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Na "Fábrica de Nada" não há máquinas mas há operários que cantam e dançam

Uma fábrica sem máquinas, trabalhadores que não querem desistir e o fim no horizonte. Falámos com Pedro Pinho, que realizou um dos vencedores de Cannes que agora se estreia em Portugal.

Imagine a situação: o computador ou algo que o possa substituir, como um telemóvel ou um tablet, é a sua ferramenta de trabalho e fica sem ele. Ou que depende da internet para fazer tudo e mais alguma coisa no seu local de trabalho e há uma quebra na rede. Nasce um sentimento de impotência, uma certa angústia na vulnerabilidade destas coisas e é fácil de pensar no que seria do trabalho, do seu trabalho, se essas coisas, hoje quase coladas às mãos, ao corpo, se tornassem obsoletas. O pânico diz olá.

“A Fábrica de Nada” fala disto sem falar disto. É um filme assinado por Pedro Pinho, que não existiria sem uma equipa formada por Luísa Homem, Leonor Noivo, Tiago Hespanha, João Matos e Susana Nobre. Parte de uma ideia original de Jorge Silva Melo sobre uma fábrica que da noite para o dia fica sem máquinas (a administração rouba-as durante a noite para iniciar um processo de fecho), mas fica com os trabalhadores, que num gesto de retaliação continuam a estar nos seus postos de trabalhos sem nada para fazer, enquanto se negoceia o processo dos despedimentos.

[o trailer de “A Fábrica de Nada”:]

Mostra uma fábrica de elevadores, mas o que aqui se fala passa por, como a sinopse tão bem resume, “um convite para repensar o papel do trabalho num tempo em que a crise se tornou a forma dominante de governo, um hino à impotência destituinte”. Durante o casting a equipa entrevistou várias pessoas na região da Póvoa de Santa Iria, em Vila Franca de Xira, que tinham trabalhado em fábricas e que agora estavam desempregadas. Muitos deles colaboram no filme e as suas entrevistas, como Pedro Pinho nos diz, desempenharam um papel importante no seu desenvolvimento: “As pessoas estavam muito dispostas a falar. Por vezes tínhamos castings que demoravam três horas. Isso foi muito interessante no processo de casting dos atores, sentia que as pessoas achavam que era urgente falar das suas histórias. E isso ajudou a criar uma espécie de comunidade connosco e entre aquelas pessoas que não se conheciam antes”.

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A terceira dimensão

“A Fábrica de Nada”, produzido pela Terratreme (Pedro Pinho é um dos fundadores), estreia nas salas portuguesas nesta quinta-feira, depois de ter passado por alguns festivais e de ter coleccionado alguns prémios, como o Prémio FIPRESCI no Festival de Cannes 2017 ou o de Melhor Filme do Festival de Cinema de Munique. É uma obra construída em diversas camadas, onde “trabalho”, “redefinição” e “urgência” são fatores sempre presentes. É de uma atualidade arrojada, o conceito de fábrica parece coisa do passado, mas a equipa conseguiu redimensionar isso para o mundo em constante mudança em que se vive. O medo, a permeabilidade e a incerteza do agora e de como as coisas serão está sempre presente.

“Cada vez que apresentávamos o projeto à administração de uma fábrica [quando procuravam um local para filmar], mesmo aquelas que estavam meio paradas e poderiam aceitar alguém a filmar lá dentro… quando liam a coisa da ocupação, da autogestão, diziam logo que não”.
Pedro Pinho, realizador

Tudo isso acontece quando o universo da fábrica também passa a ser o mundo real ou integra o espectador de formas subtis. Seja através da inclusão de uma entrevista que foi feita na altura do casting, que corre com uma fluência alarmante, real, protegida contra qualquer ideia de reportagem televisiva ou carácter gratuito. Ou quando o filme salta para um concerto da banda da personagem interpretada por José Smith Vargas, é uma cena que traz a normalidade à vida de operários, uma existência além de uma fábrica sem máquinas, uma sensação de que pode haver um futuro para algumas daquelas pessoas e a sugestão de redefinição. Melhor, a destruição da ideia de que o trabalho, ou o emprego, definem e cercam a existência de um indivíduo.

O concerto é inclusivo e é uma forma do mundo real entrar na ficção: “Quando estávamos a pensar no filme queríamos que isso acontecesse, que houvesse um prolongamento do nosso ambiente, do nosso universo, da nossa história, com a história dos operários daquelas fábricas. Como se fosse possível juntar os dois universos. Essa cena com o Smith é um bocado isso, um operário de uma fábrica que poderia ser um amigo meu, alguém com quem me relaciono e partilho o meu universo. É uma banda que eu gosto, é um concerto a que eu iria, são os meus amigos, e ao mesmo tempo o vocalista da banda poderia ser o operário de uma fábrica em falência.” Para Pedro Pinho essa foi a forma de “não corrermos o risco de olharmos para uma realidade alheia, por isso tentámos fazer essa fusão”.

7 fotos

Há também uma personagem que joga com a inclusão do espectador, um argentino (Danièle Incalcaterra), que pode ser visto como um sociólogo, um activista, um jornalista, um realizador. Infiltra-se na história com um olhar ambíguo que se transforma no do espectador. Ele quer mudar, conduzir, presenciar os acontecimentos naquela fábrica de elevadores. É um elemento Brechtiano, tal como Pedro Pinho aponta: “Quando estávamos a escrever, ficámos com vontade de nos incluirmos enquanto gesto e observação para aquela realidade, haver um gesto perpendicular à realidade que se introduz no filme. Há ali uma presença, um olhar e uma reflexão e queríamos que isso fosse assumido com uma personagem”.

O realizador Pedro Pinho

A sua inclusão é essencial para expandir “A Fábrica de Nada” para outra dimensão, a ambiguidade do seu papel é central para se pensar no papel do trabalho na atualidade: “Quando nos deparámos com as histórias dos operários durante o casting percebemos que a intensidade e a gravidade da situação era tão forte, tão grande, que não nos poderíamos limitar a contar uma historiazinha. Tínhamos de procurar uma reflexão sobre o momento que estávamos a presenciar e sobre esta questão do fim do trabalho, o facto de imensa gente estar no desemprego. E estávamos no meio, no epicentro desse drama. E percebemos que precisávamos de nos sujar nessa lama, arriscar uma perceção. E foi por isso que introduzimos essa personagem, que não quiséssemos que fosse claramente um realizador de cinema, por isso é que tem um papel ambíguo e não se percebe a mecânica de cinema, não se vê uma câmara de filma nem um microfone”.

O musical

No universo de “A Fábrica de Nada” há ainda espaço para um musical. Acontece no último terço e marca uma possibilidade para a sobrevivência dos operários e das fábricas: entrarem num modelo de autogestão. A inclusão no argumento da ideia de “autogestão” tornou difícil a procura de um local para filmar: “Cada vez que apresentávamos o projeto à administração de uma fábrica, mesmo aquelas que estavam meio paradas e poderiam aceitar alguém a filmar lá dentro… quando liam a coisa da ocupação, da autogestão, diziam logo que não”.

Encontraram finalmente um local, uma fábrica que tinha sido ocupada entre 1974/75 e que estava em autogestão desde essa altura: “Entusiasmaram-se com o nosso projeto e abriram-nos as portas”. E é assim que entram os elevadores na história da fábrica, que Pedro Pinho garante que não foi propositado para que houvesse uma leitura em volta a sugestão da estratificação social. Aconteceu porque “temos o hábito de absorver as coisas que vamos encontrando na realidade e, por isso, achávamos que era bom ser uma fábrica de elevadores. Não houve intenção de oferecer essa leitura”.

"Há um momento que filmámos com algum cuidado, em que eles cantam ‘O prazo é curto, mas eu acho que dá se trabalharmos todos os dias’. Às tantas, a meio do musical, eles percebem, ‘trabalhar todos os dias, como assim?’ Eu acho piada a isso, prolonga o questionamento que o filme sugere.”
Pedro Pinho, realizador

Voltando ao musical. Foi escrito por José Smith Vargas e Pedro Rodrigues. O que acontece poderia ser uma catarse, só que se desenrola com a naturalidade de uma solução. Mas será que é a solução final, o recurso para colocar fim à ideia de “fim do trabalho”? Não, porque a autogestão “é uma solução que gere um grau de compromisso e obrigação quase tão forte e opressivo como a solução de trabalho que eles tinham. Isso tem muita piada no musical. Há um momento que filmámos com algum cuidado, em que eles cantam ‘O prazo é curto, mas eu acho que dá se trabalharmos todos os dias’. Às tantas, a meio do musical, eles percebem, ‘trabalhar todos os dias, como assim?’ Eu acho piada a isso, prolonga o questionamento que o filme sugere”.

Afinal, o que é “A Fábrica de Nada”? Um esforço coletivo sobre um esforço coletivo? Uma reflexão sobre o trabalho e como nos define, enquanto indivíduos, na atualidade? É isso tudo, mas não oferece respostas: não o poderia fazer. É cinema em movimento com o presente, com o poder de mostrar a ficção em tons mais claros do que a realidade. Parte da impotência e torna-se numa ferramenta para vencer o conceito que cria, para o espectador desbloquear o medo do nada. O cinema é o motor, Pedro Pinho e a sua equipa operaram-no com mestria.

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