Almada acordou e já não era comunista. “E agora?” Quem dirige associações no concelho acordou realmente com dúvidas sobre a interferência direta de umas eleições na sua vida. Sensação estranha para quem vive naquele concelho que nunca conheceu outra cor que não o vermelho puro. “É agora que acabam com a ECALMA”, o equivalente à EMEL em Lisboa, ouve o Observador à hora de almoço num restaurante no centro da cidade. É certo que a câmara fugiu da CDU e passou pela primeira vez para as mãos do PS, mas, pormenor: não fazia parte das propostas do PS acabar com aquela empresa municipal de estacionamento. Só PSD e CDS defendiam a sua extinção. Mas não faz mal. “O que importa é mudar, já estavam lá há muito tempo”, diz a dona da mercearia mais concorrida da Cândido dos Reis de Cacilhas.

O sentimento generalizado é esse: mudar. E não são só os mais jovens que o dizem. Perto da mercearia, também um funcionário do restaurante ao lado está “satisfeito com a mudança”. E não é que não gostasse daquele que foi presidente da câmara comunista nos últimos quatro anos, mas “havia muitas maçãs podres naquela equipa, demasiado agarrados ao poder”. Do outro lado da estrada é a sede do PS local, que ainda tem uma faixa grande a dizer “Inês de Medeiros PS”. Aponta para lá com os olhos. “Pode ser que mude”. E encolhe os ombros. É aí que o tema ECALMA volta à baila. “A CDU foi muito prejudicada pela caça à multa que a ECALMA anda a fazer há pelo menos dois anos”, diz, contando que num mês tem uma média de três ou quatro multas de estacionamento, apenas por parar o carro para cargas e descargas.

Por esta altura, tudo estava como quando Almada se foi deitar: uma vitória tangente do PS por 213 votos. Mas a meio da tarde, a confusão instalou-se. Afinal, Inês de Medeiros e o PS não tinham ganho. A CDU estava outra vez na frente. Toda a gente tinha dúvidas. O site oficial do Governo, que tinha fechado a contagem de Almada já a noite ia longa, reiniciou a contabilização e a atribuição de mandatos. O que aconteceu? Questionado pelo Observador, fonte do Ministério da Administração Interna rejeitou que tivesse havido “qualquer processo de recontagem dos votos”, e o mesmo disse o presidente da câmara cessante, Joaquim Judas, ao Observador: “Não pedimos nenhuma recontagem”. Mas a verdade é que os dados voltaram a ser atualizados, e do PSD ao PS todos foram surpreendidos com isso esta tarde. Seria o PCP a fazer a última tentativa de agarrar uma das suas câmaras mais queridas? Talvez, ouvia-se no PS entre risos, desde o presidente da junta da Costa da Caparica, cujos dados foram os últimos a ser inseridos, a algums deputados nacionais provenientes do concelho. Ninguém sabia bem o que se estava a passar.

“O facto de surgir a freguesia da Costa Caparica por apurar, deve-se apenas à necessária correção de anomalia – que se encontra a decorrer – na ordenação dos partidos na freguesia da Caparica, sendo expectável que no final da tarde a situação esteja resolvida e apresentando os dados corrigidos”, disse fonte do Ministério da Administração Interna (MAI) ao Observador, explicando que a anomalia se deveu a uma queixa do PCTP/MRPP, que alegava não aparecer na ordem correta de correlação de forças políticas no site do Governo. Em todo o caso, os telefones não pararam. No avançar da noite de domingo houve, sim, uma recontagem, mas na freguesia da Caparica/Trafaria, onde os resultados que o PS tinha em mãos não batiam certo com os resultados que estavam a ser contabilizados pelo MAI. PCP e PS conversaram via telefone, noite dentro, e viriam a ser informados de que, afinal, os 213 votos que os separavam no concelho eram afinal “uns 400”. Mas não seria esse o número final. Ao final da tarde, depois de tantos avanços e recuos, contagens e retificações, o PS vencia por 313 votos.

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Ao Observador, Joaquim Judas confirmou esta tarde que houve de facto “problemas em duas mesas de voto”, onde o somatório “não batia certo entre a abstenção e o número de votantes”. Terá então sido o MAI que “chamou a atenção” para essas discrepâncias, levando a Assembleia de Apuramento Geral a ter de reabrir os votos já lacrados e a introduzir de novo a contabilização. De todo o modo, nada feito. A câmara de Almada passou mesmo para as mãos dos socialistas. Assim como a do Barreiro e de Alcochete, e o PCP perderia também a maioria absoluta no Seixal e em Palmela.

O que se passou? Mais gente votou e só CDU perdeu votos. Todos os outros ganharam

A surpresa foi generalizada, mas há explicações para todos os gostos. Joaquim Judas (PCP) experimenta dizer que a vitória do PS se deveu ao facto de a junta de freguesia da Costa ser socialista há quatro anos e ter capitalizado o “grande investimento que a câmara fez” naquela zona das praias (foi a grande expressão do PS na Costa e na Charneca que deu vantagem aos socialistas). Mas não é essa a leitura que os restantes partidos fazem. Ora por “inação” da câmara comunista nesta campanha e nos últimos quatro anos, que muitos notam não ter obra para mostrar nem sequer ter feito uma verdadeira campanha eleitoral nas ruas, ora pelo “élan do PS no Governo”, que ainda beneficia de um grande “estado de graça”, “a CDU foi penalizada nas malhas urbanas próximas de Lisboa”, analisa Nuno Matias, o candidato do PSD a Almada, que se mantém como vereador.

O estado de graça do PS nacional por um lado, e o estado de desgraça do PSD, por outro. Mas Nuno Matias rejeita que tenham saído votos do PSD para o PS no concelho de Almada. “O peso dos partidos ainda é muito grande na hora de votar e em Almada há uma grande tradição do voto”, diz. Então, se os votantes da CDU se mantiveram fiéis, de onde surgiram os votos extra que foram parar ao PS? Da abstenção, dizem todos.

As contas são simples: apesar de só ter havido mais 775 novos inscritos em Almada, houve cerca de 6 mil votantes a mais face a 2013 (5.933, mais precisamente). Houve também menos 892 votos em branco e menos 1081 nulos. Logo, houve mais gente a votar em partidos. Em quais? No PS, que teve mais cerca de cinco mil votos (4.911) do que há quatro anos, no Bloco de Esquerda, que teve mais cerca de três mil (3.159), e até no PSD e no PAN, que tiveram cada um mais cerca de mil votos. Até o CDS aumentou 300 votos em relação à eleição anterior. Só a CDU perdeu eleitores: menos cerca de três mil (2.969).

Joana Mortágua, a candidata que o Bloco de Esquerda elegeu em Almada, diz que a mudança que surpreendeu tudo e todos não foi assim tão surpreendente. “Sentíamos na rua uma vontade de mudança, de ideias novas, muita gente dizia que Almada estava estagnada e não estava a acompanhar os sinais de desenvolvimento de Lisboa, aqui mesmo ao lado”, diz. Nuno Matias, do PSD, concorda. “Só surpreendeu a quem não andou na rua”, diz, notando que era visível o facto de a câmara comunista já ter conhecido melhores índices de popularidade. Ou seja, não terá sido tanto por mérito da candidata, mas mais por “vontade de mudança”.

Surpreendeu a quem não andou na rua e à própria presidente eleita. Inês de Medeiros admitiu esta segunda-feira ao Expresso e à TSF que a vitória tinha sido uma surpresa. “A determinada altura da campanha percebemos que podíamos ter um bom resultado. Mas a CDU tinha maioria absoluta. E este era um concelho com elevada taxa de abstenção. Em 2013 tinha tido 60%. Portanto era difícil perceber se conseguiríamos ganhar”, disse ao Expresso. A ex-deputada e atual presidente do INATEL vive em Campo de Ourique, em Lisboa, e garante que não vai mudar de residência para dirigir os destinos do outro lado do Tejo. “A margem sul é muito perto. Esta pode ser uma boa oportunidade para acabar com esse estigma do rio intransponível entre as duas cidades”, diz, mostrando-se defensora do “cacilheiro”. “Por mim vou de cacilheiro para Almada. Só se não me deixarem… mas logo se vê”, disse ao mesmo jornal. Certo é que se for de carro irá em contra-corrente, o que a fará escapar do trânsito matinal e de fim de tarde nas portagens para a ponte 25 de Abril.

E agora? Ninguém fecha a porta, poucos abrem janelas

Inês de Medeiros ganhou mas sem maioria. A distribuição de vereadores parece uma tática de futebol: 4-4-2-1, tendo o BE apenas um vereador e mantendo o PSD dois vereadores. Na Assembleia Municipal, onde se aprovam os orçamentos, CDU e PS mantém-se empatados, com 11 deputados cada, tendo o BE outros 4. Agora é tempo de fazer contas. O Bloco de Esquerda sozinho, apenas com um vereador, não chega para o PS ficar confortável, por isso deve ser para o PCP (ou para o PSD) que Inês de Medeiros terá de se virar. Com o clima de “geringonças” no ar, a batata-quente vai para os comunistas, que são, a par do BE, o parceiro preferencial do PS. Também na Assembleia, a soma do PS com o BE não é suficiente.

“Não fui contactado para nada, mas não fecho portas nem abro janelas”, diz o social-democrata Nuno Matias quando questionado sobre se aceitaria integrar o executivo do PS numa perspetiva de bloco central. “Depende das condições, só se pudéssemos implementar muitas das nossas propostas, mas se for para vir executar o programa dos outros, não obrigado”, diz, não rejeitando totalmente a ideia de ficar com pelouros num executivo dirigido pelos socialistas. Em todo o caso, uma vez que PS e PCP são parceiros nacionais, o que fará mais sentido é uma geringonça local.

A bola está do lado do PS. Inês de Medeiros, nas mesmas declarações ao Expresso, desvaloriza a necessidade de acordos para já. “Não creio que as pessoas estejam neste momento preocupadas em saber que tipo de acordo vamos fazer. Temos tempo para pensar com calma”, disse, sublinhando que a autarquia será “governável”. Mas se a ex-deputada socialista se virar, como se prevê, para a CDU, não é certo que a CDU esteja de braços abertos. “O plano nacional é uma coisa, onde há uma dinâmica de recuperação de rendimentos e de direitos dos trabalhadores, outra coisa é a dinâmica local, onde não há isso“, diz Joaquim Judas ao Observador, sublinhando a “impreparação” e “falta de propostas” da candidatura do PS. E deixa uma indicação enigmática: qualquer acordo “dependerá da inteligência” da autarca socialista-que-nunca-pensou-vir-a-ser.