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A ideia de os robots poderem constituir uma ameaça para a humanidade anda no ar desde, pelo menos, a década de 1920, apesar de por essa altura os robots existentes serem máquinas extremamente limitadas e pouco autónomas. Na verdade, o tema da revolta robótica e o termo “robot” nasceram juntos: foi na peça R.U.R. (1920), do escritor checo Karel Čapek (1890-1938), que descreve um futuro não muito distante (anos 50-60) em que os robots, fabricados pela firma R.U.R. (Rossumovi Univerzálni Roboti = Robots Universais Rossum), são omnipresentes e executam todo o trabalho, por um quinto do custo de um trabalhador humano.
A aparente solicitude com que os robots desempenham as suas tarefas acaba por desvanecer-se e a revolta dos robots – facilitada pela sua “universalidade”, o que significa que, ao contrário dos humanos, falam todos a mesma língua – culmina no massacre dos humanos, deixando apenas um sobrevivente.
R.U.R. é uma obra fundadora da ficção científica e o mais influente modelo das distopias robóticas que se seguiram, mas convém precisar que Čapek empregou o termo robot numa acepção diversa da que se tornou usual: os robots de R.U.R. não são engenhos mecânicos mas andróides, ou seja, organismos biológicos artificiais com aparência humana.
Outro equívoco associado a R.U.R. tem a ver com a autoria do termo “robot”, que costuma ser creditada a Karel Čapek; porém, este deixou explícito que fora o irmão, o escritor e pintor Josef Čapek, que a sugerira, tomando como ponto de partida a palavra checa “robota”, que significa corveia, servidão, trabalho penoso.
R.U.R. conquistou o planeta ainda mais rapidamente do que os seus robots: tendo estreado em 1921 em Praga, em 1922 chegou a Nova Iorque, em 1923 a Londres, Chicago e Los Angeles e em 1924 a Paris. Em 1923 já o livro tinha sido traduzido para 30 línguas.
A revolta das máquinas e da inteligência artificial tornou-se um tema recorrente da ficção científica, alimentando contos e romances de autores “clássicos” como Arthur C. Clarke (Dial F for Frankenstein, de 1961), Robert Heinlein (The moon is a harsh mistress, de 1966) e Isaac Asimov (vários contos da década de 1940) e filmes como Terminator (1984). O tema continua a fascinar os leitores, a julgar pelo sucesso de romances recentes como How to survive a robot uprising (2005) e Robopocalypse, de Daniel H. Wilson (2011) ou A.I. apocalypse (2012), de William Hertling.
Mas os alertas contra os robots não vêm só de sub-géneros pouco considerados pela cultura high brow – também cientistas e académicos respeitados têm vindo a tecer considerações ominosas sobre a ascensão das máquinas. Numa entrevista de 2014 à BBC, Stephen Hawking advertiu que “o desenvolvimento sem limites da inteligência artificial poderá ditar o fim da raça humana”, pois ela “seria capaz de tomar o seu próprio curso e aperfeiçoar-se a si mesma a um ritmo cada vez mais rápido”, e “os humanos, que estão limitados pela lentidão da evolução biológica, não seriam capazes de competir e seriam ultrapassados”. Stuart Armstrong, investigador do Future of Humanity Institute, da Universidade de Oxford, avisou, num debate sobre inteligência artificial (AI) em Londres, em Junho de 2015, que “quando as máquinas se tornarem mais espertas do que os humanos, tomarão conta do volante”. “Há sempre o risco de um comportamento malicioso pela parte da AI”, pois embora julguemos que estamos a fazer concessões limitadas e controladas, pode acontecer que o que estamos efectivamente a ceder não seja aquilo que julgamos estar a ceder.
Mas não é necessário que os robots ou a inteligência artificial escapem ao controlo humano para que se tornem numa ameaça, como argumenta persuasivamente Martin Ford em Robôs: A ameaça de um futuro sem emprego (Bertrand, tradução de José Vale Roberto, 407 pg.), uma obra que apresenta uma panorâmica abrangente, lúcida e equilibrada sobre uma economia em que as máquinas estão a tornar supérfluos os seres humanos, até mesmo em áreas que se acreditava serem domínio exclusivo do “julgamento humano” (ver Robôs: Que fazer com toda esta gente supérflua?).
Antepassados remotos
Os autómatos têm uma longa história que remonta ao período helenístico, com os órgãos hidráulicos de Heron de Alexandria e o chamado “mecanismo de Anticítera”, um complexo mecanismo de relojoaria que se destinava a fazer previsões astronómicas e é considerado “o primeiro computador analógico”.
Aves capazes de chilrear e bater as asas, leões rugidores, flautista e outros brinquedos mecânicos foram frequentemente vistos nas cortes da Pequim e Bagdad. Os relógios das catedrais medievais, além de marcarem as horas também ofereciam informação astronómica e entretenimento, sendo dotados de autómatos que podiam limitar-se a percutir os sinos ou representar elaboradas cenas bíblicas.
[Relógio da catedral de Wells, Reino Unido: a cada hora, os cavaleiros sobre o relógio disputam um torneio, em que um deles é derrubado. O relógio e os seus autómatos datam de 1392]
Na Renascença, os príncipes fizeram questão de adornar as grutas artificiais nos seus jardins com fontes mecânicas e órgãos hidráulicos e acolheram nos seus gabinetes de curiosidades todo o tipo de autómatos.
Mas foi no século XVIII que os progressos nos mecanismos de relojoaria permitiram construir autómatos de subtileza e sofisticação nunca vistas.
Jacques de Vaucanson (1709-1782) distinguir-se-ia com um tocador de flauta, em tamanho natural, que criou em 1737 e era capaz de tocar cinco melodias diferentes. No mesmo ano, apresentou o “canard digérateur”, um pato mecânico que simulava ingerir alimento, digeri-lo nas suas entranhas e excretar os resíduos. O pato de Vaucanson também grasnava e batia as asas, mas a reprodução do processo digestivo era uma mistificação, que só foi revelada um século depois. Nem por isso deixou de ser uma admirável demonstração de engenho mecânico.
Vaucanson granjeou fama e fortuna enquanto se confinou à área do entretenimento – Voltaire nomeou-o “rival de Prometeu” e proclamou que “sem o pato de Vaucanson nada teríamos que nos lembrasse a glória de França” – mas quando tentou aplicar o seu espírito inventivo e a sua inclinação para a mecânica ao mundo real – mais precisamente à mecanização do fabrico de seda – encontrou a oposição feroz dos tecelões de Lyon, que logo perceberam que o seu ganha-pão estava ameaçado. Vaucanson escapou com vida do episódio por um triz.
O relojoeiro suíço Pierre Jaquet-Droz (1721-1790), o seu filho Henri-Louis (1752-1791) e Jean-Frédéric Leschot (1746-1824) levaram a arte dos autómatos accionados por relojoaria ao cume com três mecanismos (houve um quarto, que se perdeu) construídos entre 1767 e 1774: “A organista”, “O desenhador” e “O escritor”. Este último, o mais sofisticado dos três, é constituído por 6000 peças e pode ser “programado” para escrever diferentes textos, com gestos de admirável elegância.
[“O desenhador”, da oficina Jaquet-Droz]
https://www.youtube.com/watch?v=bY_wfKVjuJM
Na Alemanha, o relojoeiro Peter Kintzing (1745-1816) e o ebanista David Roentgen associaram-se para fabricar relógios e autómatos, e as peças feitas para a corte francesa valeram a Kintzing o título de “Relojoeiro da Rainha”.
[“A tocadora de címbalo” foi construída para Maria Antonieta de França em 1772, por Peter Kintzing e David Roentgen]
James Cox (c. 1732-1800) construiu relógios e autómatos elaborados, quase sempre profusamente ornamentados com pedras preciosas, que disfrutavam de grande popularidade na China. Uma das suas mais notáveis realizações foi o Relógio do Pavão, um relógio com três aves mecânicas – um pavão, um mocho e um galo – oferecido a Catarina a Grande pelo seu amante Grigory Potemkin, em 1781.
[O Relógio do Pavão, de James Cox]
O mais famoso e enigmático autómato do século XVIII – o Turco Xadrezista de Wolfgang von Kempelen – não faz parte desta linhagem, pois não passava de um astucioso embuste.
Embora nenhuma destas máquinas tivesse qualquer aplicação prática ou produtiva, seria um erro reduzi-la a uma simples frivolidade – no auge da febre dos autómatos, Samuel Johnson (1709-1784) escrevia: “pode acontecer que os maiores esforços do engenho humano tenham sido aplicados a ninharias, mas os mesmos princípios e expedientes podem ser aplicados a propósitos mais proveitosos, e os mecanismos que põem em movimento máquinas sem outro fito que o de suscitar o embasbacamento, podem ser empregues à drenagem de pauis, ao fabrico de metais, a auxiliar o arquitecto ou salvar o marinheiro”.
Os homens de lata dão os primeiros passos
Os primeiros robots no sentido que a palavra hoje tem surgiram mais ou menos pela mesma altura em que a fama de R.U.R., de Čapek, se espalhava pelo mundo.
Apesar de, aos olhos de hoje, parecer um projecto de ciências de miúdos do 9.º ano de escolaridade, Herbert Televox, criado em 1926 pela Westinghouse Electric & Manufacturing Company e apresentado ao público dois anos depois, representava a tecnologia de ponta da época e é, em geral, considerado como o primeiro robot capaz de desempenhar “trabalho útil”.
O conceito de “trabalho útil” tem de ser entendido numa acepção muito generosa: Herbert Televox era capaz de atender um telefone e cumprir algumas ordens pré-determinadas que lhe eram dadas através dele, mediante notas de diferentes alturas e durações que eram captadas por um microfone instalado na “cabeça” (que era também o que desencadeava todo o processo ao “reconhecer” a campainha do telefone). Consoante a combinação de notas, Televox era capaz de ligar e desligar electrodomésticos ou o aquecimento da casa – um antepassado rudimentar do ramo da cibernética hoje conhecido como domótica (de “domus”, casa, e “robótica”.
A Westinghouse tentou que Televox fosse mais fiel ao seu nome e que fosse capaz de abrir uma porta ao ouvir a ordem “Abre-te Sésamo!”, mas o dispositivo de reconhecimento de sons mostrou-se demasiado rudimentar para destrinçar as subtilezas da voz humana – o melhor que se conseguiu foi que Televox obedecesse a ordens cantadas ou assobiadas no tom certo. Por sua vez, Herbert Televox era também capaz de emitir um limitado repertório de sons.
Em 1930, Herbert ganhou uma “irmã”, Katrina van Televox, publicitada como uma criada doméstica robótica, capaz de accionar comutadores e ligar e desligar ventoinhas, luzes e aspiradores. Apesar de os anúncios que enalteciam as capacidades de Miss Katrina mencionarem um preço – 22.000 dólares, uma soma fabulosa para 1930 – o robot não se destinava a ser comercializado (já que na prática era completamente inútil), antes a percorrer os EUA em sessões de demonstração que funcionavam como propaganda para os electrodomésticos Westinghouse. Os panfletos que publicitavam estas sessões acabavam por, em letras pequenas, mitigar as promessas bombásticas dos títulos, remetendo a operacionalidade do robot para um futuro indeterminado, em que “seria tão agradável estar na baixa da cidade e poder dar início à preparação do jantar, bastando para tal telefonar a Katrina e dar-lhe ordem para o fazer”.
Se Katrina van Televox perpetuava o estereótipo sexista da mulher como ser subserviente e devotado ao cuidado do lar (“só faz aquilo que lhe ordenam”, garantia a Westinghouse), os primeiros passos da robótica ficariam também marcados pela associação racista do escravo mecânico ao afro-americano, com Rastus Robot, o Negro Mecânico. A máquina, apresentada em 1931, saiu, mais uma vez, dos laboratórios da Westinghouse, e foi criada por Samuel Montgomery Kintner e Philips Thomas. Apesar da aparência do robot se afastar do aspecto tosco dos seus antecessores e aspirar à verosimilhança humana mediante recurso a um revestimento de borracha, as suas capacidades continuavam a ser tragicamente limitadas. Numa encenação pueril (a raiar a idiotice) de um célebre episódio associado a Guilherme Tell, um raio de luz emitido por uma falsa flecha era captado pelo “olho electrónico” do robot, que inflamava uma pequena carga de pólvora e fazia saltar a maçã equilibrada sobre a cabeça – uma piada de muito mau gosto, mesmo para a mentalidade dominante nos EUA em 1930.
Rastus era também capaz de sentar-se, levantar-se, fazer a vénia e emitir frases pré-determinadas com um máximo de seis palavras, registadas em película cinematográfica, sendo todas estas acções desencadeadas por sinais luminosos. Pela mesma altura, S.M. Kintner e Philips Thomas desenvolveram uma variante, baptizada como Telelux, para enfatizar que, ao contrário de Televox, que respondia a sinais sonoros, o comando se processava aqui através de estímulos luminosos.
Mas a Westinghouse não desistiria de desenvolver robots obedientes à voz humana e foi assim que, em 1931, surgiu Willie Vocalite, concebido por Joseph “Barney” Barnett. Ao contrário de Televox, que só respondia a assobios ou notas, Willie já era capaz de reconhecer algumas instruções vocais – embora o processo fosse mediado por células foto-eléctricas, com cada sílaba a accionar uma determinada luz. Os progressos em relação aos antecessores incluíam ainda um cotovelo articulado e um pescoço que permitia a rotação da cabeça.
Além dos já usuais truques de ligar e desligar interruptores (nomeadamente de aspiradores, talvez para dar a ideia de que o robot poderia vir a ajudar nas tarefas domésticas), Willie Vocalite era capaz de tocar buzina e fumar cigarros.
Fumar foi um truque que os engenheiros se esforçaram por adicionar ao repertório destes proto-robots, talvez por crerem que, aos olhos dos leigos, tal actividade parecesse mais sofisticada e intrinsecamente humana do que acender interruptores ou erguer um braço numa saudação. Fumar era também uma das habilidades de Willie the Robot, um robot em que Andy Bober, um relojoeiro de Hammond, Indiana, trabalhou durante 15 anos e que revelou ao mundo em 1933. De acordo com a imprensa da época, Willie era também capaz de responder a perguntas, tocar harmónica, dançar e disparar uma pistola.
Na década de 1930 foram sendo apresentados vários robots, sempre com propósitos pedagógicos e publicitários e sem aplicação à vida real.
O meu cérebro é maior do que o teu
A Westinghouse continuou a estar na linha da frente da robótica e em 1937-38 desenvolveu o Elektro, um colosso com esqueleto de aço e “pele” de alumínio, com 2.10 metros de altura e 120 Kg de peso, formado por 900 peças e exibindo um repertório de 26 “habilidades” activadas através de ordens verbais, entre as quais estavam caminhar, falar, contar pelos dedos, distinguir cores (apenas vermelho e verde, na realidade), encher balões, fazer a vénia e, claro, fumar.
[Demonstração de Elektro na Feira Mundial de Nova Iorque de 1939]
O seu vocabulário de 700 palavras, assente em discos de 78 rpm, lidos por oito gira-discos, representava um avanço significativo em relação aos seus predecessores. Uma das suas frases marcantes era “My brain is bigger than yours”, o que correspondia literalmente à verdade, já que pesava 25 Kg. As suas capacidades eram, todavia, inferiores às do cérebro de um insecto.
Elektro foi um sucesso na Feira Mundial de Nova Iorque de 1939, pelo que regressaria ao certame no ano seguinte, fazendo-se acompanhar pelo cão-robot Sparko.
Sparko tivera um antecessor em Philidog, apresentado em 1929, no Salon International de la TSF de Paris, por Henri Piraux, da Philips francesa. Philidog fora apresentado como “le chien de garde electrónique” e, a crer na imprensa, era “um cão mecânico que faz quase tudo o que um cão vivo faz e ainda muitas coisas mais”. Na verdade, Philidog limitava-se a responder a alguns estímulos luminosos: estava “programado” para seguir uma fonte luminosa e ladrar no caso de esta estar próxima.
Sparko era mais sofisticado no aspecto – uma versão encorpada de um Scottish Terrier – do que o tosco Philidog e exibia maior variedade de comportamentos: pedia comida, abanava a cauda, sentava-se e “corria” atrás de pessoas.
Correu o rumor, infundado, de que, ao entrever por uma porta aberta, as luzes dos automóveis que passavam, Sparko se lançou na sua perseguição e foi atropelado (aliás, Sparko, ao contrário de Philidog, não tinha o “instinto” de seguir fontes luminosas).
Elektro passou a II Guerra Mundial, desmontado e encaixotado, na cave da casa se um dos engenheiros que participara na sua construção, mas na década de 1950 foi ressuscitado para fazer tournées pelos EUA na década de 1950, promovendo os electrodomésticos Westinghouse e abrilhantando feiras locais e inaugurações de lojas de departamentos.
Em 1958, tornou-se numa atracção residente da Casa do Futuro, um mostruário de gadgets domésticos futuristas que a Westinghouse montou no parque de diversões Pacific Ocean Park, em Santa Monica, na Califórnia (que tentava rivalizar com a Disneylândia), e foi estrela convidada na (pífia) comédia Sex Kittens go to the college (1960). Está actualmente em exibição no memorial Museum de Mansfield, Ohio, a cidade onde a Westinghouse teve a sua principal fábrica de electrodomésticos e onde Elektro nascera.
Mas a Westinghouse e os EUA não tinham o exclusivo dos robots: em 1928, perante a impossibilidade de o Duque de York estar presenta na cerimónia de abertura da exposição da Society of Model Engineers, em Londres, William H. Richards arranjou uma “celebridade” para substituir o duque: Eric the Robot, um autómato de alumínio a quem foi incumbida a leitura do discurso de abertura (esta é uma área em que até um robot primitivo consegue ter desempenho comparável ao de um duque ou de um presidente da República).
[Eric the Robot, na abertura da exposição da Society of Model Engineers, em 1928]
Foi também em Londres que Harry May apresentou, em 1932, Alpha the Robot, um autómato capaz de falar e executar alguns movimentos, em resposta a instruções verbais.
Depois dos brinquedos, a ameaça
Estes robots pioneiros têm várias características em comum: têm formas humanóides e autonomia limitada e são incapazes de desempenhar qualquer função útil – tal como os autómatos dos séculos anteriores, a sua vocação circunscrevia-se ao entretenimento e propaganda e a sua esfera de acção confinava-se a feiras e inaugurações. Nenhum trabalhador sentiria o seu emprego e modo de vida ameaçado por estas engenhocas frívolas – só a mulher barbuda ou o homem-elefante teriam a recear com a sua competição.
Mas a revolta dos operários da indústria da seda de Lyon contra as inovações de Vaucanson e as revoltas dos luditas britânicos na viragem dos séculos XVIII-XIX mostram que as máquinas tinham grande potencial para tomar o lugar dos trabalhadores de carne e osso..
Um passo decisivo foi dado em 1954, quando George Devol registou a patente do Unimate, o primeiro robot industrial da história, desenvolvido em conjunto com o seu sócio Joseph Engelberger.
[Mini-documentário sobre George Devol, pioneiro da robótica]
https://www.youtube.com/watch?v=HVLbtrlL5_E
O primeiro exemplar seria instalado em 1961 numa fábrica da General Motors em Trent, New Jersey, e a sua função era transportar peças acabadas de fundir, uma actividade que comportava elevado risco para trabalhadores humanos.
As capacidades do Unimate eram suficientemente sensacionais para que o robot fosse convidado, em 1966, do Tonight Show de Johnny Carson, onde jogou golfe e despejou cerveja de uma garrafa para um copo, mas este seu desempenho como entertainer era meramente subsidiário e nada tinha a ver com o de autómatos como o Televox ou o Elektro. Tal como os restantes robots industriais que se seguiriam, a finalidade do Unimate não era impressionar plateias, mas desempenhar tarefas da forma mais eficaz, segura e económica possível, pelo que a sua estrutura fora concebida de forma a optimizar as suas funções, o que não passava por replicar formas humanas.
Enquanto os dispositivos electromecânicos programáveis substituem o trabalho humano nos campos e nas fábricas, no sector dos serviços a ameaça vem sobretudo da inteligência artificial, entrando em competição com os “empregos de colarinho branco” na área da educação, diagnóstico médico, análise de dados, tradução e produção de textos não-literários.
Robots do século XXI
Todavia, as máquinas que conquistam mais atenções mediáticas continuam a ser, como nos séculos passados, as que desempenham funções de entretenimento e publicidade, não as que constituem reais ameaças aos empregos humanos. E os desenvolvimentos nesta área da robótica acabam por privilegiar quase sempre formas humanóides, talvez por mais facilmente suscitarem a empatia dos espectadores.
No século XXI registaram-se assinaláveis progressos nesta área, com os robots a ganharem competências apreciáveis na detecção e reconhecimento de objectos em movimento, interpretação de gestos e vozes humanas e reconhecimento de imagens e sons.
[Panorama de robots autónomos: NAO, Asimo, Paul, vários modelos da Boston Dynamics, Actroid, Mars Rover, Bionic Kangaroo]
https://www.youtube.com/watch?v=S5AnWzjHtWA
A Honda revelou em 2000 o ASIMO (Advanced Step in Innovative Mobility), apresentado como um assistente multifuncional vocacionado para auxiliar pessoas com mobilidade reduzida, mas que, para já, tem sido sobretudo uma atracção de feira.
A Toyota desenvolveu o Partner, que foi apresentado em 2005 na Exposição Mundial de 2005 em Aichi, no Japão, e que entretanto se ramificou em diversos modelos, alguns deles com competências musicais.
[Quarteto de robots Toyota Partner]
A Boston Dynamics, quase sempre com financiamento e supervisão da DARPA (a agência governamental americana responsável por projectos de pesquisa avançada na área da defesa), tem vindo a desenvolver uma grande variedade de robots com vista a aplicações militares. Alguns deles são bípedes humanóides, como o Atlas,
[O robot Atlas, da Boston Dynamics]
outros, quadrúpedes zoomórficos, como o Wild Cat ou o Big Dog.
[O robot Big Dog, da Boston Dynamics]
Os cães-robot de hoje representam um considerável progresso em relação ao Philidog e ao Sparko – é o caso do AIBO, da Sony, que conheceu várias versões desde que foi revelado em 1999. Enquanto a maioria dos robots do seu género são protótipos usados apenas para fins de demonstração e publicidade às proezas tecnológicos do seu construtor, o AIBO destinou-se a ser comercializado como brinquedo de luxo, mas os resultados não foram os esperados, pois a produção foi interrompida em 2006.
[AIBO, o “robot de estimação” da Sony]
https://www.youtube.com/watch?v=2l2P8Uz0LkA
O AIBO era publicitado como “o melhor amigo do homem para o século XXI”, mas até o hamster mais sorumbático providenciaria melhor companhia do que ele. Apesar de todos os impressionantes avanços registados, os brinquedos robóticos disponíveis no mercado parecem fracos sucedâneos para um cão ou um gato de estimação (embora tenham a vantagem de não apanhar pulgas).
[Cinco brinquedos robóticos: Mecanoid G15KS, The Ringo, JD Humanoid, Vortex e Buddy]
https://www.youtube.com/watch?v=Z02p2LKkrbE
Alguns robots simples estão a fazer caminho para entrar no mercado de massas como auxiliares da vida quotidiana, embora possam, na prática, não passar de um brinquedo dispendioso. É o caso dos robots aspiradores: por enquanto, os mais autónomos e eficazes são absurdamente caros para a tarefa que desempenham, os mais baratos são tão dependentes de supervisão que é preferível que seja o humano a fazer a limpeza.
[Comparação de vários robots aspiradores disponíveis no mercado]
Claro que os robots de aspecto humanóide ou zoomórfico são os que mais despertam a atenção das pessoas, mas os que estão a operar a grande revolução e que representam a ameaça para o emprego são os robots industriais, que nada têm de “giro” mas são implacavelmente eficazes no desempenho das suas tarefas. O seu crescimento tem sido vertiginoso e tem sido mais expressivo na indústria automóvel e na indústria electrónica. Só em 2015 as vendas de robots industriais aumentaram 20% no Japão e 55% na Coreia do Sul, que são também os países onde estes autómatos já tinham maior implantação – 531 por cada 10.000 trabalhadores na Coreia do Sul e 305 no Japão.
A China tem apenas 49 por 10.000 trabalhadores (não muito longe de Portugal, com 45), mas foi o maior comprador de robots a nível mundial em 2015 (mais do que toda a Europa junta) e visa chegar aos 150 por cada 10.000 trabalhadores em 2020. É difícil perceber como esta aposta do governo chinês na robotização pode ser conciliada com o objectivo de manter o desemprego abaixo dos 4.5%.
Estima-se que em 2018 entrem ao serviço em todo o mundo 1.3 milhões de novos robots (dados da International Federation of Robotics). Se a robotização continuar a este ritmo, é possível que num futuro não muito distante, um presidente americano ameace os fabricantes de automóveis que pretendam abrir fábricas no México, argumentando que não pode permitir que robots mexicanos tirem o trabalho a robots americanos.
O derradeiro reduto da humanidade
Hoje, a automatização já tomou a tal ponto conta das nossas vidas que por vezes nos esquecemos que algumas actividades que achamos perfeitamente natural que sejam executadas por máquinas já foram realizadas por humanos. Tome-se um exemplo tão anódino como o bowling: parecer-nos-ia absurdo que, após cada jogada, os pinos derrubados tivessem de ser repostos manualmente, mas foi isso mesmo que aconteceu durante muitas décadas.
É certo que era uma tarefa simples, repetitiva, mal paga e que não exigia grande discernimento – por isso era desempenhada maioritariamente por crianças – mas muita gente de origens humildes encontrou aqui um ganha-pão.
Se a recolocação de pinos derrubados é uma acção facilmente automatizável – a primeira máquina foi patenteada em 1936 por Gottfried Schmidt –, já o lançamento da bola de bowling necessitou de muitos mais anos de pesquisa. Hoje já temos o EARL (Enhanced Automated Robotic Launcher), um robot concebido para testar diferentes tipos de bolas, pavimentos e pinos, que tem um desempenho superior ao de um jogador de bowling mediano, embora ainda não o suficiente para vencer campeões.
[2010: EARL defronta Chris Barnes, campeão americano de bowling em 2007-08]
Pode alegar-se que o bowling é um desporto simples e pouco sofisticado – pode ser visto como um exercício de cálculos balísticos. Mas foi precisamente no jogo – o xadrez – que tem a reputação de máxima sofisticação e de requerer a mais humana das qualidades – o “julgamento” – que as máquinas primeiro conseguiram impor-se. Foi por o xadrez parecer ser o jogo em que a mente humana atingia a mais elevada expressão que Wolfgang von Kempelen o elegeu quando quis deslumbrar o mundo com um autómato que superasse todos os seus antecessores. Robert Willis (1800-1875), um dos muitos espíritos inquisitivos que tentou compreender o funcionamento do Turco de Kempelen, declararia que o xadrez “é o reino exclusivo do intelecto”.
Não é, mas havia ainda muito caminho a fazer antes de ser possível construir um autómato xadrezista sem fazer batota: o pioneiro foi o MANIAC, criado pelo Laboratório Científico de Los Alamos, que em 1956, conseguiu derrotar um xadrezista principiante, mas foi preciso esperar mais 41 anos para que o super-computador Deep Blue, desenvolvido pela IBM, conseguisse derrotar o campeão Garry Kasparov.
Deep Blue tinha o tamanho de um guarda-fatos, mas hoje é possível ter um jogador de xadrez electrónico de nível pouco inferior num telemóvel.
Por outro lado, as máquinas continuam a ser ineptas na maioria dos desportos de natureza mais física, tendo mesmo desempenhos miseráveis nos desportos de equipa. A RoboCup, um campeonato de futebol que se disputa anualmente desde 1997, envolve universidades e centros de investigação de todo o mundo e contempla várias categorias de máquinas, tem mostrado que os mais sofisticados jogadores de futebol robótico estão ainda muito longe de poder bater-se com crianças de cinco anos.
[Alguns dos momentos mais empolgantes do torneio RoboCup 2012]
Os pais preocupados com o futuro dos filhos costumam tentar empurrá-los para profissões
que vêem como “seguras” e “de futuro”, daquelas que requerem diplomas universitários em áreas técnicas e científicas. Porém, como alerta Martin Ford em Robôs: A ameaça de um futuro sem emprego, os progressos vertiginosos na inteligência artificial irão fazer com que até um diploma em engenharia ou ciência computacional deixe de ser garantia de emprego – “o número de novos licenciados em engenharia ou em ciência computacional [nos EUA] é 50% superior ao número dos que conseguirão encontrar trabalho nestas áreas”.
Atendendo aos desempenhos das máquinas da RoboCup, mais vale encorajar os miúdos a jogar à bola.
Um futuro sorridente (para quem?)
Já o relato futebolístico parece ser área de pouco futuro, se dermos crédito a Manuela Veloso, “a portuguesa que está a revolucionar a robótica no mundo” (suplemento de Economia do Expresso de 7 de Janeiro de 2017), que afirma, em entrevista: “É uma chatice para qualquer repórter ter de escrever um texto sobre um jogo de futebol, terá de repetir-se pela milésima vez. Tenho um aluno a trabalhar sobre o tema: como transformar em linguagem natural as acções que ficaram registadas em vídeo. Escrever sobre futebol não implica uma linguagem vasta. Uma máquina poderá fazê-lo e o jornalista terá tempo para investigar outros temas”. Na verdade, mesmo sem o contributo da equipa de Manuela Veloso, muito do que se escreve e diz sobre futebol já parece obra de robots, mas isso seria assunto para outro artigo. O que vale a pena aqui reter é o optimismo de Manuela Veloso sobre o futuro do emprego face ao desenvolvimentos dos robots e da inteligência artificial: “A humanidade sempre soube reinventar-se […] No mundo dos robots, há espaço para os seres humanos […] Vai haver trabalho, mas pode é não ser das 9 às 18 horas. Vai ser uma economia de talento […] O trabalho passará a ser algo mais fluido, num intercâmbio de actividades […] os robots farão os trabalhos mais rotineiros e as pessoas estarão libertas para a criatividade” (excertos da entrevista ao Expresso de 7 de Janeiro de 2017).
[Kuri, o robot doméstico da Mayfield Robotics, é descrito como sendo “giro de morrer”, possuindo uma “personalidade adorável”, trazendo “uma nova centelha de vida e carácter ao seu lar” e fazendo a vida de cada dia “mais fácil, luminosa e conectada”. Tudo isto pode ser seu só por 700 dólares]
O discurso está alinhado com o dos restantes gurus da automação e profetas visionários que abrilhantam Web Summits e TED Talks e parece estar alheado da realidade de quem, mesmo com horário de trabalho integral, não consegue elevar-se acima do patamar da pobreza; do contraste crescente entre a ociosidade forçada de quem ficou desempregado e a sobrecarga de trabalho dos “felizardos” que ainda conservam o emprego, apesar das “restruturações” sofridas pela empresa; de que a “fluidez” do trabalho significa, muitas vezes, que o empregador ganhou o direito de importunar os empregados com e-mails de trabalho a qualquer hora do dia e da noite, todos os dias da semana; do aumento da desigualdade na distribuição da riqueza entre o trabalho e o capital que tem acompanhado a automação; de que a esmagadora maioria dos habitantes do planeta não possui, mesmo depois de frequentar o ensino superior, nenhum talento especial pelo qual o Admirável Mundo Robótico esteja disposto a pagar; de que não há lugar no mundo para mais uma centena de milhões de criadores de apps, hairstylists caninos, designers de joalharia para gatos e criadores de chinelos personalizados; da crescente proletarização de muitas actividades intelectuais e criativas (entre as quais o jornalismo); de, na lógica vigente hoje nas empresas de mass media, a aquisição de um programa de inteligência artificial que redige textos sobre jogos de futebol não significar que o jornalista que tinha essa atribuição “terá tempo para investigar outros temas” mas sim que será dispensado.
Os custos do trabalho robótico industrial estão bem estudados e, embora variem consoante o ramo de actividade e as tarefas, são em média de 4-5 euros por hora, o que deixa os trabalhadores industriais humanos a grande distância, pois custam ao empregador entre 50 (na Alemanha) e 10 euros por hora (na China). Se o robot-jornalista também custar 4-5 euros por hora, isso significa que, em muitos países, os jornalistas de carne e osso ainda serão competitivos durante mais alguns anos, até que os avanços na robótica consigam tornar o jornalismo robótico mais barato.
Quem não tem razões para se apoquentar são os arautos humanos do futuro robótico, pois uns são principescamente pagos para correr mundo em classe executiva, a anunciar o Admirável Mundo Robótico a plateias reverenciais de empresários, gestores, autarcas e alunos das Business Schools, e outros têm emprego vitalício no mundo universitário.
[Pepper, the Friendly Humanoid Robot, da Softbank e da Aldebaran Robotics: entre as suas funções, todas de utilidade duvidosa, está o de “entreter os convidados”. Presume-se que estes, que não gastariam dez segundos a falar com um ser humano deste nível intelectual, terão todo o gosto em interagir durante meia hora com um idiota mecânico. E, tragicamente, a presunção é correcta. Custa 1600 dólares mais 360 por mês]