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À procura de ouro nos Andes, Salomé Lamas encontrou um filme

Na Rinconada, Peru, há uma comunidade mineira que vive a 5500 metros de altitude, no limite da sobrevivência humana. "Eldorado XXI" é o documentário que a revela.

Salomé Lamas é calma a falar sobre o seu trabalho, os seus filmes. Voz tranquila, pausada, esconde uma hiperactividade, uma agenda de trabalho ocupada. E invejável. Quase no final de uma conversa com mais de uma hora tem que se perguntar pelo porquê disso, de estar sempre a trabalhar. Há uma modéstia no tom, uma aceitação de que só assim se consegue mover.

A propósito do método que seguiu em “Eldorado XXI”, que se estreia em Portugal no próximo dia 9 de Fevereiro, diz que “a La Rinconada, a sua história, a forma como se liga ao cinema de documentário e ficção, tem todas as qualidades de quem está à distância a explorar aquele local. Essas qualidades prendem-se com o aborrecimento e a hiperactividade. E este filme comporta riscos. Esta coisa de fazer filmes está ligada a um acto de alguém que colecciona experiências, a uma adrenalina que me é vital.”

[o trailer de “Eldorado XXI”:]

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Antes do seu “Eldorado XXI” e da Rinconada, vale a pena tocar na sua agenda. “Eldorado XXI” chega às salas portuguesas na próxima quinta-feira. No dia seguinte estreia a sua mais recente curta na 67º edição da Berlinale – Festival internacional de Cinema de Berlim, “Coup de Grâce”. É o seu terceiro trabalho em Berlim, depois de “Terra de Ninguém” em 2013 e “Eldorado XXI” no ano passado. Tem uma exposição a decorrer na Galeria Miguel Nabinho em Lisboa, “Mount Ananea (5853)”, com material que filmou na Rinconada. Em Março leva a sua colaboração com Gregorio Graziosi, “Horizon Noziroh” ao CPH:DOX em Copenhaga e em Abril apresenta no CCB a peça que tem estado a escrever, “Fatamorgana”, integrada na BoCA — Bienal de Arte Contemporânea. Enquanto isso tudo acontece tem outro filme em mãos, “Extinção”. Na sua página dá para perceber o quão produtiva e criativa tem sido ao longo de quase uma década. Tem 29 anos.

“Eldorado XXI” sugere a procura da riqueza abastada através do ouro. O mito, a crença, a inabalável fé e sacrifício do homem para encontrar uma salvação pelo dinheiro. Salomé Lamas encontrou um local assim, La Rinconada y Cerro Lunar, nos Andes peruanos, uma comunidade mineira que vive a 5500 metros de altitude, no limite da sobrevivência humana. Foi movida pela sua vontade e instinto de que ali poderia encontrar uma história: “Os locais que me atraem são ecléticos e distintos. Isso faz com que os trabalhos sejam diferentes nas zonas e locais que tratam. São locais difíceis, ou personagens difíceis de precisar: o que são, como descrever e fixar. São difíceis de julgar e apresentam situações limites. Na Rinconada esses limites são claros, não só geograficamente, por ser a povoação ou a cidade mais alta no mundo, a 5500 metros de altitude, acima disso não é possível o ser humano fixar-se. Àquela altura já há uma série de riscos e não é saudável habitares naquela altitude”.

O mineiro trabalha trinta dias sem remuneração e ao 31º dia é-lhe permitido explorar a mina durante quatro horas. Tudo o que apanhar será seu. Mas após séculos de exploração a sorte é diminuta. Contudo, milhares de pessoas ainda são hipnotizadas pela promessa dela. É o mito do Eldorado no século XXI.

Vivem cerca de oitenta mil pessoas ali, em habitações sobrelotadas e em condições extremas. É difícil ir com uma história no bolso: “É uma população flutuante, seria impossível controlar, estruturar uma rodagem, porque o que ias encontrar no ano seguinte seria diferente. Está em permanente mutação”. São movidas pelo trabalho nas minas e pela promessa de riqueza, através de um sistema próximo de uma lotaria: o cachorreo. O mineiro trabalha trinta dias sem remuneração e ao 31º dia é-lhe permitido explorar a mina durante quatro horas. Tudo o que apanhar será seu. Mas após séculos de exploração a sorte é diminuta. Contudo, milhares de pessoas ainda são hipnotizadas pela promessa dela. É o mito do Eldorado no século XXI.

Salomé Lamas encara o seu filme como uma espécie de “flirt com o cinema etnográfico”. Ir lá, viver lá, era importante. Sentir o que era viver numa cidade mineira naquelas condições: “Se alguém estiver aos berros na rua, não abres a porta. Tens um médico que distingue uma urgência de uma emergência. Para filmar à noite tinha de ser acompanhada por dois polícias com armas assim, grandes. E depois há a prostituição, taxa de alcoolemia elevada, violência, uma povoação sem lei, há exploração no trabalho, tráfico humano, lavagem de dinheiro e por aí adiante”.

A realizadora Salomé Lamas, de 29 anos

E como se sabe que há um filme ali? Salomé e a sua equipa tinham estado na Rinconada em 2014 durante alguns dias a fazer pesquisa e em 2015 estiveram lá cinco semanas até não aguentarem mais. “Há um lado lírico da minha parte, um acto de fé. O financiamento para um filme de não ficção é algo muito distinto, eu preciso de saber quanto tempo posso comprar para habitar aquela realidade. O filme nasce da minha pessoa e da equipa atrás de mim, do encontro com essa realidade. Somos corpos estranhos ali. Quanto tempo posso habitar nessa realidade até que o real se torne extraordinário? E tu sabes quando isso acontece. No ‘Eldorado XXI’ esse momento já tinha acontecido no ano anterior, no plano da Compuerta. Filmei vinte minutos e, quando voltei, filmei praticamente o mesmo plano durante duas horas. Para mim aquilo condessa o que é a Rinconada.”

Esse plano domina a primeira metade de “Eldorado XXI”. Plano fixo na entrada das minas, ao longo de quase uma hora há um movimento contínuo de mineiros a saírem da mina: “É uma mudança de turno. Apanhas muitos mineiros a irem para as minas, aquilo é uma das linhas de acesso pedestres às minas e apanhas mineiros que estão a sair. Ao mesmo tempo, como é o fim do dia, apanhas todos os comerciantes e pessoas que foram para o outro lado e que estão a regressar a suas casas. O que se passa ali é o que se passa na Rinconada.”

O movimento hipnotiza o espectador. E à medida que o tempo passa é sugado para aquela realidade. O plano fixo torna-se num quadro em movimento, uma espécie de fantasia que se vai tornando numa realidade angustiante que se apanha através dos testemunhos que se ouvem: entrevistas, programas de rádio, spots institucionais das eleições, relatos directos.

5 fotos

O espectador sabe que não está na Rinconada mas sabe fica a saber que ela existe. É uma introdução dura num filme que nunca esconde a dureza daquela realidade, mas constrói a sua história através da contemplação. Os planos de Salomé em “Eldorado XXI” são contemplativos, sejam da natureza, o da Compuerta, ou dos festejos que se celebram naquele local. A história que a realizadora encontrou na Rinconada concretiza-se na forma como o espectador observa, sente e é absorvido pelo movimento nos seus planos.

Há também um outro olhar sobre a humanidade, sobre as relações entre as pessoas. “A palavra ‘amigo’ tem uma conotação diferente. Tudo é pago na Rinconada. Costumo reflectir sobre esta questão, mesmo que tenhas uma relação de amizade com alguém, o que aqui chamamos de um favor, ou ‘obrigada pelo jantar, pela cerveja’, não existe na Rinconada. Até podem existir relações de proximidade entre as pessoas, mas tudo implica uma troca de dinheiro. A questão que eu coloco é, será que aqui em baixo não somos mais cínicos? Será que as relações de amizade não implicam uma relação de poder, de interesse, uma troca, transacção de qualquer género. Até pode ser de afectos. Ali é só mais claro, directo, tem um número indexado a essa troca.”

“Se alguém estiver aos berros na rua, não abres a porta. Tens um médico que distingue uma urgência de uma emergência. Para filmar à noite tinha de ser acompanhada por dois polícias com armas assim, grandes. E depois há a prostituição, taxa de alcoolemia elevada, violência, uma povoação sem lei, há exploração no trabalho, tráfico humano, lavagem de dinheiro e por aí adiante”

A conversa continua e chega-se inevitavelmente a Berlim e a “Coup de Grâce”, que estreia na Berlinale a 10 de Fevereiro e terá três outras sessões no decorrer do festival. “Fala sobre a relação de um pai e de uma filha, há uma mãe ausente, nós não sabemos se ela os abandonou ou faleceu. O pai está num processo alucinado de luto e de se desvincular do resto que esta mulher deixou. A filha estava fora mas acaba por voltar para resgatar o pai desta situação. Ele é obrigado a aceitar esta filha de volta, volta uma filha crescida e há este reencontro. É um filme que dentro do cinema narrativo se aproxima do cinema experimental. Em formato curto, os filmes estritamente narrativos não me satisfazem enquanto espectadora, então senti um certo desconforto em fazer um. Não quer dizer que eu ache que os filmes narrativos em formato de longa-metragem não seja um formato que gostaria de experimentar. É um formato que enquanto espectadora me é muito gratificante e prazeroso de assistir.”

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