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Um discurso brutal. O que disse Marcelo nas entrelinhas

Este artigo tem mais de 5 anos

Descodificação das palavras mais duras do Presidente até hoje: pediu repetidamente demissão da ministra, exigiu "novo ciclo", criticou Costa e ameaçou com "todos os seus poderes". Por Miguel Pinheiro.

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PAULO NOVAIS/LUSA

PAULO NOVAIS/LUSA

Vinte e quatro horas depois do discurso do primeiro-ministro, falou o Presidente da República. Foi o discurso mais brutal alguma vez feito por este Presidente contra este Governo. Pior: foi um dos discursos mais brutais feitos por qualquer Presidente em relação a um Governo em funções. Os 100 mortos nos fogos este ano acabaram com a cumplicidade entre Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa.

O discurso do Presidente da República está a itálico e a interpretação e o comentário estão a amarelo:

“O Presidente da República é, antes de mais, uma pessoa. Uma pessoa que reterá para sempre na sua memória imagens como as de Pedrógão. (…) Mais de 100 pessoas mortas em menos de quatro meses em fogos em Portugal. Por muito que a frieza destes tempos cheios de números e chavões políticos, económicos e financeiros nos convidem a minimizar ou banalizar, estes mais de 100 mortos não mais sairão do meu pensamento, como um peso enorme na minha consciência, tal como no meu mandato presidencial.”

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A primeira frase do discurso de Marcelo Rebelo de Sousa parece a constatação vazia de uma evidência, mas é a formulação de uma crítica política certeira. Afinal, se, para usar a expressão escolhida por Belém, o Presidente "é, antes de mais, uma pessoa", quem não será? Em primeiro lugar, António Costa: esta terça-feira, até os socialistas criticaram o primeiro-ministro pela forma fria e distante como reagiu à tragédia naquela madrugada de segunda-feira, quando se dirigiu à sede da Proteção Civil. Ao Expresso, Ana Gomes desabafou que António Costa "tem de agir com cabeça fria, mas também tem de mostrar que tem coração". Em segundo lugar, a ministra da Administração Interna, que perante a morte e a destruição recomendou às populações que se tornassem "mais resilientes às catástrofes". Em terceiro lugar, o secretário de Estado da Administração Interna, que, numa madrugada de medo e tensão, disse que "as próprias comunidades" deveriam "ser proactivas", em vez de "ficarmos todos à espera que apareçam os nossos bombeiros e aviões para nos resolver os problemas". Para o Presidente da República, as vítimas dos incêndios não representam histórias de fraqueza, mas de heroísmo. E os 100 mortos que esta terça-feira estavam em todas as capas de jornais, em todas as rádios, em todas as televisões e em todos os sites, além de serem uma perda, são uma acusação. E são uma mancha - não só no mandato do Governo, mas também no do Presidente. Marcelo não esquece que isto também é com ele, como se se considerasse co-responsável por tudo o que se fizer (ou não fizer) no futuro.

“Se falei aos portugueses primeiro como pessoa, foi para tornar bem claro que sempre, e mais ainda em tempos como estes, olhar para os dramas de pessoas de carne e osso com a distância das teorias, dos sistemas ou das estruturas, por muito necessário que possa ser, é passar ao lado do fundamental, na vida como na política. E o fundamental é o que vai na alma de cada uma e de cada um dos portugueses. Mas mais de 100 mortos em menos de quatro meses , sendo um peso na consciência, são igualmente uma interpelação política ao Presidente da República, que foi eleito para servir incondicionalmente os portugueses. Para cumprir e fazer cumprir uma Constituição que quer garantir a confiança e segurança dos cidadãos.”

Para alguns, será uma revelação. A expressão "Presidente dos afectos", ao contrário do que muitos pensam e dizem, não é, afinal, apenas uma figura de retórica ou uma arma de propaganda - é uma forma de entender a figura presidencial. E isso, neste momento, é um problema para o Governo. Com metade do país em choque e a outra metade em fúria, Marcelo sente que ficar parado é trair o programa pelo qual foi eleito. Por isso, repete o número que marca estes dias: "100 mortos", "100 mortos". No discurso do 5 de outubro, Marcelo já tinha alertado que a segurança interna deve ser vista "como penhor de tranquilidade e previsibilidade por parte dos cidadãos".

“Se há realidade que objetivamente ocorreu com estas mortes e estas duas e tão diferentes provações de um verão interminável foi a fragilização de muitos portugueses. Não vale a pena negá-lo. (…) Ficaram fragilizados perante o que lhes pareceu ser a insuficiência de estruturas ou pessoas em face de condições meteorológicas, dimensão e natureza de fogos tão diferentes daquilo a que estavam habituados.”

Não vale a pena negar, ou minimizar, o problema. Se é verdade que houve mais calor e mais fogos do que é habitual, isso não serve de desculpa para "a insuficiência de estruturas ou pessoas", seja na Proteção Civil, seja no Governo.

“Ficaram fragilizados perante leituras de relatórios sobre Pedrógão, em especial a do relatório da Comissão Parlamentar Independente, que acentuam dúvidas, temores, preocupações. Ficaram fragilizados perante nova tragédia, três dias depois da divulgação do relatório e por isso mesmo antes de ações possíveis por ele recomendadas.”

No seu discurso de ontem, António Costa tratou a Comissão Parlamentar Independente que fez o relatório sobre Pedrógão como se fosse um mero grupo de trabalho com a função de apoiar o Governo na preparação de legislação. Mas, para o Presidente, ela não é nada disso: é um grupo de peritos que aponta "dúvidas, temores e preocupações". Ou seja: não serve para ajudar o Governo, serve para o acusar.

“Ficaram sobretudo fragilizados perante a ideia da impotência da sociedade e dos poderes públicos em face de tamanha confluência de catástrofes. Claro que uma tal fragilidade foi, ou é em muitos casos, excessiva ou injusta, atendendo à extensão das áreas atingidas, à virulência dos fogos e em particular à abnegação, ao heroísmo dos que a pé firme estiveram mobilizados cinco meses seguidos ao serviço da comunidade. Mas o certo é que a fragilidade existiu e existe, e atingiu os poderes públicos. E exige uma resposta rápida e convincente. E agora?”

O Presidente admite que a "fragilidade" e "impotência" dos "poderes públicos" não explicam tudo e recorda novamente as especiais condições meteorológicas, mas insiste: muita coisa correu mal e é preciso uma "resposta rápida e convincente". Na madrugada de segunda-feira, António Costa tinha dito: "Essa obsessão de que falhou alguma coisa não faz sentido". Vai passar a fazer todo o sentido.

“O Presidente da República pode e deve dizer que esta é a última oportunidade para levarmos a sério a floresta e a convertermos em prioridade nacional. Com meios para tanto, senão será uma frustração nacional. Se houver margens orçamentais, que se dê prioridade à floresta e à prevenção dos fogos.”

Dinheiro: o Presidente quer que o Governo dê mais dinheiro à floresta e à prevenção dos fogos. E não apenas mais dinheiro, mas um volume de dinheiro a mais que mostre que de facto estamos perante uma "prioridade nacional". Os números que se conhecem ajudam a explicar a preocupação do Presidente. Na proposta de Orçamento para 2018, a Autoridade Nacional da Proteção Civil recebe um aumento de 11% face ao orçamento deste ano, sendo esse o valor mais alto dos últimos dez anos. E o Instituto da Conservação da Natureza e Florestas, que tem competências na área de defesa da floresta e dos parques naturais, também tem um reforço de dinheiro. Mas, como escreveu há dias a Ana Suspiro no Observador, "estes reforços na proteção civil e nas florestas não chegam para sinalizar uma equivalência entre a prioridade política e os recursos atribuídos, até porque estão longe de ser a exceção - na lista de serviços e fundos autónomos do Estado, a maioria dos organismos recebe mais em 2018". Claramente, o Presidente espera que o Governo aproveite o debate sobre o Orçamento no Parlamento para abrir o cofre.

“Deve haver uma convergência alargada, porque os governos passam e é crucial que a prioridade permaneça.”

Se até este momento foi o Governo a assistir ao discurso de Marcelo sem conseguir piscar os olhos, chegou aqui o momento da oposição. O Presidente avisa que é preciso existir "uma convergência alargada". Quer dizer: pelo menos o PSD não terá como fugir. Neste ponto, Marcelo tem um aliado inesperado. Rui Rio, de quem o Presidente não gosta (até almoçou com Santana Lopes na véspera de ele anunciar que seria seu adversário na corrida ao PSD), foi muito claro na primeira entrevista que deu como candidato. À TVI, afirmou que "os partidos todos têm de pôr os interesses partidários de lado e entenderem-se nas reformas fundamentais para o interesse do país". Que exemplo deu? Precisamente: o combate aos fogos.

“O Presidente da República pode e deve dizer novamente que espera do governo que retire todas, mas todas, as consequências da tragédia de Pedrógão, à luz das conclusões dos relatórios, como de resto o governo se comprometeu publicamente a retirar.”

A palavra "novamente" não está aqui por acaso. O Presidente tem dito uma, duas, três, muitas vezes, que o Governo deve "passar das palavras aos atos", mas até agora o primeiro-ministro tem preferido ignorar Marcelo com um sorriso. E a repetição da palavra "todas" também não aparece inocentemente. "Todas as consequências", neste caso, é a demissão da ministra da Administração Interna, que António Costa mantém como se fosse uma peça de mobília pregada ao chão.

“O Presidente da República pode e deve dizer que nessas decisões não se esqueça daquilo que nos últimos dias confirmou ou ampliou as lições de junho e olhe para estas gentes, para o seu sofrimento, com maior atenção ainda do que aquela que merecem os que têm os poderes de manifestação pública em Lisboa.”

Para Marcelo, o barulho dos sindicatos nas ruas de Lisboa não pode valer mais do que o silêncio das vítimas dos fogos. Nas últimas semanas, a mais pequena reivindicação de uma qualquer classe profissional levou o Governo a engordar o Orçamento. Agora, a mesma "atenção" deve ser prestada a quem não consegue encher ruas, decretar greves, mobilizar protestantes, ou exercer poder na "geringonça".

“Pode e deve dizer que abrir um novo ciclo inevitavelmente obrigará o Governo a ponderar o quê, quem, como e quando melhor serve esse ciclo.”

Aqui estamos de novo, para que não reste qualquer dúvida: a ministra da Administração Interna tem de sair. "Quem" melhor "serve" o "novo ciclo" não é, seguramente, quem foi protagonista do velho ciclo.

“Pode e deve dizer que, se na Assembleia da República há quem questione a atual capacidade do Governo para realizar estas mudanças, que são indispensáveis e inadiáveis, então que, nos termos da Constituição, esperemos que a mesma Assembleia soberanamente clarifique se quer ou não manter em funções este Governo, condição essencial para, em caso de resposta negativa, se evitar um equívoco, e de resposta positiva, reforçar o mandato para as reformas inadiáveis.”

É uma cobertura política do Presidente à moção de censura anunciada esta terça-feira pelo CDS. Perante isto, os socialistas ficam sem chão. No seu estilo habitual, Carlos César, líder parlamentar do PS, tinha dito esta terça-feira que a iniciativa dos centristas era um "hábil jogo político de chamar a atenção da comunicação social com medidas espetaculares", mas esse discurso vai ter que ser abandonado imediatamente - Marcelo anunciou ao país que o Parlamento tem a legitimidade, e o dever, de discutir tudo. E de decidir tudo também: no seu discurso, o Presidente não faz qualquer apelo à estabilidade, como se lhe fosse politica e institucionalmente indiferente a continuação ou a queda do Governo. Aliás, usa uma palavra críptica: segundo ele, a aprovação da moção de censura poderia evitar um "equívoco". Mas que equívoco? O da continuação do Governo? Há um outro ponto importante. Como refere o Presidente, a moção de censura vai obrigar a uma "clarificação". Até ao momento, o PCP e o BE têm ajudado o Governo pelo silêncio e pela inação; mas, agora, vão ter que se levantar e votar, sem "equívocos", para reforçar um mandato para fazer as reformas "indispensáveis e inadiáveis".

“Pode e deve dizer que reformar a pensar no médio e longo prazo não significa termos que conviver com novas tragédias até lá chegarmos.”

É a resposta direta a outra infeliz frase de António Costa na madrugada de domingo, quando disse o seguinte: "O país tem de ter consciência que a situação que estamos a viver vai seguramente prolongar-se para os próximos anos. O pacote florestal vai produzir efeito ao longo de uma década. Se julgam que há alguma solução mágica estão completamente enganados”. Pois bem, o Presidente sente que não "tem de ter consciência" de nada disso. A existência de "novas tragédias" não é admissível.

“Pode e deve dizer que estará atento e exercerá todos os seus poderes para garantir que onde existiu ou existe fragilidade ela terá de deixar de existir.”

Lá vamos outra vez. A "fragilidade" que "terá de deixar de existir" tem vários nomes, mas um vem à cabeça: Constança Urbano de Sousa. A ministra sairá a bem ou mal, nem que o Presidente tenha de "exercer todos os seus poderes".

“Pode e deve dizer que a melhor, se não única, forma de verdadeiramente pedir desculpa às vítimas de junho e de outubro, e de facto é justificável que se peça desculpa, é por um lado reconhecer com humildade que portugueses houve que não viram os poderes públicos como garante de segurança e de confiança, e por outro lado romper com o que motivou a fragilidade, ou motivou o desalento ou a descrença dos portugueses. Quem não entenda isto — humildade cívica e ruptura com o que não provou ou não convenceu — não entendeu nada do essencial que se passou no nosso país.”

Esta terça-feira, durante a sua visita a Oliveira do Hospital, um jornalista perguntou ao primeiro-ministro: "Não acha que o Governo devia pedir desculpas às populações?". A resposta foi: "Nós temos, neste momento, que concentrar-nos em fazer aquilo que é essencial". Para António Costa, o "essencial" não é pedir desculpas; para Marcelo, é.

Para mim, como Presidente da República, o mudar de vida neste domínio é um dos testes decisivos ao cumprimento do mandato que assumiu e nele me empenharei totalmente até ao fim desse mandato. Impõem-no milhões de portugueses mas impõem-no sobretudo os mais de 100 portugueses que tanto esperavam da vida no início do verão de 2017 e não chegaram ao dia de hoje.”

Desde que se tornou Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa tem-se metido repetidamente na esfera do governo, chegando mesmo a admitir que estava a ir aos limites dos seus poderes. Ao fazer isso, criou a legítima expectativa de que não é apenas um corta-fitas e de que pode resolver problemas. Não por acaso, as manifestações que na noite de terça-feira protestaram contra a tragédia dos incêndios não foram marcadas para São Bento, mas para Belém. O Presidente tem insistido com o primeiro-ministro que "passe das palavras aos atos" - e agora percebeu que é também isso que as pessoas esperam dele. Mais do que para António Costa, este é, de facto, um "teste decisivo" para o Presidente.

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