“Na minha opinião, ser mãe não se deve confundir com ser amiga. Enquanto mãe, é preciso criarmos regras e mostrar que estamos presentes quando elas quiserem falar de problemas.” Teresa Tavares, engenheira de produção, vive com as duas filhas adolescentes, de 13 e 14 anos, em Santa Maria da Feira. E insiste no seu ponto de vista sobre as relações entre mães e filhas: “Não nos podemos confundir com as melhores amigas”.
Cassandra*, da Figueira da Foz, tem uma opinião um pouco diferente. Diz ser amiga e mãe, uma pessoa a quem as filhas, também elas adolescentes, acabam por contar tudo. É uma questão de acompanhamento e de confiança. Já Paulo, pai de Maria, de 17 anos, confessa que lhe faz confusão “quando os pais tentam ser os melhores amigos”.
O debate sobre até que ponto os pais devem ser amigos dos filhos não é novo, mas está cada vez mais atual. Basta olhar para a geração dos avós para perceber que a relação que estes tinham com os filhos era muito diferente da que existe hoje em dia dos seus filhos com os seus netos. Nem de propósito, a historiadora Stephanie Coontz chegou a contar ao The Cut que a ideia de pais e filhos amigos é relativamente nova e surgiu no contexto de “práticas mais democráticas para educar as crianças”, no século passado. “Hoje em dia, os pais querem muito que os seus filhos sejam indivíduos”, diz. Embora tentem incutir os seus valores, existe uma diferença face ao passado, quando os pais acreditavam que o melhor (e o mais seguro) era os filhos obedecerem e seguir as suas pisadas.
Em 2015, a socióloga Sofia Aboim falava ao Observador sobre a “erosão do modelo de distanciamento geracional” — em vez do pai patriarca, associado a uma figura mais rígida de outros tempos, atualmente existe entre pais e filhos maior companheirismo, necessidade de comunicação e crescente preocupação para com o bem-estar dos mais novos. Até aqui tudo bem. O problema é quando as fronteiras se esbatem e o amigo surge primeiro do que o pai — sobretudo na adolescência.
Curiosamente, uma investigação norte-americana mostrou, em 2015, que os pais da geração Y, a também chamada geração millenial, querem ser os melhores amigos dos filhos (entre os 6 e os 12 anos, em particular). Segundo o estudo de mercado realizado pelo The Family Room LLC, feito a 1200 indivíduos, esse é o desejo de 54% de pais com idades compreendidas entre os 25 e os 35 anos; 38% dos pais da geração anterior (geração X), dos 36 aos 50 anos, consideram o mesmo.
Num ensaio de 2012, citado em maio pelo The New York Post, um professor de inglês na Universidade de Stanford perguntou aos seus estudantes quantas vezes por mês falavam com os pais. A resposta: todos os dias. Uma das estudantes, em particular, confessou que falava até sete vezes por dia com a mãe, pessoa que considerou, à data, a sua melhor amiga. Cassandra também fala durante o dia com as duas filhas adolescentes. Diz estar sempre em contacto e, se alguma coisa acontece na escola, há troca de SMS entre mãe e filhas. “Se fazem um teste, por exemplo, contam como correu.”
No mesmo artigo do The New York Post há outras duas ideias a reter: a primeira, de que o mundo já não está dividido entre adultos e crianças, mas sim entre famílias nucleares e todas as outras pessoas; a segunda, de que os filhos já não mascaram os maus comportamentos uma vez que os pais, na ânsia de serem seus amigos, são bem capazes de os tolerar. Sobre isto, a mesma Cassandra diz que, na eventualidade das filhas se portarem mal, não as vai castigar, mas conversar e tolerar. “Se as castigar, da próxima vez já não me vão dizer nada”, justifica.
“De uma forma muito direta, o papel dos pais é serem pais”, defende Filipa Jardim da Silva. Para a psicóloga clínica, os pais são seres cuidadores cujas principais funções passam por “proteger, educar e formar”. “Os amigos são escolhidos, os pais não. Os pais têm uma relação assimétrica com os filhos, que implica muito respeito.” A especialista afirma que o importante é, por isso, não perder a noção dos limites. “Vejo pais a colocarem-se ao nível dos filhos. Oiço relatos de filhos mal-educados, que empurram os pais e pais que respondem na mesma moeda”, confessa. É ao adulto, diz, a quem compete ter maturidade e contenção emocional — “É isso que nos diferencia enquanto pais”.
“Ser amigo do filho significa que ambos estão no mesmo patamar. Isso não pode acontecer”, avisa de forma ainda mais radical Rute Agulhas, psicóloga clínica e forense. A docente universitária no ISCTE-IUL, que já antes escreveu para o Observador, também diz que é fundamental existir “uma assimetria de poder”. É uma questão de autoridade, mas não de autoritarismo. Os filhos precisam obrigatoriamente de balizas — como quem diz limites –, que devem ser progressivamente flexibilizadas aquando da chegada da adolescência. Na opinião desta profissional, habituada que está a lidar com adolescentes, podem existir dois problemas associados à imposição de limites: “Ou as balizas desaparecem e os miúdos perdem-se, ou as balizas são muito rígidas e eles não têm espaço para se autonomizar. Vejo pais a tratar filhos de 15 anos como se tivessem 10”.
“Há duas funções parentais: desenvolver nos miúdos um sentimento de pertença e dotá-los da capacidade de socialização e autonomização”, sintetiza Agulhas.
Pais e amigos: há uma linha que vos separa
Teresa Tavares não tem dúvidas. Sabe que as duas filhas que tem em casa não lhe contam tudo e não parece preocupar-se com isso. Ao Observador, assegura que elas contam apenas o que acham importante, não que isso a iniba de estar atenta ao comportamento de ambas. “Há coisas que são delas e das amigas. Quando têm um problema grave pedem ajuda. Até hoje tem funcionado assim”, conta a mulher de Santa Maria da Feira que não gosta de ver filhos a tratar os pais pelo nome próprio e mães que interferem na esfera privada das filhas. No outro lado da barricada, Cassandra já deu por si a ver as conversas das filhas no Facebook. Fê-lo por receio, por instinto de proteção. “Li coisas que elas acabaram por, mais tarde, me vir contar.”
“Eu nunca tive acesso aos emails e às redes sociais da minha filha e não quero ter. Acho que ela tem direito à intimidade dela. É uma questão básica de confiança”, diz Paulo que, em entrevista ao Observador, prefere não dar o último nome. “Vejo muito aquele tipo de discurso… quase como se os filhos fossem propriedade dos pais, que acham que têm o direito a ver tudo e a controlar tudo. Acho que sou uma minoria”, atira. Curiosamente, há sensivelmente um ano o pediatra Mário Cordeiro contava ao Observador, numa longa entrevista de vida, que é “gestor dos filhos” e não “dono”.
Sobre isto, Filipa Jardim da Silva defende que os pais devem ser um modelo e que, para tal, é preciso existir alguma distância — ao Observador, a psicóloga clínica diz conhecer pais que chegam a rivalizar com os amigos dos filhos. “É preciso perceber que não é suposto o meu filho adolescente contar-me tudo. Há uma linha de privacidade que é importante que todos tenhamos. Quando vejo pais a serem os conselheiros românticos dos filhos… pode ser problemático. É preciso ter noção do diálogo e das perguntas a fazer, que serão diferentes das de uma amiga.”
Ou seja, é natural e até recomendável que os pais questionem os filhos adolescentes sobre namoros, desde que respeitem as respostas que obtêm (mesmo que não venham recheadas de detalhes interessantes). “Se o filho ou a filha disse que não quer falar sobre isso, os pais têm aí uma oportunidade de mostrar respeito pela sua privacidade e ritmo próprio”, explica Filipa Jardim da Silva. A isso Rute Agulhas acrescenta que é fundamental os pais cultivarem uma comunicação clara com os filhos desde cedo, sem tabus à mistura, e que os temas da sexualidade devem ter abordados de uma forma tranquila. “Mais do que na sexualidade, a reflexão deve ser centrada nos afetos.
O limite que separa os pais de amigos é bem capaz de ser mais visível do que inicialmente esperado e há determinados comportamentos que os pais podem adotar em determinadas situações:
- quando vão buscar um filho a casa de amigos, os pais devem evitar ser intrusivos e optar por não conversar com os filhos sobre algo mais sensível à frente desses seus amigos; o importante é não exagerar nos contactos, mas mostrar algum interesse e curiosidade, até porque o filho pode sentir-se invadido e até ansioso;
- na relação dos pais com os amigos dos filhos é desejável que haja respeito com limites no tipo de partilhas feitas — no fim do dia, é preciso existir o adulto e o adolescente. “Perder este limite é perder a capacidade de definir regras, de conter, de proteger”, assegura Filipa Jardim da Silva;
- e quanto às saídas à noite? “Regra geral, os filhos não querem sair à noite com os pais, antes estar com os amigos. Os pais devem negociar estas saídas e as horas de regresso de forma gradual”, diz Agulhas. “Se for possível nas primeiras saídas, há ganhos de serem os pais a irem buscar os filhos e de medirem bem as autorizações para prenoitar em casa de amigos numa primeira fase”, acrescenta Filipa Jardim.
A ideia do respeito e contenção nas partilhas viaja nos dois sentidos: tal como se lê na página Parenting Science, há pesquisas que demonstram a existência de custos associados ao tratamento dos filhos enquanto confidentes — eles e elas podem não reagir bem a “confissões pessoais negativas”. Num estudo em particular, para o qual os investigadores entrevistaram filhas adolescentes de casais divorciados, descobriu-se que essas raparigas tinham uma maior probabilidade de sofrer de problemas psicológicos caso as mães lhes fizessem confissões detalhadas sobre as suas preocupações financeiras, problemas no trabalho ou sentimentos negativos sobre os ex-maridos.
“Há uma fronteira geracional que deve ser mantida e os pais não devem, por exemplo, fazer dos filhos confidentes dos seus problemas pessoais, conjugais ou com amigos. Os filhos precisam de pais com autoridade, que saibam exercer controlo e supervisão”, exemplifica Agulhas. Ambas as psicólogas defendem que os pais devem adequar as suas partilhas às faixas etárias de quem as ouve e que, de uma forma global, não devem falar da sua vida íntima e sexual, nem tão pouco de aspetos relativos à gestão financeira familiar.
Abandono não. É só sensação
Estava a jovem Maria no quinto ou no sexto ano quando começou a pedir ao pai que parasse o carro mais longe do recinto da escola, todas as manhãs. Paulo sentia a filha cada vez mais constrangida e assentiu com naturalidade.”Faz parte, não houve problema. Mas depois percebi que o que a envergonhava era uma coisa muito concreta: a Maria era a única menina da turma que ainda andava de cadeirinha”, recorda — Paulo fala ao telefone com o Observador mas, neste momento, conseguimos adivinhar-lhe o sorriso no rosto. A partir do momento em que deixou de haver cadeirinha, a resistência de Maria passou. Mas podia não ter passado e seria natural e normal se assim fosse.
“Por volta dos 10, 11 anos os miúdos já não querem que os pais os levem à porta da escola. Muito menos querem ‘o’ beijinho à frente das pessoas. Isso fá-los sentirem-se infantilizados”, explica Rute Agulhas. São situações como essas — que mais cedo ou mais tarde acontecem — que fazem alguns pais sentirem uma espécie de abandono. Há pais que ficam angustiados, mas, em última análise, isto mais não é do que a vontade dos filhos em mostrar autonomia. Caso os pais se sintam rejeitados, ao invés de encararem a situação como um sinal positivo, é possível que tal desencadeie nos filhos um conflito de lealdade. “Os miúdos ficam ambivalentes. Querem fazer aquilo que lhes faz sentir bem, mas não querem magoar os pais e podem entrar num processo de sofrimento. Cabe aos pais olhar para isto com naturalidade.”
Dito isto, será que há pais muito dependentes dos filhos? Rute Agulhas responde que sim e argumenta que há pessoas que se resumem à função parental, que se esquecem dos outros papéis e que, à medida que o tempo passa, antecipam o ninho vazio. O importante, esclarece, é que as famílias se adaptem à medida que os filhos vão crescendo e que as regras sejam flexibilizadas. Mais, há diferentes formas de afeto que não passam necessariamente por expressar um “gosto de ti”: ter interesse nas áreas em que os filhos se movimentam é uma delas. “A adolescência em si é um desafio para as famílias. É sempre preciso redefinir papéis e fronteiras.”
Mas, afinal, até que ponto é que os pais podem ser amigos dos filhos? Filipa Jardim da Silva não é extremista. Diz que primeiro, e acima de tudo, está o papel de pai e mãe, só depois o de amigo. “Falo de ser amigo dentro daquilo que são as funções parentais. É isso que garante aos pais um papel único na vida dos filhos. Os pais esquecem-se disso com frequência.”
Rute Agulhas concorda: “Os pais podem e devem ser amigos, mas não se podem resumir a esse papel. Os miúdos precisam de pais que, além de amigos, exerçam autoridade, definam limites”. É ela quem nos dá a derradeira metáfora: imaginemos um papagaio de papel prestes a ser lançado ao vento; ou damos corda a mais e o papagaio voa para além do nosso controlo ou não damos corda e ele pura e simplesmente cai no chão. “A maior herança que um pai pode deixar a uma criança é uma vinculação segura, que a longo prazo vai deixá-la segura e confiante de si própria. Nenhum pai vai proteger o filhos de todos os erros.” Filipa Jardim da Silva remata: “Ser mãe e pai é algo eterno e muito seguro. É uma questão de prioridades”.
* Nome fictício. Esta pessoa não quis ser identificada