será necessário remover terras da área de construção do troço em vala até à zona de descarga no Tejo, um transporte que irá ter impacto no trânsito durante um período inferior a um ano. Estima-se que seja necessário mobilizar um camião por hora. Nesta zona o estudo de impacte ambiental incorpora um alteração de traçado para preservar restos arqueológicos do torreão e da muralha fernandina. Para minimizar perturbações, a construção nesta área será feita de forma faseada. A execução vai implicar ainda o abate transplante de algumas árvores no Largo do Museu da Artilharia.
As intervenções previstas para Chelas vão realizar-se numa área com poucos edifícios, ainda que sejam necessárias algumas expropriações. Para o transporte de terras proveniente da obra, que irá movimentar 105 mil metros cúbicos, serão precisos oito camiões por hora, mas o aumento do tráfego estrada de Chelas será de apenas 1%.
No Beato, são apontadas perturbações na circulação de transportes públicos e pedonal na Avenida Infante D. Henrique, com destaque para o condicionamento da ciclovia . Os constrangimentos resultam da construção do troço em vala e do aumento do tráfego para escoamento de terras, ainda que com um impacto inferior a 1% do trânsito.
As vantagens do projeto
Os autores do estudo lembram que o sistema atual, que tem mais de 50 anos, já não tem capacidade para garantir a drenagem, o que resulta na frequente ocorrência de inundações urbanas. Os casos mais recentes aconteceram a 18 e 19 de fevereiro de 2008, a 30 de outubro de 2012 e a 22 de setembro e 13 de outubro de 2014. Entre 1900 e 2006, Lisboa sofreu 84 inundações e entre 2008 e 2014, houve 15 eventos.
Para além dos prejuízos materiais, é também assinalado o risco de mortalidade, o que “torna imperioso e até urgente assegurar a implementação do projeto”. Não obstante, apesar de o projeto existir há vários anos, só agora recebeu a luz verde final para avançar.
De acordo com o estudo de impacte ambiental, as áreas classificadas como de elevada vulnerabilidade a riscos de inundação ocupam mais de seis milhões de metros quadrados, o que representa cerca de 6% da área total do concelho. Na linha da frente das cheias estão a zona baixa de Alcântara e a Baixa, para além de algumas áreas de Chelas e do Beato. Os autores do estudo consideram que os riscos de cheias súbitas vão ser agravados por causa do efeito das alterações climáticas (maior probabilidade de fenómenos extremos de chuva intensa concentrada em pouco tempo). E não avançar com este projeto teria como consequências previsíveis:
- Agravamento do risco de inundação com eventuais riscos de danos humanos.
- Perturbações na vida diária dos lisboetas, impossibilitando ou limitando acessos e encerrando serviços.
- Engarrafamentos e limitações no trânsito.
- Graves efeitos na atividade económica com perdas para negócios e bens individuais
- Destruição ou danos nas infraestruturas públicas — abastecimento de água, eletricidade, telecomunicações.
- Potencial agravamento dos custos dos seguros.
- Impacte negativo para a imagem da cidade.
Em fase de operação, os túneis permitem reduzir de forma significativa as inundações nas áreas atravessadas durante pelo menos 100 anos, contribuindo para baixar as cheias em Alcântara, Baixa, Chelas e Beato. Ainda que não impeçam a existência de inundações localizadas provocadas pela chuva.
Para a realização do estudo de impacte ambiental estimou-se que ao longo de um século, esta obra permita evitar 10 inundações com avultados prejuízos, uma em cada dez anos, e oito cheias com prejuízos muito elevados (a cada 12,5 anos) e até duas inundações catastróficas (a cada 50 anos). Com estes pressupostos, os túneis neutralizarão 20 casos de inundação.
“Neste caso, o potencial de redução de danos pode atingir cerca de 780 milhões de euros, valor que ultrapassa, em muito, o investimento de 85 milhões previsto nos túneis”.
O que se pretende fazer
Os dois túneis são a parte mais visível de um projeto que envolve intervenções complementares nos bairros de Lisboa para melhoria dos sistemas coletores pluviais, zonas verdes e infiltração, armazenamento e retenções localizadas. A solução passa por captar a água das chuvas nas zonas mais altas da cidade, a montante de zonas sensíveis a cheias, para quando chover com intensidade parte da água possa ser dirigida diretamente para o Rio Tejo.
O túnel Monsanto-Santa Apolónia capta águas que vêm de montante até Campolide, usando um conjunto de ligações (câmaras de desvio do caudal) que levam a água ao túnel em profundidade, nomeadamente na parte de cima de Av. da Liberdade, Rua Alexandre Herculano, Rua de Santa Marta e Av. Almirante Reis. Estas ligações intercetam as águas que chegam até estas zonas, relativamente mais altas, canalizando-as para o túnel antes de chegarem às zonas mais baixas e vulneráveis a cheias. O túnel Chelas-Beato faz o mesmo, captando as águas que vêm a montante de Chelas para fazer a sua descarga no rio na zona do Beato.
Os documentos em consulta pública têm por base um estudo prévio, o projeto de execução será feito pela empresa que ganhar o concurso público. Engenheiros contactados pelo Observador admitem que esta é uma obra de engenharia complexa, do ponto de vista hidráulico e estrutural.
O uso de áreas subterrâneas para escoar a água deve-se à reduzida disponibilidade do espaço urbano ocupado por “usos mais nobres” à superfície, além de permitir uma redução do impacto visual e sonoro, recorrendo para tal è escavação subterrânea, nomeadamente com uso de uma toneladora, também utilizada na escavação dos túneis do metro. A contrapartida será sentida no preço, a construção destes dois túneis vai custar 85 milhões de euros, numa empreitada que será através do concurso público internacional.
Os dois túneis terão um diâmetro interno de 5,5 metros, alargando na fase final na aproximação ao rio, para travar a velocidade da descarga no rio. As duas estruturas terão uma inclinação de entre 0,5% e 0,7% que permite drenar as águas através da gravidade, sem recorrer a equipamentos mecânicos.
Para travar enxurradas na saída, optou-se por erguer um muro em frente à saída no caso de Santa Apolónia e uma curva no trajeto final do troço do Beato, de forma a acompanhar a direção do próprio rio. Está ainda previsto que as descargas ocorram em profundidade, para uma maior mistura da água da chuva com a do Tejo. O estudo diz ainda que as marés no rio não vão afetar as descargas de águas pluviais em excesso. “Mesmo com água da maré no seu interior, quando chove o túnel vai enchendo até ganhar carga hidráulica para descarregar”.
Já ao nível do impacto no rio Tejo, ao autores do estudo defendem que em fase de operação as descargas não “alteram significativamente as características do estuário do Tejo, dado o reduzido número e grau de diluição dos volumes descarregados”. A descarga para os túneis só terá lugar quando forem atingidos caudais significativos — três vezes superiores ao caudal de ponta em tempo seco — o que deverá acontecer dez ou mais vezes num ano.