A lei do financiamento partidário tem sido alvo de sucessivas alterações ao longo dos anos e motivo de troca de argumentos entre os partidos com assento na Assembleia da República, a Presidência da República e, claro, o Tribunal Constitucional. Em 2010, no entanto, juntou um protagonista singular: Marcelo Rebelo de Sousa. Naquele ano, o então comentador político pediu ao Presidente Cavaco Silva que vetasse uma lei “errada”, que não era mais do que uma “teimosia dos partidos”. O então Presidente da República já tinha vetado uma primeira alteração da lei e, à segunda, decidiu dar luz verde ao diploma, sinalizando as sua reservas. Agora, em 2017, é a vez de Marcelo decidir.
O processo começou ainda em 2008, durante o primeiro Governo de José Sócrates. No Parlamento, os partidos aceitaram rever a lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais, propondo, por exemplo, que o limite para a entrada de “dinheiro vivo” nos cofres dos partidos aumentasse em mais de um milhão de euros. Além disso, o novo diploma, assinado por PS e PSD, propunha também um aumento do teto relativo ao produto de angariação de fundos, algo que está agora igualmente em cima da mesa.
A 30 de abril de 2009, e depois de meses de discussão, as novas alterações à lei de financiamento partidário foram aprovadas por todos os partidos, com um voto contra e uma abstenção de dois deputados do PS: Matilde Sousa Franco absteve-se, alegando falta de debate interno; António José Seguro, que viria a suceder a José Sócrates, rompeu a disciplina de voto da bancada e votou mesmo contra a nova lei.
“Esta lei aumenta o financiamento privado, mas não diminui os dinheiros públicos, o que em tempo de crise deveria também concretizar-se”, justificava então o socialista. Apesar da aparente unanimidade em torno da nova lei, Seguro não terá sido o único deputado a sentir algum desconforto em relação ao novo diploma: o jornal Público, por exemplo, relatava as críticas em surdina que iam sendo feitas no Parlamento. Falava-se abertamente no regresso das “malas de dinheiro vivo”.
A contestação às novas regras veio de todos os lados. Até António Costa, então presidente da Câmara Municipal de Lisboa, considerou “desastrosa” a proposta aprovada por todos os partidos. “A legislação sobre os partidos para além do que é, é também aquilo que parece ser e desse ponto de vista esta iniciativa é desastrosa porque o que parece ser, é o que não devia ser”, sublinhava Costa, antes de acrescentar:
“Acredito pouco neste desvario legislativo que tem existido ao longo dos últimos anos. A lei do financiamento partidário deve ser a lei mais alterada que alguma vez existiu em Portugal. Eu acredito muito num sistema mais simplificado, mas também mais claro”.
O diploma acabaria por ser chumbado por Aníbal Cavaco Silva. A 9 de junho desse ano, o Presidente da República anunciou a decisão, explicando ter “várias objeções de fundo” em relação à nova lei. Entre essas “objeções de fundo“, Cavaco Silva apontou o “aumento substancial do financiamento pecuniário não titulado dos partidos políticos e das receitas provenientes de iniciativas de angariação de fundos, da possibilidade de os partidos obterem lucros nas campanhas eleitorais ou do aumento do limite das despesas de campanha na segunda volta das eleições para o Presidente da República”.
Para justificar esta decisão, o então Presidente da República lembrou também a falta de mecanismos de controlo que assegurassem “a necessária transparência das fontes de financiamento privado, no quadro de um sistema que, sublinhe-se, adota um modelo de financiamento tendencialmente público, do qual já resultam especiais encargos para o Orçamento do Estado e para os contribuintes”.
Perante o veto dos Presidente da República e com o fim da legislatura, os partidos deixaram cair o diploma — mas voltariam à carga no início de 2010. Nesse ano, os partidos tentaram uma nova alteração à lei de financiamento dos partidos, com o objetivo de reduzir também as subvenções públicas e os limites máximos dos gastos nas campanhas eleitorais.
Durante a discussão do diploma, António José Seguro foi, novamente, uma das vozes mais críticas em relação à nova lei. O jornal Público falava em “ambiente azedo e remodelação à vista na bancada do PS” e citava o socialista: “Não voto leis de olhos fechados, nem leis contra os meus princípios e valores“.
Marcelo, o comentador, pede intervenção de Cavaco Silva
Marcelo Rebelo de Sousa, que assistia a tudo na qualidade de comentador político, decidiu intervir publicamente, apelando ao veto de Cavaco Silva. “É uma lei errada, errada no conteúdo, errada no momento, por ser em vésperas de eleições, errada no sinal que dá à sociedade portuguesa e errada por ir contra o apelo do Presidente da República”.
Para o comentador, aliás, esta lei era uma “teimosia dos partidos“, que penalizava “todos aqueles que a aprovaram”. Marcelo visava diretamente PS e PSD já que, desta vez, as alterações à lei tinham sido aprovadas apenas por votos a favor dos dois partidos, a abstenção de nove deputados socialistas e do CDS e votos contra de Bloco de Esquerda, PCP e PEV.
Apesar dos apelos de Marcelo, Cavaco Silva acabou por promulgar a lei. Não sem levantar muitas reservas ao diploma: apesar de sublinhar como um “imperativo” a redução das subvenções públicas e dos limites máximos dos gastos nas campanhas eleitorais”, o Presidente da República voltava a questionar os aspetos normativos relacionados com a angariação de fundos.
Segundo Cavaco Silva, “não foram integralmente resolvidas” algumas questões “no domínio da transparência e do controlo dos financiamentos políticos” e continuava a não existir um “critério material definidor do conceito de atividade de angariação de fundos”, sendo possível “que eventos de propaganda ou de natureza similar, de grandes dimensões, com gastos extremamente vultuosos, sejam qualificados, para este efeito, como atividades de angariação de fundos, o que leva a que todos os custos decorrentes daquelas ações acabem, no final, por corresponder a despesas às quais não é imposto um limite”.
O então Presidente da República acrescentava ainda mais reservas: desta lei, dizia Cavaco Silva, podia “resultar uma tendência para um aumento das despesas, subvertendo-se as intenções do legislador e o espírito de todo o diploma ora sujeito a promulgação, já que as despesas decorrentes de atividades de angariação deixam de ser deduzidas do montante da subvenção”.
Cavaco Silva colocava em causa também norma que dava aos candidatos a cargos políticos eletivos o direito de contribuírem com donativos para as receitas dos partidos: “É potenciado o risco de, por via indireta, um candidato fornecer a um partido contribuições financeiras que haja obtido junto de terceiros, sem que exista possibilidade de controlo formal desta realidade”.
O Chefe de Estado acabaria, no entanto, por promulgar a lei, argumentando que, apesar de não concordar com todas as alterações ao diploma que vetara em 2009, o documento reformulado continha “assinaláveis alterações no sentido de uma maior transparência” do financiamento dos partidos e na “contenção de custos” da atividade partidária.