Desde que foi preso Carlos Rafael, o açoriano que se tornou um dos empresários pesqueiros mais poderosos dos EUA, o porto de New Bedford, no estado do Massachusetts, nunca mais foi o mesmo. Detentor de uma frota de mais de 40 barcos que faziam dele o detentor de um monopólio naquele que é um dos portos de pesca mais importantes dos EUA, Carlos Rafael foi preso em setembro por um total de 28 crimes. Agora, o porto de New Bedford está a afundar — e alguns dos barcos do homem conhecido como Codfather também já foram literalmente ao fundo.
A sentença foi-lhe lida em Setembro de 2017, depois de já ter admitido culpa dos 28 crimes de que foi acusado — onde se incluem conspiração, violação das quotas pesqueiras e fuga ao fisco. Em suma, o Codfather — alcunha pela qual Carlos Rafael é conhecido e que surge da junção das palavras “Cod” (bacalhau) e “Godfather” (padrinho) — enganava as autoridades ao pescar peixes de quotas protegidas e declarando-os como espécies abundantes, para depois vender a um comprador nova-iorquino. Este pagava-lhe grande parte do dinheiro debaixo da mesa, dinheiro esse que Carlos Rafael escoava para bancos portugueses, em viagens periódicas aos Açores.
O luso-americano — que o Observador entrevistou em outubro de 2016 e sobre o qual escreveu um perfil em março de 2017 — foi apanhado quando pôs o seu negócio à venda e recebeu a visita de dois agentes das autoridades fiscais, que se fizeram passar por mafiosos russos à procura de comprar a empresa Carlos Seafood. Por tudo isto, Carlos Rafael, que em 1988 tinha passado quase cinco meses na prisão por evasão fiscal, foi condenado a pagar uma multa de 200 mil dólares (cerca de 160 mil euros) e a passar 3 anos e 10 meses atrás das grades. Além disso, foram-lhe confiscadas embarcações e quotas pesqueiras.
A história de Codfather, um açoriano sem lei nos mares dos EUA
Nas alegações finais, Carlos Rafael auto-penitenciou-se nalgumas partes (“foi a coisa mais estúpida que já fiz”, disse, acerca dos crimes que cometeu) e noutras procurou desculpar-se pelas suas ações (“Fi-lo porque queria garantir que as minhas pessoas continuam a receber o cheque de ordenado”, disse ao juiz).
O magistrado não se deixou comover com as palavras de Carlos Rafael e procurou responder-lhe à letra. “Isto não foi uma estupidez. Isto foi corrupção. Isto foi um rol de ações corruptas do início ao fim”, disse o juiz. “Tudo para seu benefício. Para lhe encher os bolsos. Foi isso que fez, e é porque isso que o tribunal lhe dá esta sentença.”
Houve, porém, outra afirmação de Carlos Rafael à qual o juiz não deu resposta. Foi a parte em que, já ciente de que ia parar à prisão e de que o seu monopólio pesqueiro iria ser gravemente afetado, disse: “Só espero que isto não prejudique as pessoas no cais (…). Elas não merecem isso”.
O caso de Carlos Rafael mereceu a atenção de vários media nos EUA, entre os quais o The New York Times, o Boston Globe ou a Vice. A sua história também fez parte de um episódio de “Podre”, uma série de seis documentários sobre o lado menos agradável da indústria alimentar, disponível no Netflix.
Ninguém pode, nem consegue, preencher o vazio do Codfather
Passados quase cinco meses da leitura da sentença, os relatos que surgem daquela cidade pesqueira onde a comunidade luso-americana tem uma forte presença, apontam precisamente para a concretização do receio expressado por Carlos Rafael em tribunal. Isto porque a empresa de Carlos Rafael perdeu as licenças pesqueiras que este, desde que elas foram introduzidas em 2008, foi comprando a pescadores mais pequenos.
Além disso, na sequência do caso de Carlos Rafael, a Administração Oceânica e Atmosférica Nacional (NOAA, na sigla inglesa) emitiu uma ordem para que fossem atracadas todas as embarcações com licença para pesca de fundo (que engloba 17 espécies, incluindo o bacalhau) no chamado “Sector IX”, onde Carlos Rafael era o principal armador. “O administrador regional determinou que o setor e os seus participantes não cumpriram os requerimentos aprovados no plano de operações”, lia-se naquela ordem. A NOAA suspendeu também as candidaturas a quotas de pesca de fundo para 2018, dizendo que aquele sector “não poderá funcionar até recebermos informação suficiente sobre o alcance e a natureza das falhas nos planos de operação e as ações tomadas pelo setor para responder adequadamente a essas falhas”.
Na sequência desta proibição, que afeta não só as muitas embarcações de Carlos Rafael com as poucas daqueles que ainda lhe faziam concorrência, o porto de New Bedford, que já foi o mais importante dos EUA, está praticamente parado e calcula-se que centenas de pessoas já estão no desemprego. Segundo estimativas de Daniel Georgianna, professor da School for Marine Science and Technology da Universidade do Massachusetts, em janeiro já se tinham perdido cerca de 300 empregos após a proibição de pesca de fundo emitida contra o porto de New Bedford. De acordo com aquele académico, além das três centenas de emprego também se perderam receitas na ordem dos 5,7 milhões de dólares. Tudo isto em menos de quatro meses.
As licenças de pesca de fundo (onde se inclui o bacalhau) que pertenciam a Carlos Rafael — o número não é público mas, de acordo com o Boston Globe, estima-se que sejam cerca de um quarto do total reservado para a região da Nova Inglaterra — ainda não foram vendidas ou atribuídas a outros pescadores. Inseridos num meio onde o maior agente do mercado funcionava em quase monopólio, os pescadores que hoje sobram não têm capacidade para comprar estas licenças nem para torná-las rentáveis.
Segundo a One Fish Foundation, uma ONG que se debruça sobre questões relacionadas com pescas, a justiça norte-americana confiscou a Carlos Rafael um total 13 navios e quotas pesqueiras com um valor total entre os 27 e os 30 milhões de dólares (22 a 24,5 milhões de euros).
“Chego a casa e não consigo dormir”, contou ao The New York Times Anne Jardin-Maynard, dona de uma empresa de prestava serviços às empresas da indústria pesqueira de New Bedford, faltando hoje a grande fonte de receita que era o universo de Carlos Rafael. “São as fábricas de gelo, as empresas de combustíveis, os mecânicos — toda a gente está a sofrer com isto”, disse àquele jornal.
Tudo isto está a causar uma pequena vaga de desemprego naquela cidade costeira, garantiu Stephen Lozinark, capitão de uma embarcação de New Bedford, ao jornal local South Coast Today. “Tudo o que o governo fez foi contra os pescadores, seja biológico ou económico”, disse. “Supostamente há 80 pescadores sem trabalho, mas provavelmente são mais. Por cada pescador, há provavelmente quatro ou cinco empregos em terra.”
“Foi o governo que criou Carlos Rafael”
Ao South Coast Today, William Straus, membro da Câmara dos Representantes do Massachusetts, explicou como o sistema de licenças beneficiou Carlos Rafael — e como, agora que ele está preso, não está a permitir aos outros pescadores ocuparem o espaço que ficou livre. “O sistema encoraja um empresário a açambarcar todas as licenças, o que acontece muito facilmente em locais onde há muita procura, como a pesca de fundo em New England”, disse. “O que [Carlos] Rafael fez foi chegar ao pé de pessoas que tinham umas poucas licenças e disse-lhes: ‘Passem para cá isso porque vocês não se podem dar ao luxo de mandarem os barcos para o mar para pescar só isso’.”
Agora, o futuro das quotas de pesca de fundo que pertenciam a Carlos Rafael está a ser alvo de um amplo debate. Enquanto os concorrentes querem que elas sejam atribuídas e/ou vendidas a pescadores de outras zonas da Nova Inglaterra, como o Maine, em New Bedford pede-se que elas continuem por ali. “Dêem uma oportunidade aos pescadores”, pediu o capitão Stephen Lozinark. “Dêem-lhes empréstimos estatais para avançarem. O governo não tem o direito de lhes tirar as licenças. Assim que elas começaram, foi uma questão de tempo até elas irem para as mãos de uns poucos. Foi o governo que criou [Carlos] Rafael.”
Mesmo na prisão, apanhado de novo
Para já, ainda não há decisão quanto ao destino das quotas pesqueiras que foram confiscadas ao Codfather, apesar das notícias que dão conta de reuniões entre autoridades locais e estaduais e a NOAA.
Entretanto, em janeiro, surgiu uma notícia que demonstra que há coisas que nunca mudam. Embora esteja proibida de fazer pesca de fundo, a Carlos Seafood ainda pode fazer outro tipo de pesca. Como solução, resta a pesca da vieira, para a qual a empresa de Carlos Rafael já detinha quotas. No dia 28 de janeiro, um domingo, o barco Dinah Jane, de Carlos Rafael, voltou ao porto de New Bedford. As autoridades fiscalizadoras subiram a bordo do navio e os pescadores mostraram-lhes os 360 quilos de vieiras que pescaram, sendo esse o limite das quotas daquele barco. Depois, os fiscais perguntaram “várias vezes” se havia mais vieiras a bordo — ao que lhes responderam sempre negativamente.
Mas, provavelmente tendo em conta o passado da Carlos Seafood, os fiscais foram ao porão do navio e começaram a procurar. Foi assim que, depois de escavarem numa arca congeladora, encontraram 54 quilos de vieiras, já sem casca, escondidos debaixo de gelo.