Índice
Índice
O que distingue António Guterres? Não, a pergunta é assim mesmo: o que realmente o distingue para ser Secretário-Geral de uma organização planetária como as Nações Unidas, se os elogios tendem a travar o passo quando se pensa no guterrismo que ficou lá atrás? Um certo destino comum? Sim, a resposta talvez seja esta: António Guterres deixou fermentar a perceção de que estamos dependentes de qualquer coisa que está além de nós.
Talvez seja então esta ideia de protagonista de um destino comum que o distingue, agora que se lavou da ganga do guterrismo para se reinterpretar na contemporaneidade da @ e da #.
Primeiro, dedicou-se às vidas e aos modos de sobrevivência dos refugiados como Alto Comissário das Nações Unidas: “É o que queria fazer nesta fase da minha vida, uma atividade humanitária de empenhamento total”. Agora, quer dedicar-se ao desenho diplomático das soluções que identificou com a experiência do exercício anterior: “Senti a frustração de ver as pessoas a sofrer e saber que não tinha uma solução para elas. Foi por isso que entendi ser minha obrigação candidatar-me a Secretário-Geral da ONU”, disse durante o primeiro debate entre os candidatos.
Isto faz todo o sentido. É fácil reconhecer em António Guterres qualidades para mobilizar vontades coletivas, e tem sido o reconhecimento dessas qualidades que abriu as portas de uma organização inspirada na ideia do destino comum dos povos, mas onde ainda por lá destilam os velhos ódios da Guerra Fria.
Deus sabe que não será coisa pouca dizer isto: que foi António Guterres quem criou esta sensação de possibilidade para si próprio. Será Secretário-Geral das Nações Unidas depois de ter sido Alto Comissário para os Refugiados. António Guterres pode ser Secretário-Geral das Nações Unidas graças a si próprio, acrescente-se aqui, por repetição.
O homem religioso: do não ao Opus Dei aos trabalhos na Mocidade Portuguesa
O mundo que durma agora descansado se acreditar nas comunidades cooperantes transnacionais mesmo que não acredite em mais nada por força das dinâmicas da ostpolitik da nova Berlim. Guterres gosta de se comprometer com destinos comuns. Tem aquilo que designa elegantemente como “consciência social” e mostra-o desde que na juventude se deixou inspirar pelo espírito conciliar do Vaticano II.
É claro que tanta militância social despertou a atenção.
Resistiu ao insistente assédio de Adelino Amaro da Costa para se iniciar no Opus Dei e ainda hoje lida bastante mal com os elogios gulosos dos antigos dirigentes ao papel que desenvolveu na Mocidade Portuguesa. Dirigiu um curso, mas “foi uma participação inofensiva e sem consequências. Eles não gostaram do que eu disse, e eu não gostei daquilo”.
Isto podia ficar por aqui, mas parece que só a primeira frase é rigorosa: “Acabou por ser uma colaboração eventual, mas muito do meu agrado”, haveria de elogiar desgraçadamente o padre Alves Campos, assistente nacional da Mocidade Portuguesa para a Formação Moral.
António Guterres preferiu mergulhar no mundo através dos encontros espirituais do bem temporal Grupo da Luz. Um grupo elitista e socialmente distinto que reunia inúmeras personalidades que haveriam de se destacar depois do 25 de Abril. Foi toda esta “consciência social” que o “despertou” para a política, mas sempre orientado pelo aprumo moral de garantir que “nunca houve confusão entre o homem religioso e o homem político”.
Era fácil acusá-lo de ser excessivamente religioso como dizia o próprio Mário Soares? Era. Era fácil apontar o seu confessor Vítor Melícias como o frade do regime? Era. Era tudo verdade? “Não rezo tanto como se diz por aí. Devia até rezar mais”, respondeu com fina ironia quando (finalmente) naturalizou as críticas na sua própria personalidade pública. Ser católico praticante “não é um facto político”. Bem resolvido, graças a Deus.
Iniciou-se voluntário no Centro de Acção Social Universitária durante a carreira académica no Instituto Superior Técnico e juntou-se aos voluntários salesianos que trabalhavam na Quinta do Mocho com as comunidades desfavorecidas depois de se ter demitido de primeiro-ministro com estrondo. Estes ciclos narrativos sobre a sua vida pessoal e política permitem construir múltiplas percepções sobre as mesmas realidades passadas, mas todos nós estaremos de acordo em algum ponto por aqui perto: na sua genuína capacidade de se comprometer.
É disso que trata a biografia António Guterres – Os Segredos do Poder: ciclos narrativos baseados na selecção de factos, no esquecimento de outros, no seu reordenamento, na sua interpretação. Já este texto trata apenas de António Guterres como uma construção narrativa baseada nas qualidades que o distinguem nesta contagem decrescente para Secretário-Geral das Nações Unidas.
Terá sido António Guterres o monge que desde a adolescência palmilhou o mundo temporal em busca da redenção dos homens como um “místico racionalista”? – elogiado por Vítor Melícias como “um homem que tem essencialmente preocupações sociais, de luta contra a pobreza e de libertação do pobre”.
Terá sido António Guterres um guerreiro delicodoce movido por uma bem enraizada “ambição organizada”? – a quem Jaime Gama imputa às quedas amargas de Vítor Constâncio e de Jorge Sampaio: “Apoiou-os a ambos para impedir que surgissem líderes fortes até ao momento em que o terreno estivesse facilitado para ser ele o candidato vencedor”.
A revelação das respostas justificará que se mande pintar novamente a capela Sistina?
Ou basta-nos a ideia de que as biografias são contingenciais, e que por isso mesmo devem ser relativizadas para que as possamos revisitar em cada momento presente?
Seja para interpretar o monge ou reinterpretar o guerreiro.
O político que criou o guterrismo foi um negociador e sucumbiu às traições
“Gostaria de dizer uma coisa com muita clareza a esta Câmara: entendo que, em política, se devem evitar as situações em que se procura pôr as pessoas, os partidos ou os governos ‘entre a espada e a parede’. E entendo que há todas as condições para que, nesta legislatura, isto não aconteça. Quero que fiquem todos a saber que se este governo for colocado ‘entre a espada e a parede’ preferirá a espada”.
António Guterres parecia gritar convicto quando murmurou na Assembleia da República que escolheria a espada quando o encostassem à parede. Falaremos depois dessa espada embainhada, mas não se pense que as coisas podem ser assim facilitadas. António Guterres foi primeiro-ministro de um Governo minoritário que completou o mandato, e de um segundo que governou em empate com as oposições. Foram tempos novos.
Começou desde logo por enterrar uma década de cavaquismo em ambiente de gáudio e furor, e depois governou os seus primeiros quatro anos em diálogo permanente. Governou contra o passado, porque no guterrismo só existia o tempo presente, e isso foi como tirar a rolha à garrafa do espumante. O que podia correr bem, correu; e o que podia correr mal; bom, ninguém se lembra de como correu mal.
Talvez se possa agora dizer que fomos todos mais ou menos felizes nesta disneylândia dialogante.
Só por isso teria sido justo que o mandato seguinte fosse de maioria absoluta, mas António Guterres elegeu exactamente o mesmo número de deputados das oposições federadas em coisa alguma. Houve aqui um erro vital. O guterrismo vibrante hesitara na campanha eleitoral entre os que se encomendavam de alma e coração por um pedido de maioria absoluta e os que temiam os traumas dessa gula por causa da memória cavaquista.
O erro só foi fatal porque faltava no Largo do Rato um daqueles pimpolhos capazes de invocar o sábio Yoda com a autoridade semântica do momento: “Do, or do not, there is no try”.
A coisa ficou pelo meio. É claro. A sério, ficou mesmo pelo meio: 115 deputados de cada lado da barricada. Nunca se tinha visto nada do género. Ficou assim por falta de um compromisso total com a oportunidade, faltou a convicção do querer, sim, terá faltado também uma certa honestidade em assumir o gosto de querer o poder. Ficou assim um odioso empate.
A Assembleia da República acantonou-se carneirissimamente nas suas próprias contradições até à celebração da moeda única em 1999 e o segundo governo de António Guterres foi sendo depois escorraçado à força de porrete até cair em finais de 2001. Nunca ninguém temeu a ameaça da espada enquanto o governo durou. Nem os próprios socialistas. Ninguém acreditava que ele fosse capaz de bramir a espada depois de tudo o que já tinha aguentado como vítima feliz do bullying parlamentar.
Perdoe-se aqui estas linhas escorregadias, mas António Guterres deixou-se também embalar pelas traições e dissensões encenadas em seu redor por subalternos feitos secretários de Estado e ministros e por luminárias em ascensão. Conseguimos imaginá-lo a encolher os ombros e a suspirar “É a vida”.
Mas as traições são como o silêncio: aparecem de todos os lados.
Não valerá por isso a pena desfiar aqui os casos em malha fina, mas o que dizer da textura da condenação de António Guterres a Fernando Gomes: Roma não paga a traidores; do azedume de Sousa Franco com Joaquim Pina Moura: é um homem dos espanhóis; do carpir choroso de João Cravinho contra os lobbies poderosos que derrotaram o governo e o próprio PS. O que dizer da irritação de Manuela Arcanjo, que prometeu nunca mais trabalhar com António Guterres depois de ter sido demitida pelas televisões?
Isto também foi o guterrismo em todo o esplendor.
Isto foi a decomposição da Nova Maioria que nunca chegou a ser a concretização da esperança colectiva que prometeu.
Sim, António Guterres deixou-se cozinhar excessivamente, e com genuína convicção, já agora, nas virtudes do diálogo. Negociou com todos enquanto teve energias para negociar tudo. A novela da vida real chegou a superar a própria realidade. Negociou com deputados aparentemente rebelados contra os seus partidos: para governar o ano seguinte. Negociou com os seus ministros: para manter o governo nos 10 minutos seguintes. Negociou com dirigentes da oposição: sabendo que esperavam apenas que se afundasse um pouco mais. Negociou tudo com todos, mas a verdade é que no final da novela saiu do pântano pelo seu próprio pé quando muitos outros por lá ficaram. E por lá continuam, já agora.
Como ele se reinventou depois do pântano: das explicações aos refugiados
Mas isto foi também uma purificação para António Guterres. Percorrer a estrada do pântano deu-lhe forças para virar costas à intendência da política e reconstruir-se na sua essência: o voluntariado num bairro da periferia social de Lisboa. Um ex-primeiro-ministro a dar explicações de Matemática a jovens de famílias desfavorecidas.
Foi assim que começou a reinvenção de António Guterres: quando se afastou voluntariamente do mundo e regressou a Deus pelo silêncio.
Saiu moralmente incólume da disneylândia dialogante e pouco tempo depois estava na liderança do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Soube reinventar-se mesmo quando todos lhe apontavam a espada.
Boa pergunta: e a espada?
“Quem faz o mal também faz a caramunha”.
António Guterres recusou desembainha-la no seu segundo mandato tantas vezes quanto ministros como António Vitorino, Joaquim Pina Moura e António José Seguro o desafiaram a fazer: para clarificar a situação e desfazer o insolente empate eleitoral.
Quanto mais recusou, mais só ficou dentro do próprio guterrismo, já coalhado. Uma moção de confiança poderia ter sido uma solução de compromisso, mas nem sequer das conversas com o Presidente Jorge Sampaio resultava o mínimo de garantias sobre coisa alguma. A situação estava coalhada no seu próprio situacionismo, se isto existir para ser assim dito.
Aqui chegados, podemos dizer que foi o guterrismo que isolou António Guterres e que depois o quis devorar?
Podemos pelo menos olhar para os alinhamentos da noite em que se demitiu por causa de umas eleições autárquicas menores. Ninguém esperava que o fizesse naquele Dezembro de 2001. Quando o fez, foi um ai Jesus no Largo do Rato. Sem grande pena, aliás, António Guterres demitiu-se para evitar que o país político caísse no pântano, sabendo que há muito esse país para lá caíra de boca aberta. Bastava olhar para as manobras entre os socialistas.
[Veja aqui a declaração de António Guterres quado se demitiu de primeiro-ministro]
António Guterres virou as costas a tudo.
Depois de se deixar consumir lentamente pelas dinâmicas políticas e sociais que o seu próprio estilo de governação criou, virou as costas.
Depois de ter até sido protagonista periférico das sucessivas maquinações dos wanna be guterristas, virou as costas. Havia melhores maneiras de perder tempo.
Cá está: finalmente, a espada na mão.
“Tudo começa pelas pessoas, pela sua valorização, pela sua realização pessoal, familiar e profissional através do triângulo educação, formação, emprego. O emprego é, na nossa visão, um objectivo central da política económica: emprego qualificado, melhor remunerado, mais sustentado”.
Isto não tem nada a ver com a tensão dinâmica da memória, mas quando somos chamados a rabiscar o que se passou entre 1995 e 2001 esvaziamos palavras como diálogo, consciência social e educação. Mas não podemos esquecer Timor. O guterrismo foi isso tudo, mas foi também uma força generosa na luta pela independência deste povo.
O reconhecimento internacional da independência de Timor resulta em grande medida da força interior de António Guterres e das suas capacidades como protagonista de um destino comum.
Uma causa que liderou sem equívocos e com paixão: com a espada, sim, sempre com a espada em riste nos encontros internacionais onde a Indonésia foi ficando agachada.
Isto há-de poder ser escrito assim: António Guterres entregou-se à luta sempre que acreditou nos valores essenciais que estavam em causa e por causas de carácter manifestamente transcendente.
As famílias desprotegidas da periferia de Lisboa durante o Estado Novo, depois o país democrático e iletrado dos bairros de lata e ainda a paixão pela educação da Nova Maioria. A independência de Timor contra todas as portas fechadas e a conquista dos apoios cúmplices de Tony Blair e Bill Clinton. Depois, as Nações Unidas sensibilizadas para a realidade inconveniente dos refugiados escondidos na porta dos fundos e agora as Nações Unidas focadas na resolução concreta desses problemas.
Será excessivo elogiar a sua crença na libertação dos pobres e no auxílio dos vulneráveis?
[Veja aqui as declarações de António Guterres sobre Timor depois de uma visita a Tony Blair]
Como tudo começou: o ídolo Salgado Zenha e as conspirações no sótão
Voltamos atrás: o guterrismo era uma impossibilidade histórica dada a natureza dos partidos e dos políticos emergentes, mas António Guterres conseguiu ser mais do que a soma dos cotovelos das figuras menores. Pode até ser: que as virtudes têm muitos vícios, que o guterrismo deixou por resolver alguns dos principais problemas colectivos que haveriam de implodir ao longo das duas décadas seguintes, destas duas últimas décadas, mas criou a percepção de que as coisas podem ser diferentes.
Os Estados Gerais para a Nova Maioria representam o trabalho mais consistente desenvolvido até hoje como preparação de um programa de governo e de um candidato a primeiro-ministro. Nunca se ouviu falar tanto de sociedade civil e de independentes. Na paixão pela educação. Nas pessoas e nos seus problemas concretos. Nos homens e nas suas ideias de mudança.
António Guterres emergiu deste imenso caldo com a naturalidade dos líderes intelectuais. O seu modelo político nunca foi Mário Soares, contra quem conspirou com um certo travo desabusado perante tal autoridade régia. Era em Francisco Salgado Zenha, um príncipe da Renascença, que se inspirava, e a quem tributava assumida admiração: “A grande referência política e moral que norteou o início da minha actividade política”. Mário Soares não perdoou o atrevimento conspirativo e haveria mais tarde de castigar António Guterres e todos os conspiradores do sótão. O que importa isso?
António Guterres aguentou o refluxo, recuou e retomou mais tarde o fluxo imparável da tomada do poder com Vítor Constâncio e Jorge Sampaio. As coisas no ex-Secretariado correram melhor nas páginas dos livros de História do que na realidade dos gabinetes por causa das precedências geracionais: quem avança primeiro, quem avança depois, quem se levanta e quem se deixa ficar sentado a ver televisão a cores? Houve por ali tumulto forte, mas bastou a António Guterres esperar pela sua oportunidade.
Trazia consigo uma distinta carreira académica no Instituto Superior Técnico e uma vocação nunca explorada pela investigação na Física: “É a grande paixão intelectual da minha vida”.
Trazia um projecto de Portugal baseado na educação e na sensibilidade social. Falava em resolver os problemas concretos das pessoas, em humanizar os procedimentos do Estado, no combate às desigualdades, na valorização da cidadania. Falava até na afirmação da identidade nacional na Europa”.
António Guterres e a Nova Maioria respiravam esperança por todos os poros.
A esperança dos Estados Gerais para a Nova Maioria tornou-se assim colectiva. Isto não tem nada a ver com o guterrismo. Foi a esperança colectiva que floriu numa sociedade salgada pelo cavaquismo.
Abriu-se um ciclo novo.
Não, não foi apenas um ciclo novo que António Guterres abriu: António Guterres criou também um tempo novo, o seu tempo.
É isso que o distingue outra vez por estes dias: é protagonista presente de um destino comum no presente que ele próprio criou.
Os sucessivos votos de encorajamento que recebe após as suas intervenções nas Nações Unidas parecem traduzir essa esperança colectiva numa mudança. Melhor dito: numa mudança num certo sentido, mas com António Guterres esse sentido significa um retorno às suas próprias origens no Centro de Acção Social Universitária: as pessoas mais vulneráveis.
É esse o significado da esperança colectiva que estende com as duas mãos às Nações Unidas.
António Guterres é protagonista de um destino comum que responde aos desafios dos tempos que correm. E sim, continua a ter uma fé desesperada em todos nós. Queiramos ou não. Mas isso já não será sua culpa.
Adelino Cunha é autor da única biografia de António Guterres. O livro “António Guterres – Os Segredos do Poder” foi publicado em 2013. É também historiador, jornalista e professor de História Contemporânea da Universidade Europeia.