O lançamento do Falcon Heavy, na terça-feira, deu alento à velha ideia de uma viagem até ao planeta Marte – tanto mais que a empresa por detrás daquele foguetão, a SpaceX, do milionário de origem sul-africana Elon Musk, anuncia no site oficial que tem por objetivo enviar astronautas ao Planeta Vermelho em 2024.
Há 55 anos, com a corrida espacial prestes a atingir o auge, um projeto português para uma viagem tripulada a Marte foi apresentado por Eurico da Fonseca. Chamava-se Projeto Bumerangue e atraiu a atenção da NASA, a agência espacial norte-americana.
Desenhador-chefe no Arsenal do Alfeite e investigador no Ministério da Marinha, Eurico da Fonseca (1921-2000) viria a tornar-se conhecido dos portugueses como divulgador de temas científicos na comunicação social. Foi ele quem comentou a chegada do Homem à Lua, em Julho de 1969, aos microfones da então Emissora Nacional. Em 1963, na Conferência sobre Naves Tripuladas promovida em Los Angeles pela American Astronautical Society, apresentou um plano para levar três astronautas a Marte – uma ideia tanto mais fantástica quanto a ida à Lua não tinha sequer acontecido.
O projeto incluía “todos os pormenores”, escreveu o autor em 1997, no jornal A Capital. O cálculo das órbitas foi feito em colaboração com Fernando Veiga de Oliveira (1909-1977), famoso professor de matemática e mecânica celeste na Faculdade de Ciências de Lisboa.
“Na essência, tratava-se de construir uma estação espacial que poderia ser colocada em órbita por um só foguete do tipo Saturno, sendo os depósitos de oxigénio e hidrogénio deste, depois de esvaziados, convertidos nos alojamentos dos tripulantes”, anotou Eurico da Fonseca na revista A Razão, em 1996 (fazia sempre questão de rejeitar a palavra “foguetão”, optava por “foguete”, que considerava mais rigorosa). “A estação seria depois acelerada até entrar numa órbita em torno do Sol, durante a qual passaria por Marte. Então, soltar-se-ia dela um módulo que desceria na superfície do planeta com três tripulantes e que ali poderia permanecer algum tempo, de poucas horas a muitos meses, para depois subir ao encontro da estação, mais adiante ou na passagem seguinte.”
O Projeto Bumerangue teve origem em 1960, quando o “rocket man português”, como ficou conhecido, apresentou num congresso da Federação Internacional de Astronáutica, em Estocolmo, o artigo “A Utilização dos Planetóides Artificiais na Exploração do Espaço Cósmico”. O objetivo era o de chegar à Lua.
Eurico da Fonseca defendia ser necessário reduzir ao máximo a carga a transportar até à superfície do satélite natural da Terra, o que seria possível não com a descida de um foguetão complementar, que pudesse trazer os astronautas de volta à Terra (como então se pensava fazer), mas deixando um foguetão em órbita e fazendo descer na Lua um pequeno módulo tripulado. Foi, em linhas gerais, o que veio a suceder na viagem de Neil Armstrong, Edwin Aldrin e Michael Collins. Mas nove anos antes essa ideia não era corrente.
Pouco tempo depois, Eurico da Fonseca desenvolveu a teoria com vista à aplicação numa viagem a Marte. E apresentou-a, já sob o título Projeto Bumerangue, na Japan Rocket Society, em Tóquio.
Encontro com o inventor das “bombas voadoras”
O Saturno V, com o qual o Falcon Heavy tem sido comparado, teve o seu voo inaugural em 1967, já depois de Eurico da Fonseca ter apresentado o Projeto Bumerangue. Com três andares e capacidade para 45 a 120 toneladas de carga útil, o Saturno V destronou a capacidade tecnológica da então União Soviética e foi usado pelos EUA no âmbito do programa Apolo, de viagens à Lua. Teve como mentor o engenheiro alemão Wernher von Braun (1912-1977), prisioneiro de guerra nos EUA a seguir à II Guerra Mundial e antes disso responsável pelas V-2 nazis, as “bombas voadoras” com que Hitler atacou a Grã-Bretanha e outros alvos.
Foi precisamente com Wernher von Braun que Eurico da Fonseca se reuniu em 1963. Os americanos tinham ouvido o português em Tóquio e estavam interessados em saber mais sobre o projeto a viagem tripulada ao Planeta Vermelho. Foi então convidado pela administração americana para conhecer o complexo industrial astronáutico e as instalações da NASA e para se reunir com Von Braun.
O investigador nunca revelou grandes detalhes em público. Nos artigos de divulgação que assinou fez sempre uma descrição generalista do projeto. Tanto quanto se sabe, foi mais longe apenas uma vez, em 1997, nas páginas de A Capital, ao fazer publicar rascunhos do Bumerangue.
“Os depósitos de propulsante seriam quatro, colocados em torno de um eixo longitudinal, que conteria os sistemas principais, e seria encimado pelo módulo que desceria em Marte, usando a travagem aerodinâmica”, escreveu naquele jornal. “Uma vez no espaço, os depósitos mover-se-iam como as varetas de um guarda-chuva, formando uma verdadeira estação especial. O módulo de descida serviria de base e teria ao centro o foguete de regresso.”
A NASA “interessou-se pela ideia, desenvolveu-a, designou-a por HORS, Heliocentric Orbital Rendez-Vous System, e conserva-a como uma alternativa”, escreveu o “rocket man” na revista A Razão.
Eurico da Fonseca morreu em 2000, sem nunca ter visto desenvolvimentos do projeto. Era já uma figura popular entre os portugueses, através de frequentes aparições no programa “Ponto Por Ponto”, de Raul Durão, na RTP, e de artigos no Diário Popular, no Se7e, na revista História e em A Capital. Ainda hoje é reconhecido como tradutor de ficção científica – mais de 500 livros para a coleção Argonauta da editora Livros do Brasil.