A sentença do Tribunal da Relação do Porto que se socorre da Bíblia e de exemplos em que o adultério é punido com pena de morte num processo de violência doméstica não é caso único. Nas 500 decisões estudadas por um grupo de investigadores do Centro de Estudos Sociais/Observatório Permanente da Justiça da Universidade de Coimbra houve considerações idênticas. Houve até magistrados entrevistados que demonstraram não conhecer o que diz a lei sobre o crime de violência doméstica: um deles referiu nunca ter tido nas mãos um “verdadeiro caso de violência doméstica”. Apenas alguns “murros e pontapés”, mas nada de verdadeiramente grave.

Segundo a coordenadora do estudo apresentado em 2016, Conceição Gomes, os magistrados ainda são muito “tolerantes” a este tipo de crime. “Os magistrados não são aliens, são pessoas que também comungam de determinados valores culturais. Há uma tolerância cultural à violência doméstica e há magistrados que são contaminados por isso. O que sentimos é que na cultura judiciária ainda há muita tolerância à violência doméstica”, disse Conceição Gomes ao Observador.

Conceição Gomes não se surpreendeu quando soube da sentença do Tribunal da Relação do Porto, tornada pública este domingo pelo Jornal de Notícias. Segundo o estudo — Violência Doméstica, Estudo Avaliativo das Decisões Judiciais –, este “problema cultural”, em que ainda se aceita a “violência contra as mulheres e contra as crianças”, exprime-se no “excesso” de suspensão penas, de “posições mais brandas nas decisões”, “nas fundamentações” das decisões, nas medidas de coação, na “forma como se pune”, conclui. “Nota-se alguma tolerância, muito mais do que nos crimes contra a propriedade”, reforça.

“Os casos que nós temos julgado e que eu tenho tido acesso, em termos de gravidade física e psicológica, não são aquilo que nós estamos à espera (…). Há quase vinte anos que faço julgamentos em maus tratos e é isto (…). Dá-me a sensação que as senhoras fogem de casa e acabou, e só querem é esquecer, e já nem chega a julgamento. O que eu tenho muitas vezes, sabe o que é? É violência psicológica… Chega e é: ‘Tratava-me mal. Chamava-me isto, chamava-me aquilo…’ É a ideia do que é violência doméstica. Mas, eu continuo a dizer, aqueles casos mais… em que uma pessoa diz assim: ‘Meu Deus como é que se pode… como é que pode alguém ser subjugado desta maneira?’ Continuo à espera” — magistrado judicial entrevistado para o estudo.

A investigadora, que está “inteiramente de acordo”, com o movimento cívico que se está a criar em torno da sentença do Tribunal da Relação, lembra que os magistrados têm que ser formados e confrontados com casos e sentenças verídicas para perceberem o que está em causa. Uma necessidade que o Conselho Superior de Magistratura (CSM) afirmou, esta segunda-feira, estar a tentar suprimir em “estreita cooperação com a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género [que encomendou o estudo] no apoio à aplicação do V Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e de Género”. O CSM quer evitar “proclamações arcaicas, inadequadas ou infelizes constantes de sentenças”, como explicou em comunicado.

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“Eu acho que a verdadeira violência doméstica, a verdadeira violência doméstica continua escondida. Eu tenho essa convicção, porque, sei lá, dos inúmeros casos que nos chegam, há muito poucos em que haja aquela humilhação, aquele mau trato, e aquela reconciliação, aquele protótipo, está a ver? O alto e o baixo na relação, a dependência, que são esses os verdadeiros retratos da violência doméstica. Obviamente, são as ofensas corporais, o mau relacionamento, o que quer que seja, e que às vezes é insuportável também, é óbvio” — juíza desembargadora ouvida pelos investigadores.

Leia aqui o acórdão do juiz que desvalorizou agressão por causa de adultério

Adultério retirado da lei em 1974

“Por outro lado, a conduta do arguido ocorreu num contexto de adultério praticado pela assistente. Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte.O que deixou de acontecer”, lê-se no acórdão do Tribunal da Relação do Porto.

O argumento usado pelos juízes do Tribunal da Relação do Porto para justificar um crime de violência doméstica foi retirado da lei após o 25 de Abril de 1974. O adultério, que o Código Penal de 1886 previa como atenuante no crime de homicídio, foi ainda usado, no entanto, nalgumas decisões dos tribunais, segundo o estudo do Observatório Permanente de Justiça.

Até 1975, o Código Penal de 1886, previa que o marido que matasse a mulher em flagrante adultério seria sujeito a desterro de seis meses para fora da comarca. Esta atenuante só era extensiva à mulher se a amante do marido fosse por ele “teúda e manteúda” na casa do casal. Após o 25 de Abril de 1974, esta disposição foi revogada. Mas, segundo o estudo do Observatório da Justiça, a jurisprudência continuou a considerar o adultério como atenuante do crime de homicídio anos depois. Há, pelo menos, registo disso num acórdão de 1982 citado pelo estudo. Os juízes do Tribunal da Relação do Porto, Joaquim Neto de Moura e Maria Luísa Arantes, também consideraram o adultério um atenuante no crime de violência doméstica.

Já não é a primeira vez que o juiz Joaquim Neto de Moura tece considerações mais violentas sobre o adultério. Num acórdão de junho de 2016, citado pela revista Sábado, o juiz desembargador anulou uma sentença de dois anos e quatro meses de prisão em pena suspensa por violência doméstica agravada. A justificação foi a vítima, que cometeu adultério, ser “uma pessoa falsa, hipócrita, desonesta, desleal, fútil, imoral”. Considerou o juiz que uma mulher que cometa adultério “não surpreende que recorra ao embuste, à farsa, à mentira, para esconder a sua deslealdade e isso pode passar pela imputação ao marido ou ao companheiro de maus tratos. Que pensar da mulher que troca mensagens com o amante e lhe diz que quer ir jantar só com ele ‘para no fim me dares a subremesa [sic]’?”, questiona Neto de Moura.

“Bom pai e bom marido, não fosse o álcool”

Nas sentenças analisadas, os investigadores concluíram ainda que o álcool e os problemas de alcoolismo dos agressores continuam a ser desvalorizados nas decisões judiciais. “A justificação do consumo de álcool e o lugar que o alcoolismo ocupa no discurso das magistraturas como justificante da prática do facto ilícito é por demais evidente”, lê-se no capítulo, cujo título é “Bom pai e bom marido, não fosse o álcool”.

“O arguido continua a viver com a ofendida e ainda não se libertou do seu problema de alcoolismo. Ainda assim, o arguido encontra-se inserido social e profissionalmente, sendo reconhecido como um bom pai e marido quando não está alcoolizado” — sentença analisada pelos investigadores.

Mais, Conceição Gomes diz que o facto de os arguidos se “encontrarem bem inseridos socialmente” é muitas vezes um motivo de atenuação de pena. “Há uma grande tendência para suspender, encontramos situações em que as pessoas valorizavam a integração do arguido, está socialmente bem integrada e mesmo assim pratica estes crimes. Se são pessoas socialmente integradas, quadros superiores, usarmos isto para desculpar ou atenuar a pena? É necessário refletir sobre isso”, considerou, lembrando que estas sentenças têm uma grande projeção social.