27 de fevereiro de 2012. A data está na ponta da língua de João*: a memória não falha quando o assunto é o filho que foi viver para longe dele. Recorda-se com precisão dos eventos, quando naquela segunda-feira à tarde chegou a casa para se deparar com uma nota escrita pela então companheira. “Dizia que ia passar uns dias com a mãe a Faro e que levava o miúdo”, conta ao Observador. “Foi uma coisa premeditada. Já o nosso filho estava inscrito numa creche em Faro e tinha um médico”. Mais do que isso, João diz que a ex-namorada manipula o filho, levando-o a pensar que o pai é o mau da fita. “Ele ainda se dá bem comigo, mas tenho medo que, com o avançar da idade, a manipulação vá surtir efeito”.
João nunca pensou que isto pudesse acontecer-lhe. A ele, um militar da GNR com quase 20 anos de carreira e depois de partilhar o mesmo teto com a namorada durante 17 meses. Ao Observador recorda a vez em que a mãe o agrediu assim que viu o filho correr para os braços da avó paterna, em vez dos seus, e se fez passar por vítima (o que resultou num processo disciplinar a manchar o nome do militar). Mais tarde, a ex-companheira fez o filho acreditar que tinha sido o pai a bater-lhe. “Estávamos a falar ao telefone quando ele disse que eu tinha agredido a mãe. Não soube o que dizer. Fiquei em silêncio”. Assegura ainda que a ex-namorada denigre a sua imagem à frente do filho e que há uns tempos descobriu que um presente feito por ocasião do dia do pai tinha sido intercetado na creche e nunca chegou ao destino final.
Foi ela quem ficou com a guarda do menino que agora tem três anos e meio e escolheu ir viver para o sul do país, a quase 400 quilómetros de distância do pai que, sem o desejar, é cada vez mais ausente. Por ordem do tribunal, pai e filho podem estar juntos um fim de semana por mês. Fora isso, é sempre que a vontade e as saudades comandarem os atos. Mas o “sempre que quiser”, diz, é relativo — ele vive em Abrantes e não tem os meios financeiros para deslocações assíduas. “O meu maior medo é a falta de imparcialidade de quem julga”, afirma. João é o pai alienado.
Alienação Parental, um tema controverso
João não está sozinho no barco. Tal como ele há muitos pais, homens e mulheres, que se veem privados do contacto com os filhos, por norma, na sequência de divórcios litigiosos. O fenómeno é real e ocupa espaço na esfera social sob o nome “Alienação Parental”. O conceito é usado quando um pai manipula o filho, ou a filha, no sentido em que o mais pequeno fica com uma imagem distorcida do outro progenitor, levando-o, inclusive, a terminar os laços afetivos. Quem o diz é Ricardo Simões, presidente da Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Direito dos Filhos. “A criança é utilizada como um instrumento, vista como uma ‘coisa’ para atingir o outro”, esclarece ao Observador.
O fenómeno ocorre principalmente no momento em que um casal se separa, seja no período do divórcio ou pós-divórcio, mas também pode dar-se o caso de acontecer quando os pais ainda estão juntos. Exemplo disso é um progenitor usar a criança como bem entender, à revelia do outro pai. Ricardo Simões garante que são “cada vez mais” os relatos de pessoas que ainda estão juntas que chegam à associação, que celebra pelo segundo ano consecutivo o dia nacional da alienação parental a 5 de fevereiro, embora não seja uma data oficial — a associação lançou, em 2012, uma petição para a criação do dia nacional; teve um parecer positivo da Subcomissão parlamentar de Igualdade, embora não tenha ido a votação em plenário da Assembleia da República).
Estratégias da “Alienação Parental”, segundo se lê na página da Associação para a Igualdade Parental:
- Isolar a criança: “A primeira forma de isolamento normalmente é a redução das comunicações, em que o progenitor passa a controlar as chamadas telefónicas ou o correio dos filhos supervisionando o seu contacto com o outro progenitor”;
- Evitar o contacto físico: “As atividades extra-curriculares, as festas de aniversário, etc… subitamente passam a coincidir sempre com os horários que correspondem ao outro progenitor”.
- Intercetar presentes ou mensagens: “Pode acontecer que o progenitor alienador (ou seja, o que inicia a ‘guerra’) quer que a criança pense que o progenitor alienado não se importa com ela”;
- “Purga emocional”: “Consiste na eliminação de quaisquer recordações, em que se invocam momentos felizes passados com o progenitor que se deseja afastar. Assim, ao apagarem-se as memorias, dá-se uma rutura simbólica dos laços emocionais”.
- Distanciamento físico e rapto: “É hoje sabido que um dos fatores que aumenta o risco de rapto é o desejo de um dos progenitores programar os seus filhos contra o outro progenitor”.
Texto da autoria de Drª Teresa Paula Marques, Psicóloga Clínica, especialista em Psicologia Infantil e do Adolescente
Importa esclarecer que “a síndrome e o fenómeno são duas coisas diferentes”, diz o presidente da Associação Para a Igualdade Parental. Enquanto a ideia de Síndrome da Alienação Parental remonta à tese proposta em 1985 por Richard Gardner, referindo-se a uma suposta patologia da criança, o fenómeno social tem por base as consequências nas vidas dos mais novos. Síndrome ou fenómeno? Essa é uma discussão na qual Ricardo Simões não quer entrar.
Descomplicando o complicado: “Nós usamos a designação ‘Alienação Parental’ para explicar um perfil de comportamento. Enquanto doença psicopatológica, inserida no manual de psiquiatria, isso não existe”, esclarece a psicóloga Inês Afonso Marques. Adianta, no entanto, que há características muito próprias de pais que estão relacionadas com o conceito. Rute Agulhas, também ela psicóloga forense, parece concordar. No exercício da sua profissão — faz avaliações periciais a pedido dos tribunais tendo em conta casos de guarda parental — diz que não utiliza o termo por este não ser reconhecido a nível nacional e internacional. Ainda assim, argumenta que “existem esse tipo de dinâmicas”.
“Não utilizamos esta expressão devido à controvérsia a ela associada, por não ser reconhecida internacionalmente de forma consensual e por, em rigor, o termo ‘alienação’ remeter para um tipo de funcionamento mental específico, caracterizado por perturbação psiquiátrica.
Mas não utilizar a expressão não significa que não reconhecemos a existência de determinadas dinâmicas familiares que remetem para a instrumentalização e triangulação da criança, com consequências negativas para os vínculos afetivos que estas estabelecem com os seus cuidadores/progenitores.”
Excerto do livro “Casos Práticos em Psicologia Forense”, de Rute Agulhas e Alexandra Anciães
“Uma síndrome, se formos ver à medicina, é um conjunto de sinais e sintomas. No fundo é uma doença”, explica Rute Agulhas, rejeitando, assim, a ideia de “Síndrome de Alienação Parental”. Já “alienação” vem do Latim e no passado dizia respeito aos “alienados”, isto é, doentes mentais que estavam internados; os psiquiatras eram os “alienistas”. “O termo remete para perturbação mental e muitas das dinâmicas descritas acontecem, na maior parte dos casos, numa família sem doenças mentais”, garante a psicóloga forense. Não havendo necessariamente uma perturbação mental, garante que o tipo de atitudes em debate é capaz de influenciar a dinâmica familiar.
“A criança é programa de forma subtil”
Ao consultório de Inês Afonso Marques chegam alguns casos de “alienação parental”, ainda que, à partida, não estejam assim diagnosticados. “A criança surge com alterações de comportamento e/ou humor que, depois de devidamente enquadradas, se percebem estar associadas à relação entre pais e/ou com os pais”, explica ao Observador. Neste contexto, os mais novos também se queixam, embora nem sempre o consigam verbalizar — ao invés, acumulam dúvidas e sentimentos contraditórios.
Parece difícil conceber que uma criança seja manipulada pelo próprio pai ou mãe, mas acontece. A profissional da Oficina de Psicologia esclarece que a criança é “programada, de forma subtil, a criar uma imagem negativa do outro progenitor”, seja através do uso de comentários sarcásticos, críticas e histórias da vida passada do casal capazes de denegrir a imagem do outro. Uma realidade que contraria o que as crianças desejam após um divórcio, isto é, uma “relação saudável com ambos os pais, sem medos, culpa ou necessidade de tomar partidos”.
O medo de perder o amor dos pais, ou de um deles, é muitas vezes motivo suficiente para que os mais novos se deixem ficar presos à manipulação parental, mesmo tendo a consciência que a honestidade não seja, naquelas circunstâncias, o ponto forte do pai. E quanto mais pequenas forem as crianças, maior a sua vulnerabilidade à manipulação.
A insegurança registada nas relações parentais pode fazer com que a criança crie uma imagem frágil de si própria e de quem está ao seu redor. Assim, torna-se difícil para ela confiar e estabelecer novas relações. Mais, as preocupações constantes agudizam o aparecimento de sintomas ansiosos e depressivos, o rendimento escolar pode ser afetado devido à incapacidade de a criança manter-se concentrada e motivada, podendo ainda registar-se alterações nos padrões de sono e na alimentação, mudanças bruscas de humor e maior agressividade, explica Inês Afonso Marques.
Mas desengane-se quem pensar que as únicas vítimas são os mais novos: os pais também sofrem, seja a vítima ou o causador de conflitos. “O perfil do pai que aliena o outro pode ser variável… No entanto, frequentemente assiste-se a uma necessidade exagerada de controlo e a uma grande insegurança. Um pai que aliena o outro também é, na maioria dos casos, um pai em sofrimento”. Já o que é alienado, não há dúvidas: elevados níveis de angústia, alterações de padrões de sono e alimentação, isolamento, alterações de humor, sintomas depressivos e ansiosos… a lista continua.
“Alienação Parental”: onde está a polémica?
Não existe uma construção jurídica da “alienação parental” em Portugal, ao contrário do que acontece por terras brasileiras, cuja lei prevê a expressão em causa. É o juiz António Fialho da secção de famílias e menores do Barreiro quem o explica ao Observador. “O conceito tem sido admitido por algumas doutrinas e por alguns tribunais [em Portugal], tendo em conta comportamentos de pais que afetam a relação dos filhos com os outros progenitores”, afirma. Mas esclarece que, apesar de o conceito ser invocado em tribunais, não conhece nenhum caso em o termo tenha sido aceite por todas as pessoas envolvidas. “Nem eu próprio tenho forma de reconhecer a síndrome”, avança. “Não tenho conhecimentos nem habilitações para isso.”
“Lei No – 12.318, DE 26 DE AGOSTO DE 2010 (Diário Oficial da União, Brasil)
Art. 2o Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos progenitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este”.
O juiz esclarece que não se preocupa com o conceito, mas sim com os efeitos e os comportamentos a ele associados, bem como a forma de os evitar. No seu ponto de vista, quando os comportamentos em causa ocorrem existe “alienação parental”. “A ‘alienação parental’ acontece quando um progenitor procura afetar o vínculo entre o filho e o outro pai. É uma espécie de lavagem cerebral.”
O tema suscita muitas dúvidas, sobretudo quando se chega aos cenários previstos na lei. Para Dulce Rocha, vice-presidente do Instituto de Apoio à Criança, a tese em causa [considerando a “alienação parental” e a SAP, que a também magistrada coloca debaixo do mesmo chapéu] propõe soluções muito drásticas, desde a mudança de guarda a casos em que os mais novos são retirados de ambos os pais e colocados em instituições.
Dulce Rocha afirma que a Síndrome de Alienação Parental de Richard Gardner considera “uma forma simplista de solucionar problemas complexos”. O norte-americano defendia que a recusa das crianças em contactar um dos pais — geralmente o pai e não o detentor da guarda — “tinha por base uma campanha levada a cabo pela mãe para denegrir a sua imagem”. Gardner dizia ainda que se tinha de acabar com a instrumentalização da criança, “através da mudança da guarda, precedida da institucionalização da criança, sem quaisquer contactos com a mãe, que inventavam factos inexistentes, designadamente abusos sexuais, acusando o pai sem qualquer fundamento”.
Discordando da tese, Dulce Rocha cita a magistrada Maria Clara Sttomayor que defende que separar as crianças da sua pessoa de referência é mais prejudicial do que reduzir a relação desta com o progenitor que não é guardião. Dito isto, a vice-presidente do IAC não considera razoável que os princípios aceites pela comunidade científica sobre vinculação, estabilidade psicológica e a necessidade de preservação das relações afetivas profundas da criança sejam “postos em causa por uma tese que não tem validade científica, que revela um enorme preconceito em relação às mulheres, representadas como mentirosas, calculistas e perversas”.
Dulce Rocha traz ainda ao debate o artigo 1906 noº 5 do Código Civil, que diz ser próximo da tese de Gardner. “A criança é retirada da pessoa primária de referência em nome da cláusula friendly parent provision que a nossa lei acolheu”, diz a magistrada. Nos Estados Unidos, existe o critério do friendly parent provision, segundo o qual o progenitor que bloquear o contacto da criança com o outro progenitor é “punido”, sendo atribuída a guarda única a este último; em Portugal, esta cláusula do artigo 1906º, nº 5 do Código Civil é denominada como “cláusula do progenitor amistoso”.
Segundo a entrevistada, o artigo 1906º “ignora a violência doméstica”, no sentido em que as situações sob o chapéu de alienação parental podem estar a “mascarar” outras realidades. “Devia haver uma cláusula de salvaguarda da violência doméstica”.
“Artigo 1906º, nº5 do Código Civil
O tribunal determinará a residência do filho e os direitos de visita de acordo com o interesse deste, tendo em atenção todas as circunstâncias relevantes, designadamente o eventual acordo dos pais e a disponibilidade manifestada por cada um deles para promover relações habituais do filho com o outro.”
“Acontece a mulheres e a homens, pais e filhos”
António Fialho afirma que há pais e mães alienadores e que, por vezes, existe dupla alienação, no sentido em que cada um deles luta para reduzir o contacto do filho com o outro. “Há quem faça várias leituras, isso é como a situação de alteração de guarda”. E para o juiz da secção de famílias e menores do Barreiro, a discriminação é um “falso problema”: “Não é o número de ocorrências que faz com que um fenómeno seja aplicado a um sexo ou a outro. Ocorre em relação aos dois”.
Ricardo Simões, da Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Direito dos Filhos, concorda — “Acontece a mulheres e a homens, pais e filhos. Genericamente, a maior parte dos progenitores que são alienados continua a ser homens, mas também há mães. Não afeta só os pais. Cerca de 40 a 50% das pessoas nos grupos de ajuda mútua [promovidos pela associação e destinados a ajudar pais alienados] são mulheres”. Rute Agulhas, a perita, acrescenta que o modelo tradicional familiar está à beira da extinção e que os pais homens são, hoje em dia, muito mais interventivos e cada vez mais empenhados no exercício da parentalidade.
Conceitos científicos e jurídicos à parte, uma coisa parece se indiscutível: a “alienação parental”, diz a psicóloga Inês Afonso Marques, “é uma forma de negligência porque é negada à criança uma necessidade básica para o seu crescimento harmonioso”. E tudo o que João, o testemunho real, quer é que o seu filho de três anos e meio cresça dessa forma, harmoniosa.
* Nome fictício. Esta pessoa não quis ser identificada.