É uma história célebre: nas eleições presidenciais americanas de 1960, John F. Kennedy e Richard Nixon participaram num debate e deu-se um fenómeno estranho — quem viu o frente a frente na televisão achou que Kennedy tinha ganho; e quem o ouviu na rádio achou que o vencedor tinha sido Nixon.
Será assim tão diferente ver um debate sem som ou, ao contrário, ouvir um debate sem imagem? Não se angustiem mais: nós temos a resposta. Depois de o New York Times ter experimentado a primeira variação, fizemos a experiência completa no debate desta madrugada entre Hillary Clinton e Donald Trump. E está aqui o resultado.
Rita Ferreira. Vi a imagem mas não ouvi o som — e acho que Hillary ganhou
[O debate sem som]
Tirar o som da televisão — são duas da manhã, é hora de estar tudo em silêncio, de facto — fechar o Twitter, nem pensar ir ao Facebook e desligar as notificações dos jornais norte-americanos, não vá o diabo (ou Trump, ou Hillary) tecê-las em forma de palavra.
PALAVRA — unidade linguística com um significado, que pertence a uma classe gramatical, e corresponde na fala a um som ou conjunto de sons e na escrita a um sinal ou conjunto de sinais gráficos — é o que eu não tenho durante a próxima hora e meia.
O desafio é esse: assistir ao debate sem ouvir o que dizem os candidatos e tirar conclusões. A primeira é logo que continuam sem se cumprimentar. Aconteceu no início do primeiro debate, apertaram a mão, e nunca mais tal coisa se viu. Ela entra sorridente, ele nem por isso. Tudo normal, portanto.
Trump tem dificuldade em estar quieto. Ajeita o microfone umas três vezes antes de ter a oportunidade de começar a falar. É Hillary que abre o debate, cara séria mas aparentemente assertiva. Estou a ver a emissão da CNN e por isso o meu ecrã divide-se ao meio, um candidato de cada lado, num plano bastante apertado. Não se vê especialmente bem os gestos que fazem com as mãos, mas em contrapartida estamos sempre a seguir todas as reações dos candidatos.
E aqui está a primeira grande diferença entre os dois. Quando Hillary fala, Trump raramente vira a cabeça para olhar para ela. Ora olha para a frente, ora olha para baixo e de vez em quando olha de esguelha para a adversária. Problema: por vezes é difícil perceber para onde está ele a olhar, exatamente porque tem sempre o sobrolho franzido e os olhos ficam pequeninos. Mas provavelmente Trump viu o novo programa do Channel4 sobre análise facial e linguagem corporal, onde a especialista frisa várias vezes que quanto menor a distância entre as sobrancelhas e os olhos, mais competente parece o político. A mim parece-me apenas um pouco vesgo.
Hillary, por seu turno, olha bastante para o adversário e, por agora, — o debate ainda vai no início — não fez aquele sorriso meio amarelo, meio forçado, meio paternalista que costuma surgir quando ela, discordando do que diz Trump, quer ao mesmo tempo menorizá-lo e dar a entender que o que ele diz é um ‘perfeito disparate!’. É um género de cara de tia velha que, ao ver a menina aos saltos e a assobiar pela casa suspira e diz “Vá, deixe-se dessas rebeldias que isso passa”.
Ainda não fez, mas vai fazer. Várias vezes.
Não sei agora de que falam, mas o debate parece estar a aquecer. Hillary abre muito os olhos, estica o pescoço e fala de forma enérgica. Parece que está a defender-se de um ataque e que a defesa resulta. Ela disse “Donald”, eu vi, e fez um gesto com a mão como que a varrer o ar para a sua direita.
E eis que sai Donald Trump para o ataque. De tal forma, que Hillary parece pedir a intervenção do jornalista: abre os olhos, sobe muito as sobrancelhas e aposto que lá dentro da cabeça dela há uma voz que diz: “Então, meu? Não tens mão nisto?”. Passaram vinte minutos, Trump já bebeu água várias vezes, Hillary nada.
Mas não tarda, a candidata democrata vai começar a suar. Ah, o suor, esse grande definidor do vencedor das eleições norte-americanas. É agora que eu relembro aqui a história do célebre debate entre John F. Kennedy e Richard Nixon — quem ouviu na rádio achou que Nixon tinha ganho, quem viu na TV achou o contrário; principalmente porque a imagem de Nixon, a suar do lábio superior e com uns esgares um pouco estranhos, lhe era muito desfavorável.
Hillary está a transpirar um pouco — tenta limpar o suor entre o nariz e o lábio com a mão, discretamente — mas não bebe água. Por isso também está constantemente a mexer os lábios, ajeitando o baton, sempre que não está a falar. Mas que ideia, porque não bebe ela água? Todos os comuns mortais o fazem…
Decido mudar de canal para ver como estão de corpo inteiro, apanhando assim os gestos que fazem com as mãos. Hillary Clinton tem tentado controlar a sua mania de passar o tempo de dedo apontado — e se nos fixarmos na sua mão direita podemos realmente ver a forma como ela tenta evitá-lo. Começa com Hillary a esticar o dedo indicador, mas num segundo, talvez menos, junta-lhe o polegar. Faz isto dezenas de vezes. Apontar é feio, senhora candidata. Salva-se o facto de não ter os dedos do Santana Lopes, que além de apontar constantemente ainda abanava o indicador, parecendo que algo de mau ia acontecer ali entre a falanginha e a falangeta.
Bom, agora estão os dois aos gritos. De repente começaram aos gritos, acho eu, que não tenho som. Mas foi uma altercação breve. Adiante.
Trump tem uma vantagem clara neste debate, mas peca sempre por excesso, o que o deixa um pouco, digamos, mal colocado para o vencer. O homem gesticula que se farta e o que faz ele com as mãos? Corta coisas, ergue outras, todos os gestos dão a sensação de que ele quer de facto acabar com algo e construir outra coisa nova. E grande. Todos os gestos, quando usa as duas mãos, são de dentro para fora: vamos fazer coisas grandes; vamos alargar o nosso raio de ação; lá está, vamos fazer a América grande outra vez.
Por outro lado, dá a sensação de que está constantemente às voltas com o discurso. Se ela parece sempre ter um princípio, um meio e um fim nas suas intervenções, ele não. Ou seja, claramente ela tem um discurso mais preparado e estudado, ele anda mais ao sabor da intuição e do impulso.
O que chateia nela: o tal sorrisinho. Já o fez uma e outra e outra vez. Trump está a ficar irritado, isso nota-se, e parece que neste debate, tal como no primeiro, o passar do tempo dá trunfos à democrata. Creio que o assunto “Trump e as mulheres” está a ser falado, porque Hillary faz uma cara de anteontem, está muito, mas muito circunspecta e de repente vejo nos lábios dele: “I didn’t say that”. OK, falam das mulheres.
Neste ponto, Trump está muito irritado e o debate segue com o republicano a interromper e a falar por cima de Hillary, que insiste em não beber água. Mas se calhar agora não dava mesmo jeito, porque Clinton agarrou e, do que eu vejo na minha televisão, deu-lhe um género de estocada final. O que foi que eles disseram? Alguém me conta?
Já estou à espera de ver como cada um vai comportar-se quando o debate terminar. Na declaração final Hillary mostra-se serena, esboça um pequeno sorriso — desta vez parece sincero — e fala diretamente para a câmara de televisão. Já Trump continua a refilar e fala olhando para o jornalista.
Acabou! É agora. E é mesmo. A forma como cada um sai de trás do púlpito mostra bem o que os separa: Clinton sai primeiro, avança sorridente, cumprimenta o jornalista, desce as escadas e vai ter com a família e apoiantes. Fica por ali, toda sorrisos, mais umas selfies e uns apertos de mão. E onde está Trump? Esperou que Hillary descesse (pôs-se a arrumar papéis), cumprimentou o jornalista e ficou ali, de pé, no palco, a olhar para um lado e para o outro, até que a mulher subiu as escadas e foi ter com ele, apertaram a mão discretamente e depois veio a família atrás.
Quem ganhou? Ganhou Hillary, pelo facto de ser claramente mais calma, mais ponderada, dar a sensação de que sabe do que fala, embora também se perceba que não sairá dali grande coisa nova, grande rasgo. O excessivo paternalismo naquele sorriso deixa no ar uma desconfortável sensação de que na cabeça dela há algo que diz: deixem lá isto comigo porque eu é que sei, OK? E isso não é agradável.
Mas do outro lado há Trump. E Trump passa tudo menos a imagem de uma pessoa confiável e equilibrada. Se nunca tivesse ouvido as ideias dele, diria que ele tem muitas, que quer fazer muitas coisas, mas, mesmo que a minha televisão esteja sem som, não consigo abstrair-me ao ponto de sequer poder considerar que, por um segundo, as ideias são boas. E, de facto, imaginar o homem na Casa Branca a gritar e a gesticular com toda a gente e a mandar vir com russos, chineses, muçulmanos, mexicanos, imigrantes e humanidade em geral, não me anima e assusta-me sobremaneira. Portanto, mesmo sem ouvir o que ele disse, Trump nem teve hipótese frente a Hillary. He was grabbed by the body language.
Miguel Pinheiro. Ouvi o som mas não vi a imagem — e acho que Hillary ganhou
[O debate sem imagens]
Finalmente. Fi-nal-men-te. Depois de assistir a dois debates presidenciais, pude finalmente acompanhar o terceiro frente a frente entre Donald Trump e Hillary Clinton sem ter que estar a fixar os olhos, de forma perigosamente hipnotizante, naquele cabelo. (Porque é que estão a olhar para mim dessa maneira? Se Trump pode julgar o resto da humanidade pela aparência física, porque é que é que eu não posso fazer o mesmo?)
A combinação era muito simples — e muito complicada. Eu ia acompanhar o debate desta madrugada a ouvir o som mas sem ver as imagens, para no fim decidir quem ganhou (enquanto a Rita Ferreira fazia o contrário). Como não encontrei uma venda para os olhos em casa às duas da manhã, concentrei-me na parede da sala e, durante 1h32m08s, fiquei a ver a tinta secar.
Eu já sabia o que me esperava quando Trump começou a falar — esperava-me uma complexidade linguística semelhante à de um aluno da escola primária. Como podem ver no vídeo em baixo, houve alguém que se deu ao trabalho de estudar a forma como o candidato republicano constrói o seu discurso. Pegou numa declaração de 220 palavras, feita durante uma entrevista, e percebeu, com algum espanto e muito horror, que 172 dessas palavras tinham apenas uma sílaba; 39 tinham duas sílabas; quatro tinham três sílabas (na realidade, eram só duas palavras, tendo em conta que uma delas, “tremendo”, era repetida três vezes); e apenas duas tinham (loucura das loucuras) quatro sílabas.
Mesmo assim, a primeira resposta de Trump no debate, sobre a nomeação de juízes para o Supremo Tribunal, deixou-me perplexo. Não podendo distrair-me com a cor da gravata dele, tive mesmo que ouvir as palavras. O candidato republicano avança e pára logo a seguir, lembra-se de coisas a meio das frases, atira palavras sem contexto como quem atira um dado em Las Vegas. Um exemplo: “O nosso país é muito, é muito importante que tenhamos os juízes certos.” (A vírgula separa dois elementos da frase que não têm a menor relação um com o outro e, pelo meio, a coerência, coitadinha, fica irremediavelmente perdida.) Outro exemplo: “Sinto que os juízes que eu vou nomear — e já dei mais de 20 nomes.” (A primeira parte da frase não termina e a segunda não começa, tendo a uni-las apenas uma cabeça confusa.)
Toda esta amálgama é ainda mais perturbadora porque, segundos antes, Hillary Clinton tinha conseguido dar a sua resposta como se fosse um adulto.
A parte seguinte do debate, sobre o aborto em fases mais avançadas da gravidez, foi ainda mais complicada de seguir porque aí entraram as emoções. Neste tema, nenhum dos dois candidatos se limita a “apoiar” algo — eles “apoiam” sempre “fortemente” tudo em que acreditam. Trump trouxe consigo os Quatro Cavaleiros do Apocalipse para descrever aquilo que diz ser a posição da adversária: “Acho terrível se concordarem com o que a Hillary está a dizer no nono mês podem pegar no bebé e arrancar o bebé do útero da mãe mesmo antes do nascimento do bebé” (desculpem, a construção da frase é dele e não minha).
A democrata irritou-se. Não vi nenhum esgar na sua cara, mas percebi isso pela forma como soletrou a frase “Eu não acho que deva ser o governo a tomar essa decisão”, que me soou mais como algo assim: “Eu”, “não”, “ac”, “ho”, “que”, “de”, “va”, “ser”, “o”, “go”, “ver”, “no”, “a”, “to”, “mar”, “es”, “sa”, “de”, “ci”, “são”.
Uma das estratégias de Donald Trump é repetir palavras, matraqueando-as até que elas nos entrem na cabeça e fiquem a parecer uma poesia de Bob Dylan. Ao falar da necessidade de conter a imigração, disse a palavra “muro” três vezes em pouquíssimos segundos: “Eu quero construir o muro. Nós precisamos do muro, os guardas fronteiriços querem o muro.” Muro, muro, muro. Além disso, Trump tem palavras-fétiche. A principal (como já se referia no vídeo em cima) é “tremendo” — ele usou-a oito vezes durante o debate desta madrugada e três dessas vezes foram numa só resposta. “Vou criar empregos tremendos”, “Temos uma máquina económica tremenda”, “Um tremendo número de pessoas”, e por aí adiante.
Estava eu embrenhado nestes pensamentos profundos quando, de repente, apanhei um susto “tremendo”. Uma voz feminina começou a responder a uma pergunta sobre economia e disse: “Vamos atrás do dinheiro onde ele estiver. Os ricos vão pagar a sua parte”. Santo Deus, não fazia ideia que a Mariana Mortágua ia participar no debate. Nem sabia que a deputada do Bloco falava inglês com uma pronúncia tão impecável. Ainda por cima, voltou alguns minutos depois e repetiu: “Vamos atrás do dinheiro onde ele estiver”. Estranho.
Hillary Clinton sempre teve um problema com a voz. Algumas pessoas acham que tem uma voz demasiado irritante (Bob Woodward, o jornalista que cobriu o Watergate, escreveu há uns meses que “ela grita”); outros acham-na demasiado “polida” e “neutra”. Naturalmente, Trump já aproveitou para escrever num tweet que Hillary tem um “very average scream!”.
Crooked Hillary Clinton made up facts about me, and "forgot" to mention the many problems of our country, in her very average scream!
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) July 29, 2016
Nisso, Trump é mais eficaz. Um especialista no assunto estudou a forma como o republicano usa a voz e concluiu que ele consegue mobilizar os seus apoiantes com variações de tom e ênfase. Tem a voz perfeita para a mensagem que tenta passar. O que aconteceria se ele dissesse o que diz com um sotaque “sofisticado”, “aristocrático” e “british“? Como pode ver neste vídeo, não jogaria uma coisa com a outra:
https://www.youtube.com/watch?v=qUGT30gGtiI
No final do debate, o moderador pediu aos candidatos que usassem um minuto para tentar convencer os eleitores a votarem neles. É o tipo de pergunta que me faz sempre sair da sala porque já sei que vem aí uma tonelada de lugares-comuns. Mas, desta vez, tive mesmo que ouvir as respostas. Hillary usou as palavras “todos”, “melhor”, “crescer”, “justo”, “talento”, “energia”, “ambição”, “trabalho”. Trump usou as palavras “ilegal”, “desrespeitado”, “lei”, “ordem”, “desastre”, “forte”.
Para mim, foi suficiente. Se quiser decidir quem ganhou o debate, nem preciso de me lembrar das frases de Trump que tornarão este frente a frente famoso — “She’s a nasty woman“, sobre Hillary; e “Vou deixar-vos em suspense, OK?”, sobre se aceitará o resultado das eleições. Eu, que só ouvi o som e não vi as imagens, acho que foi Hillary Clinton quem ganhou — e acho que só alguém muito, muito zangado com o mundo pode achar o contrário.