Índice
Índice
Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.
Que conhecimentos precisarão os jovens de aprender na escola para ultrapassar os desafios da sua vida futura? E, num mundo onde a informação está cada vez mais acessível e à distância de um clique, que competências deverão adquirir? Estas são perguntas necessárias, difíceis e sem resposta única, que todos os ministros da Educação se colocam hoje em dia. Em Portugal, esse processo de reflexão arrancou recentemente com o “perfil do aluno à saída da escolaridade obrigatória” – ou, como ficou conhecido, “perfil do aluno para o século XXI” – que o Ministério da Educação apresentou. Mas, noutros países, esse processo está já concluído.
É o caso da Finlândia – o que, por certo, não surpreenderá ninguém. Afinal, o mundo habituou-se a olhar para o sistema educativo finlandês com reverência e preparou-se para seguir as suas tendências. Não é por acaso: os alunos finlandeses têm desempenhos de excelência nas avaliações internacionais do PISA (OCDE), os seus professores compõem uma elite universitária que é socialmente reconhecida e apreciada, os pais confiam nas escolas, o modelo de avaliação dos alunos é contínuo e dispensa de exames nacionais. E, claro, os educadores finlandeses não abdicam de inovar, em busca das melhores estratégias pedagógicas para adequar o ensino às necessidades dos alunos. Daí que, em 2012, se tenha iniciado uma reforma curricular, desenvolvida ao longo dos últimos 5 anos e implementada no actual ano lectivo. Recorda-se de, há dois anos, ter lido que a Finlândia acabaria com as disciplinas nas suas salas de aula? E que todo o ensino passaria a estar enquadrado em temas, e não matérias predefinidas? Pois bem, não foi exactamente isso que aconteceu – a notícia da morte das disciplinas foi um pouco exagerada. Mas isso não traduz que as mudanças tenham sido ligeiras ou superficiais. Não foram, como veremos de seguida.
Um sistema de topo, mas em queda e desactualizado
Existem dezenas de livros e reportagens sobre o sistema educativo finlandês, sobre os seus bons exemplos e sobre as lições que cada país pode retirar das suas boas práticas. É a consequência do sucesso, que despertou a curiosidade do mundo em busca do segredo finlandês e da sua fórmula vencedora na educação. Acontece que, com o passar do tempo, essa noção de sucesso perdeu fulgor – dentro e fora da Finlândia – e, no seu lugar, ganhou espaço uma nova percepção: a de que, apesar de ainda no topo, o sistema educativo finlandês carecer de uma actualização. Porquê? Por duas razões.
Queda no PISA. A primeira razão está associada à queda de resultados no PISA (gráfico 1), que expõe as fragilidades de um sistema educativo que alguns julgavam perfeito. Desde que existe PISA, a Finlândia ocupou as posições cimeiras. Com destaque para a edição de 2006, quando fixou máximos nos desempenhos a ciências e atraiu as atenções de especialistas de todo o mundo. Facto é que, desde então, os desempenhos dos alunos finlandeses no PISA caíram consistentemente. Comparando os desempenhos de 2006 ao mais recente PISA 2015, observa-se uma queda de, em média, 30 pontos nas diferentes áreas. Ora, não tendo havido reformas de relevo no sistema educativo que o justifiquem, fica notório que o tempo fez divergir as necessidades dos alunos e a cultura escolar.
Haverá, como há sempre, diversas teorias para explicar esta queda de resultados. Olhando ao diagnóstico que as próprias autoridades finlandesas efectuaram, esta queda aponta para três problemas crescentes (gráfico 2). Primeiro, o alheamento dos rapazes, que é transversal na OCDE mas que tem particular incidência na Finlândia, o único país onde as raparigas têm melhores desempenhos que os rapazes a leitura, matemática e ciências. Segundo, o acesso à tecnologia parece estar a prejudicar os níveis de leitura e de concentração dos jovens – com maior incidência nos rapazes. Ou seja, está aqui subjacente a necessidade de ajustar o ensino a este fenómeno, antes que a escola fique desligada destes jovens: tudo nos ecrãs de telemóveis e computadores é mais estimulante para os jovens do que o modelo convencional de aulas. Terceiro, quebrou-se a regra de que as diferenças sociais eram esbatidas pela escola: a importância do perfil socioeconómico dos alunos na explicação dos resultados escolares aumentou e superou a média da OCDE. Isto deve-se, sobretudo, às diferenças regionais na Finlândia, que se acentuaram – os resultados dos alunos do interior (piores) e dos da zona metropolitana de Helsínquia (melhores) ampliaram-se. Ou seja, o actual sistema, apesar da sua autonomia, não está a conseguir dar resposta às necessidades de todos os seus alunos.
Necessidades da economia. A segunda razão assenta na verificação, a médio prazo, do desajuste entre as necessidades da economia finlandesa e a oferta educativa. Esse diagnóstico foi corroborado através de um “estudo de antecipação” sobre o mercado de trabalho em 2025 – a sua estrutura, as competências necessárias ao desenvolvimento da economia finlandesa e a adequação do sistema educativo a essas novas realidades. Um estudo que aponta dois cenários: aquele que caracteriza a estimativa sobre a situação da economia em 2025 e aquele que estabelece o objectivo a alcançar (em termos de crescimento económico, por exemplo) e altera os pressupostos de empregabilidade/competências necessários para os atingir (gráfico 3).
Em que se traduzem esses objectivos? Vamos por fases. Primeiro, aumentar acentuadamente o número de empregos na Educação, no sector empresarial e nos negócios domiciliários (desde gestão de condomínios a tratamento de esgotos e canalizações). Segundo, atenuar o crescimento previsto da empregabilidade nas áreas do trabalho social e da saúde. Terceiro, diminuir o número de empregos na administração pública, na defesa nacional, na indústria metalúrgica e nos serviços de gás/electricidade. Em termos de oferta educativa, que implicações têm estes cenários? Um ajuste na oferta (gráfico 4) no sentido de reduzir o número de inscritos nas ciências naturais e nas áreas culturais, e de aumentar as matrículas nas formações relacionadas com o turismo ou serviços domésticos. Ou seja, e simplificando o ponto da análise, o que está em causa é simples: uma aposta nas qualificações universitárias, com enfoque positivo nas áreas da Educação e das competências transversais, e negativo nos sectores mais estreitos e menos qualificados.
Porque mudar um sistema educativo que, apesar de tudo, está no topo?
Quando os problemas estão relacionados com queda de desempenhos nas avaliações internacionais, a resposta mais habitual é o reforço do ensino nas disciplinas nucleares – língua materna, matemática e ciências. Foi esse, por exemplo, o racional apresentado para a revisão da estrutura curricular de 2012/2013, em Portugal, quando o ministro Nuno Crato defendeu ser necessário reforçar a carga horária nas disciplinas estruturantes. Mas não foi esse o caminho escolhido pelos finlandeses, que viram nestes problemas uma oportunidade para mudar e abrir o sistema aos saberes transversais.
O raciocínio de partida é simples e consensual: no futuro, num mundo onde o acesso à informação será cada vez mais fácil, o que diferenciará as pessoas no seu ambiente de trabalho será muito suportado em competências transversais, sociais e de pensamento crítico. Não se trata, como é evidente, de abolir a aquisição de conhecimento – essa dimensão continua muito presente na educação finlandesa. Apenas de salientar que o conhecimento, por si só, já não será suficiente para ultrapassar os desafios profissionais com que os jovens se defrontarão. Mas, no caso finlandês, o que leva um país, cujo sistema educativo o mundo se habituou a invejar, a arriscar o conforto da consagração internacional e ajustar o rumo das suas estratégias educativas?
Irmeli Halinen, responsável máxima pelo desenvolvimento curricular na Finlândia, responde (aos 5m 15s): “Porque o mundo está a mudar e é preciso pensar e repensar tudo o que está relacionado com a escola. É preciso compreender que as competências necessárias para a vida em sociedade e profissional se alteraram”.
Ou seja, a questão que preocupou os finlandeses não esteve no “porquê”, que é consensual, mas no “como”. Como introduzir as mudanças necessárias no sistema educativo de modo a beneficiar as aprendizagens dos alunos? Ora, a resposta das autoridades finlandeses foi uma reforma curricular profunda (começada em 2012 e implementada há poucos meses), acompanhada da introdução de uma nova abordagem pedagógica no ensino básico.
O que é que isso significa? Ao início, ninguém percebeu. Através do britânico The Independent, lançou-se o rumor de que a Finlândia decretara o fim do ensino por disciplinas e implementara um ensino baseado em grandes temas, a serem tratados de forma multidisciplinar. A notícia, como depois se percebeu e esclareceu Pasi Sahlberg (o mais popular analista da educação na Finlândia), exagerou (e muito) a dimensão da reforma. Mas, como em muitas histórias mal contadas, há na notícia um fundo de verdade.
Uma reforma curricular para o século XXI
O processo arrancou em 2012. Ao longo de cinco anos, 36 grupos de trabalho desenvolveram o novo curriculum nacional, sob a monitorização do National Board of Education (equivalente, em Portugal, à Direcção Geral da Educação, embora com mais responsabilidades) e com abertura para consulta pública em cada uma das três etapas. Em 2012, para a fixação das linhas principais do novo curriculum. Em 2013, relativamente ao pré-escolar. E em 2014, relativamente ao ensino básico, já envolvendo os conteúdos das disciplinas. Todos estes grupos de trabalho foram multidisciplinares e incluíram professores, que foram envolvidos em cada momento e a cada passo – e este é um aspecto que as autoridades finlandesas insistem em salientar. Quando concluído o processo, o curriculum foi distribuído aos principais parceiros no sector, de modo a pedir a sua opinião e fazer ajustes à medida desse feedback.
Peça a peça, etapa a etapa, o novo curriculum ganhou forma. E, com ele, entrou nas escolas uma maior diversidade de opções pedagógicas, a tecnologia passou a fazer parte da aprendizagem em todas as disciplinas, a ênfase recaiu sobre sete competências transversais (gráfico 5) e a multidisciplinariedade foi promovida a obrigatória.
Tal como as autoridades finlandesas a apresentaram em conferências pelo mundo, os pressupostos da reforma curricular assentam em três necessidades directas. Repensar o conceito de aprendizagem, que está relacionado com a ideia de colaboração e de satisfação do aluno no processo educativo. Repensar a cultura da escola e o seu relacionamento com a comunidade. E repensar os objectivos da escola e o conteúdo das disciplinas. Traduzindo o jargão educativo, o que isto significa é que a reforma curricular ambicionou mudar as bases da educação finlandesa – o que se ensina, como se ensina e qual o papel das escolas nesse processo. Na prática, as principais novidades (gráfico 6) são três.
Primeiro, a revisão do curriculum obrigatório. Ao contrário do que acontece em Portugal, o sistema finlandês está muito descentralizado e as suas escolas usufruem de elevados níveis de autonomia de decisão. Consequentemente, o curriculum finlandês é um documento aberto, que serve de orientação do ensino e pressupõe a devida adaptação ao nível do município (no curriculum municipal) e ao nível da escola (no seu projecto educativo). Ora, nesta recente revisão curricular, inseriu-se a obrigatoriedade de uma modalidade de ensino por temas, em vez de por disciplinas. Ou seja, os alunos passarão a ter obrigatoriamente acesso a períodos de aulas em que, em vez de aprenderem no tradicional âmbito de disciplinas, estudam temas de forma multidisciplinar – por exemplo, a “União Europeia”, cujo estudo implica história, geografia e línguas estrangeiras. Esta abordagem temática não é inteiramente nova na Finlândia, pois algumas escolas já usavam da sua autonomia para aplicar este tipo de ensino – mas é nova a sua obrigatoriedade em pelo menos um período de tempo alongado (no mínimo, duas semanas) por ano lectivo.
Segundo, os municípios e as escolas decidem como implementar as aulas temáticas. Sabendo que têm de as fazer pelo menos por um período de tempo por ano lectivo, podem optar por fazê-lo mais vezes. Em Helsínquia, as escolas fá-lo-ão duas vezes por ano lectivo, sendo a opção mais comum a de cumprir a obrigatoriedade à risca – apenas uma vez por ano lectivo.
Terceiro, os alunos são envolvidos no processo de preparação dos períodos de aulas temáticas. O objectivo é combater o desinteresse dos jovens e tornar o processo educativo mais participativo e estimulante para os alunos. Assim, os alunos poderão ajudar a definir os temas acerca dos quais têm mais interesse e discutir as abordagens a seguir. É convicção das autoridades finlandesas que, através deste processo participativo, a aprendizagem ficará mais apelativa para os alunos e que estes encontrarão um interesse reforçado em aprender no contexto destas aulas temáticas.
Incertezas quanto à reforma
As reformas políticas, enquanto estão no papel, são consensuais. Quando saem do papel, a conversa muda. Para cada reforma implementada, há quem acredite nos seus benefícios e quem desconfie dos seus efeitos. Faz parte. E esta reforma não foi excepção. De acordo com uma sondagem direccionada a professores (209 inquiridos) e directores escolares (184 inquiridos), sobressai que o optimismo dos directores não é partilhado pelos professores (gráfico 7). Entre os directores escolares, 46% acredita em efeitos positivos da reforma e apenas 6% crê numa pioria da situação. Pelo contrário, os professores surgem muito mais divididos: apenas 21% acredita no benefício da implementação desta reforma, com 34% a apontar para efeitos negativos. De resto, parece que a tendência geral no sector é a convicção de que pouco mudará realmente.
Esta desconfiança por parte dos professores não é surpreendente. Afinal, é sobre eles que recai a maior fatia da responsabilidade, pois serão os professores a ter de se adaptar à leccionação em períodos de aulas temáticas, em vez de o tradicional acompanhamento por disciplina. Esforço que pressupõe, por um lado, uma maior cooperação com os seus colegas, e, por outro lado, o envolvimento dos seus alunos no desenho das aulas temáticas. Ou seja, o esforço da mudança nesta reforma está sobre os ombros dos professores e as incertezas que exibem não anunciam nada de positivo quanto aos efeitos da reforma.
Acontece que as autoridades finlandesas detectaram essas dificuldades. É um facto que a implementação, actualmente em curso, não se afigura simples. Está em causa não só a adaptação dos professores aos novos curricula (nacional e local), como à introdução das aulas temáticas e multidisciplinares, cuja preparação requer elevados níveis de cooperação entre colegas professores e até com os alunos. Assim, para apoiar os professores, haverá em cada escola um professor/tutor com a função de auxiliar os seus colegas a implementar o novo currículo e a adaptar-se às novas tecnologias (cuja utilização o novo curriculum exige). A experiência foi desenvolvida, no passado, em alguns municípios e, tendo sido positiva, foi agora alargada a nível nacional, no âmbito desta reforma curricular.
So what? Quatro pontos a fixar da reforma curricular finlandesa
Primeiro ponto: uma reforma que pretenda alterar estruturalmente o ensino deve ser preparada com tempo e envolver todos. A reforma curricular finlandesa iniciou-se em 2012 e só foi implementada em 2016. Ao longo de cinco anos, peritos organizados por grupos de trabalho desenvolveram os objectivos do curriculum, definir as novas competências e ajustaram os conteúdos das disciplinas. No processo, houve mudanças de governo e ministros da Educação, mas não houve mudanças de rumo. Há que resistir à tentação de fazer em cinco meses o que deve demorar cinco anos.
Segundo ponto: as reformas estruturais devem basear-se em evidências e diagnósticos sólidos, não em palpites. A Finlândia soube reflectir sobre o estado actual do seu sistema educativo, recorrendo às avaliações internacionais, e procurou antecipar cenários futuros para a sua economia, de modo a identificar as necessidades futuras do país. E, paralelamente, soube reconhecer os desafios que o facilitado acesso à informação (através da internet) coloca às escolas – e, assim, apostar em competências transversais. Este trabalho de partida é determinante para alicerçar uma reforma política, porque ajuda a localizar os problemas, clarificar as soluções e a acordar as estratégias para a sua implementação.
Terceiro ponto: a autonomia e a descentralização da educação são factores-chave para levar os alunos para o século XXI. A diversidade pedagógica e de necessidades educativas dos alunos exige uma adequação constante das comunidades escolares e capacidade de decisão de proximidade – sobre o curriculum, mas também sobre os professores e práticas pedagógicas. Ou seja, a reforma curricular finlandesa foi implementada num sistema que estava preparado para a acolher.
Quarto ponto: o grande esforço da reforma recai sobre os professores. São eles os principais responsáveis pela inovação das aulas temáticas, são eles que têm agora o dever de trabalhar mais em cooperação entre colegas, são eles que devem aprofundar as suas competências tecnológicas para as introduzir na sala de aula. É sabido que a profissão de professor é, na Finlândia, de acesso extremamente exigente, recrutando-se apenas os melhores entre os melhores. Mesmo assim, não é expectável que os professores virem super-homens e se adaptem a tudo de repente – talvez esse receio explique as suas incertezas quanto ao potencial da reforma. Ora, as autoridades finlandesas perceberam isso e atribuíram a cada escola um professor cuja função é apoiar os seus colegas a implementar o curriculum e as novas tecnologias. Parece um detalhe, mas o sucesso da implementação desta reforma joga-se aí.
Alexandre Homem Cristo foi Conselheiro Nacional de Educação e, entre 2012 e 2015, foi assessor parlamentar do CDS na Assembleia da República, no âmbito da Comissão de Educação, Ciência e Cultura. É autor do estudo “Escolas para o Século XXI”, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, em 2013.