Dorme mais vezes numa cadeira de avião do que na cama de casa. Literalmente. E casas, daquelas a que se pode chamar de lar, tem pelo menos duas. Uma em Lisboa e outra no país que a acolheu desde a adolescência. Acrescenta-se uma terceira, a Assembleia da República. Está habituada a viver permanentemente “entre dois mundos”, porque nunca se desligou da cultura portuguesa desde o dia em que rumou ao continente americano com a família às costas. Hoje, Maria João Ávila, bem como Carlos Páscoa, são os únicos dois deputados eleitos pelas comunidades de emigrantes fora da Europa. Ambos são emigrantes a representar emigrantes – “e é assim que deve ser”. E ambos são as ovelhas fora do rebanho no Parlamento.
“Acha que tenho cara de política? Eu sou aquilo a que se chama de politicamente incorreta”. E ri-se, alto e bom som. Apresenta-se tal como é: uma “mover e uma shaker“, que é como quem diz uma pessoa que “get things done“. Percebeu? É frequente ouvi-la falar inglês, algumas palavras saem mais naturalmente na língua que teve de aprender a dominar desde os 13 anos, do que na língua que sempre falou – com sotaque açoriano. “Às vezes nem me lembro se estou a falar inglês ou português”. Mas nem seria preciso língua nenhuma para se fazer entender, a imagem que transmite digamos que fala por si. Pessoa direta e espontânea, cabelo armado e voz audível, com uma gargalhada sempre na ponta da língua. “I get things done“. Que é como quem diz, seja nos Açores, nos EUA ou em Lisboa, “eu adapto-me bem em todo o lado, chego e cá estou eu”. Faz e acontece.
Maria João Ávila nasceu em Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, mas cedo se mudou com a família para os EUA – Newark, Nova Jérsia, onde vive desde os 13 anos por impulso do pai, que quis levar a família para a terra das oportunidades. A adaptação não foi fácil, mas foi compensada pelo facto de, logo aos 16 anos se ter envolvido com o coração da comunidade portuguesa. Primeiro enveredou pela mocidade do clube português da pequena cidade de Elizabeth, mas num ápice tornou-se parte da comissão organizadora do Dia de Portugal de Newark, “um dos maiores do mundo”. Daí a organizar anualmente o Festival da Canção dos emigrantes e luso-descendentes, a ajudar os jovens atletas da comunidade portuguesa e a fazer parte do grupo restrito de amigos de Amália Rodrigues nos EUA, foi um instante. Mas já lá vamos.
No Parlamento está só desde 2011, quando foi, inesperadamente, eleita a primeira pessoa oriunda do continente norte-americano a ter lugar na Assembleia da República. No hemiciclo, senta-se nas filas mais atrás na bancada do PSD, e, não sendo fácil ignorar a sua presença, a verdade é que só intervém quando os assuntos são efetivamente da sua área de competência. Mas não acha que isso signifique menor acompanhamento dos trabalhos parlamentares. Apenas um acompanhamento diferente, próprio de quem vive a saltitar “entre dois mundos”.
E nos corredores e elevadores do Parlamento, não é raro vê-la a contar as suas histórias das Américas ou a lamentar a quantidade de horas que passou no avião. Os dias às vezes têm mais horas do que as habituais 24, principalmente quando sai de Nova Jérsia para estar a horas no plenário do Parlamento. O jet lag baralha, mas não demove. O seu lado norte-americano faz com que se destaque dos restantes parlamentares. No bar dos deputados, por exemplo, onde decorreu a conversa com o Observador, vários foram os funcionários e colegas que interromperam a entrevista para irem meter-se com Maria João Ávila. “Aquele é meu fã”, sussurra-nos depois de, ao fundo, no balcão, alguém ter chamado o seu nome.
Do desporto à música, e aos jantares com Amália
A verdade é que Maria João Ávila sempre foi uma jovem diferente das da sua idade. Dinâmica, inquieta e com vontade de dar mais de si aos outros. A diferença é que nunca quis mergulhar no mundo “de sucesso” que conseguia ter nos EUA e desligar-se do mundo português. Dedicou-se durante cerca de duas décadas à organização das celebrações do 10 de junho, dia de Portugal e das comunidades. Primeiro na pequena cidade de Elizabeth, depois na grande Newark. Na altura era relações públicas e conhecia “meio mundo”. Por isso foi chamada a organizar algo inédito: um Festival da Canção só para as comunidades emigrantes. “Mas como é que eu vou organizar um festival da canção, eu não percebo nada disto!”, terá contestado na altura. “A resposta que me deram foi qualquer coisa como ‘Oh Maria João, invente”! “E eu e inventei. Inventei um festival, organizei-o durante seis anos, e na sétima edição já foi o governo português que quis organizá-lo em Portugal”. O sucesso ficou-se por aí, mas a missão de Maria João Ávila estava dada como cumprida.
Enquanto isso, outro convite. Fazer parte do Lar dos Leões, a delegação do Sporting de Newark que tinha cerca de 19 equipas de futebol de formação e mais umas dezenas de crianças ligadas ao atletismo. “Mas eu já tenho tantas coisas na minha vida, e não percebo nada de futebol!”. Primeiro atirou as mãos à cabeça, mas depois não baixou os braços. Virar o corpo às balas é que não. Tratava-se de jovens sem grandes capacidades financeiras que, por falta de verbas, não tinham equipamentos em condições e muitas vezes ficavam impossibilitados de se deslocar para as competições noutros Estados. “Era aí que entrava a Maria João, pensavam que eu era um banco”, atira a rir.
“Ao contrário da maioria dos emigrantes, quanto mais pudesse tirar para ajudar a comunidade portuguesa, maior era a sensação de missão cumprida”, diz. A cada dia que passava mais ficava mergulhada dentro do mundo português. E a verdade é que pôs as equipas do Lar dos Leões a competir, e a competir com mais “confiança e dignidade”, vestidas a rigor.
Era a mais nova e a “revolucionária” do grupo de emigrantes envolvidos na comunidade. Amália Rodrigues, a própria, chamava-lhe “força da natureza” e uma “completa obra humana”. Quando Amália viajava para os EUA, era a Maria João e ao seu grupo de amigos que recorria. “Ia jantar connosco, ia buscá-la ao hotel, às vezes até a levava ao médico”, diz. E rapidamente vêm à memória as histórias mais insólitas ou os episódios mais constrangedores que passou com a fadista nos EUA. Quase todos envolveram peixe. E sopa. Ou sopa de peixe.
“Certo dia telefona-me a Lili (que acompanhava Amália) a dizer que a D. Amália não comia, não gostava do peixe de lá [dos EUA] e queria peixe português. Lá peguei eu no telefone e liguei ao Canito, um peixeiro da Ferry Street [em Newark], e expliquei-lhe a situação. No dia a seguir fui ter com ele ao mercado e tinha uma caixa enorme cheia de peixe para mim. Pôs-me na mala do carro e lá fui eu a Connecticut. Só disse assim: ‘Oh Lili estou a caminho com peixe, não faço ideia do que está ali dentro, mas é peixe!”. E lá foi ela.
Ou o dia em que a fadista estava hospedada no hotel Plaza, em Nova Iorque, e queria sopa de peixe. “Com que cara é que vou aparecer no Plaza com um tacho de sopa de peixe?”. Mas como a agora deputada nunca foi mulher de virar costas a nenhum desafio, este não iria certamente ser o primeiro. Pôs o telefone em ação e… três, dois, um, quando deu por si já tinha o dito tacho no carro pronto para ser entregue ao destinatário. “Estava todo embrulhado mas o vapor saía para fora”, explica, relatando a “vergonha” que foi entrar no hotel de luxo a meio de uma festa de gala com o dito presente nos braços. Quem mais se riu foi a própria Amália: “Só mesmo a menina para me fazer uma coisa destas”.
Rumar a Lisboa para não virar costas à comunidade
Depois de tudo, aterrar na Assembleia de paraquedas foi a decisão “mais difícil” da sua vida. Mas uma “obrigação moral” enquanto cidadã que passou grande parte da sua vida adulta dedicada à filantropia e à defesa dos emigrantes lusos nos Estados Unidos. “Quando me ligaram a dizer que precisavam de uma pessoa para a lista de deputados eu disse logo que não queria ir”. Mas como era para ocupar o terceiro lugar da lista (e pelo círculo fora da Europa são apenas eleitos dois deputados), aceitou. “Se a ideia era porem-me bonita e bela no meio da fotografia, então tudo bem”, apressa-se a dizer entre rasgados sorrisos. Acontece que o cabeça de lista, José Cesário, foi para o Governo ocupar o cargo de secretário de Estado das Comunidades, e voilà, o lugar em Lisboa ficou vago. “Nesse momento gelei”.
Nunca tinha exercido nenhum cargo político, que não fosse ligado às direções de clubes e associações recreativas da diáspora. Muito menos um cargo partidário, “porque nas comunidades de emigrantes não há partidos para ninguém”. Garante que acolhia tão bem Durão Barroso, que ia pessoalmente buscar ao aeroporto nas suas deslocações a Newark quando lecionava em Washington, como recebia um Marcelo Rebelo de Sousa, ou um José Lello, socialista, secretário de Estado das Comunidades no tempo de Guterres.
“Disseram-me que tinha de me apresentar em Lisboa numa quarta-feira, dia 28 de junho julgo eu, e a primeira coisa que pensei foi ‘estou feita ao bife'”. Mas aceitou fazer as malas para mudar de país, e, apesar das saudades da “estabilidade” de outros dias, nunca se arrependeu. “Aceitei porque seria uma hipocrisia total virar a cara às minhas comunidades depois de estar uma vida inteira a defendê-las, a exigir que sejam respeitadas e que o Governo português não olhe para elas só como cifrões. Além de que era a primeira vez na história que uma pessoa dos EUA estava na lista da emigração, e seria hipócrita eu dizer ‘olhe não vou, vou ganhar menos dinheiro, vou estar sempre a andar para trás e para a frente e por isso não quero’. Então vim”.
Sem filhos, Maria João Ávila vive em Lisboa há quatro anos, longe da mãe e dos quatro irmãos e sobrinhos, estando “autorizada” a ir a casa (a outra casa) duas vezes por mês. Ir numa sexta, depois do plenário, e voltar numa terça-feira, a tempo do plenário. É mais ou menos este o ritmo. Dormir, dorme-se no avião.
O deputado carioca
Aproveitando o balanço das duas deslocações mensais, a deputada americana vai de Nova Jérsia para outras comunidades portuguesas, ora nos Estados Unidos, ora no Canadá, Argentina, Venezuela, ou até Macau. É que a área de abrangência dos deputados eleitos pelo círculo fora da Europa é tão vasta quanto a área dos restantes quatro continentes. O trabalho, no entanto, é dividido com o deputado Carlos Páscoa, o número dois da lista do PSD, que já está no exercício do seu terceiro mandato e que domina a região do Brasil, onde tem residência, mas também da restante CPLP, África, Ásia e Austrália.
Aliás, quando se ouve português do Brasil nos corredores do Parlamento, já se sabe que só pode ser Carlos Páscoa quem aí vem. No Rio de Janeiro desde os seus 15 anos, o sotaque carioca é indisfarçável. Com três filhos nascidos e criados no Brasil – dois a morar no Rio, um em Londres e a esposa em Lisboa – e entre o trabalho que desenvolve pelos quatro cantos do mundo, o difícil é fazer reuniões familiares. A mulher, brasileira, alinhou na aventura que o marido assumiu em 2005, fez as malas para Lisboa e, “felizmente”, adaptou-se bem à cidade. Ainda assim, passa três dos 12 meses do ano no Brasil, a “cuidar das coisas” que a família tem por lá – “porque a vida continua”. Mas, tirando isso, e apesar de, sempre que termina uma legislatura os dois terem de conversar seriamente sobre a possibilidade de assumir mais um mandato, já quase se sente alfacinha de gema.
A única altura em que o deputado carioca consegue mesmo juntar as tropas tem local, dia e hora marcada: é no Brasil, na altura da passagem do ano. “É o único compromisso que temos uns com os outros para juntar a família toda”, explica. Apesar das saudades, a verdade é que já todos parecem estar habituados ao facto de serem cidadãos do mundo. Viajar e fazer política além-fronteiras já é, de resto, um modo de estar na vida. De tal forma entranhado, que Carlos Páscoa ganhou imunidade aos distúrbios do sono associados às diferenças de fuso horário, e ao desconforto das cadeiras do avião. Aos seus olhos, uma cadeira de avião já se assemelha bastante a uma razoável cama ou sofá.
Dos mais pequenos estados brasileiros, ao resto da América latina, passando por Angola, Moçambique, Índia e Malásia, e indo parar ao bairro português de Malaca, onde Páscoa foi encontrar uma comunidade portuguesa completamente enraizada a falar um português arcaico e cristão, o trabalho do deputado é feito porta a porta, no contacto direto com as comunidades. Regra geral, é um trabalho desenvolvido ao fim de semana, quando Carlos Páscoa viaja para ir ao encontro do seu eleitorado distante. Do seu eleitorado e dos seus problemas, que passam muito por entraves no ensino da língua portuguesa, nos direitos de acesso à nacionalidade, ou por problemas burocráticos associados ao apoio consular.
Em tudo, o mesmo objetivo: tentar que a imagem do país que chega aos luso-descendentes seja a de um Portugal moderno, com os seus festivais de verão, paisagens rurais ou cosmopolitas, que faça os netos e os filhos dos emigrantes (principalmente os netos, que na sua ótica são mais interessados) quererem ver de perto o local que toda a vida foi o pano de fundo das histórias do avô.
O difícil é, na hora de os eleitores votarem para as eleições legislativas portuguesas, conseguir convencê-los a pôr a cruz no partido, à falta de um nome próprio. É que, lá fora, “as pessoas conhecem o Carlos Páscoa, não conhecem o PSD. E por isso temos muitos votos anulados, porque põem o nosso nome no boletim, para demonstrar apreço por nós”, explica.
“Então eu passo boa parte da campanha no Brasil pedindo, por amor de Deus, não coloque o meu nome no papel!” “‘Mas eu queria que o senhor soubesse que o meu voto era para você…'”, contestam habitualmente os cidadãos portugueses emigrados. “Não, não faça isso. Por agora me esqueça!“, brinca o deputado que, quase dez anos depois de ter vindo pousar as malas em Portugal, ainda não perdeu o jeito nem o sotaque carioca.