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Andreia Reisinho Costa

Andreia Reisinho Costa

Quando elas são violadas pelos maridos, o futuro fica em pedaços

AVISO

Este artigo contém linguagem e descrições que podem ferir a sensibilidade dos leitores

Há mais violações cometidas por próximos do que por desconhecidos. Muitos são companheiros que veem o sexo como dever do casal. Onde está a fronteira? Como se recupera?

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É uma luta desigual. Teresa quer esquecer a data, mas o cérebro grita “23 de julho de 2014” quando parece que a tranquilidade chegou. O cérebro não se cansa. Grita várias vezes, de dia e à noite. Sobretudo à noite. O fim daquele episódio deu-se já na manhã seguinte, no hospital, com Teresa a fazer os exames periciais para provar aos outros o que tinha acabado de lhe acontecer. Um cotonete na boca, outro na vagina, outro no ânus. Para recolher amostras de espermatozoides. Teresa tinha sido violada pelo namorado.

A mulher de 36 anos é uma entre muitas. Todos os dados repetem o mesmo: há mais vítimas de violação por pessoas próximas do que por desconhecidos. No primeiro caso, o agressor é muitas vezes o namorado ou o marido. O que é que fica depois de isso acontecer? Como é que se recupera?

Quando o violador dorme ao lado

Teresa conheceu Pedro no site Badoo e ele viria a ser o seu primeiro grande amor. Nunca tinha estado com mais ninguém. Começaram por trocar mensagens e passaram para as fotos: “Vi as fotografias e fiquei deslumbrada. Ele é muito bonito”, diz Teresa ao Observador. Ele do Norte, ela de Lisboa; ele apressou-se a ir ter com ela. O encontro cara a cara consumou o namoro.

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Meses depois já estavam a viver juntos. Pelo meio, Teresa conheceu a irmã de Pedro, prova de que a coisa era séria. Mas as discussões começaram pouco depois. Teresa queria mais. “Ele nunca saía comigo. Nem me dava a mão na rua, nem um beijinho, nada”. Ela confrontou-o, ele não gostou — e respondeu com uma estalada. Depois dessa discussão saiu de casa e saiu também da vida dela, sem avisar. Assim se manteve durante três anos.

Testemunho_Teresa_maosDadas

Teresa tentou o contacto mas acabou por aceitar a separação forçada. Mudou de casa, arranjou trabalho, tentou seguir com a vida. Até que, três anos depois, Pedro falou com Teresa no Facebook. “Ele disse-me que as minhas atitudes eram muito infantis, mas eu disse-lhe que ainda gostava dele e que estava mudada”. Continuaram a falar, voltaram a namorar e Pedro foi viver com Teresa para casa dela.

A história continua com algumas estaladas, várias loiças partidas, um ou outro soco. Agressões pontuais, sublinha. E arrepende-se, de olhos na mesa branca: “Uma vez até respondi com um soco na barriga”. A história segue com Teresa a sentir-se desprezada e triste; e a querer mais apoio e mais carinho. “Ele nunca estava comigo, eu ia trabalhar e ele chateava-se porque dizia que eu gastava muito dinheiro… Mas ele não trabalhava e passava o dia a dormir. Fizemos mudanças em casa e ele nunca me ajudou”.

Parecia ter todos os sinais para não esperar nada de bom dali, mas havia um problema: gostava dele. Pedro dizia a Teresa que ela era “feia”, coisa que repetia algumas vezes. Chamava-lhe “elefante”. Mas Teresa continuava a gostar dele: “Pensava que as coisas iam mudar. Nós apaixonámo-nos”.

"Quando queria fazer algo comigo, deixava escrito num papel a avisar. Não dizia mais nada. Eu fazia, porque pensava que íamos fazer as pazes. Mas era só para satisfazer a vontade dele…"
Teresa, 36 anos

A partir de determinada altura, dormir com ela era para ele um sacrifício. “Muitas vezes, ele saía da cama e ia dormir para a sala. Então, comecei a ir eu para a sala para ele ficar no quarto”, justifica.

Não dormiam juntos, mas havia sexo. Quando ele ordenava que assim fosse. “Quando queria fazer algo comigo, mandava-me uma mensagem para o telemóvel ou deixava escrito num papel a avisar. Não dizia mais nada. Eu fazia, porque pensava que íamos fazer as pazes. Mas não. Era só para satisfazer a vontade dele…”

A vontade dela foi desaparecendo. Habituou-se ao sofá e começou a desejar ficar sempre ali, no seu canto. O ambiente cada vez pior, ela a mostrar que já não havia desejo, ele sem querer saber. “Quando a cabeça e o coração não estão bem, a outra parte também não funciona…” diz. De novo de olhos enterrados na mesa. E chegamos a 23 de julho. Teresa mexe-se um pouco na cadeira, como se estivesse a expulsar as sensações daquele dia. Passaram meses, dois anos, mas aqueles minutos ainda estão lá.

Era verão e Teresa dormia com pouca roupa.
Ela dormia no sofá da sala e ele dormia no quarto.
Teresa acordou com o namorado nu, colado a ela, a forçá-la a ter relações sexuais.
Várias vezes.

Testemunho_Teresa_sofa violação

Teresa não queria, Pedro não quis saber. Depois da agressão, vestiu-se. Teresa ficou no sofá, imóvel. “Só consegui perguntar-lhe porque é que me tinha feito uma coisa daquelas…” Ele respondeu: “Eu? Eu não fiz nada. Tu quiseste que eu fizesse”. E saiu de casa.

Passado uns minutos, Teresa cobriu-se e foi bater à porta da vizinha, amiga dela e já habituada às discussões no andar de cima. Eram 2h da manhã. Juntas, perceberam que era preciso ir à polícia. Teresa fez a chamada. “Disse-lhes que tinha sido violada pelo meu próprio companheiro”. Os agentes foram ter com ela. “Custou-me muito, mas tive de contar os pormenores todos…”.

Os polícias, a quem está agradecida até hoje, levaram-na para o hospital. Lá, fez o “corpo de delito” — que consiste na recolha do conjunto dos vestígios materiais resultantes da prática criminosa. São colocados cotonetes em várias zonas do corpo, sobretudo nas que tenham estado em contacto com os órgãos sexuais do autor da agressão. Os invisíveis espermatozoides vão depois provar o que ninguém viu. Teresa tinha também fortes marcas nos braços e nas pernas, de tentativas de resistência. Depois, ficou até de manhã a prestar declarações para abertura de inquérito.

"Naquela sala só estava eu e ele. Não estava mais ninguém. Estava eu, ele e Deus"
Teresa, 36 anos

A “estratégia de isolamento”

Em regra, o autor da agressão não é um estranho. No caso de crianças e jovens, a maioria dos abusos sexuais são cometidos por familiares, como pais, avós ou tios, ou por amigos da família ou conhecidos da zona de residência. Quando as vítimas são adultas, muitas são abusadas pelos companheiros. A chamada “violação de rua” fortuita não é tão comum.

Os dados são sublinhados pela Associação de Apoio à Vítima (APAV) e pela Associação de Mulheres contra a Violência (AMCV). Esta criou o primeiro gabinete de apoio a vítimas de violação em Portugal, um projeto em parceria com a Direção Geral de Saúde, o Instituto Nacional de Medicina Legal e a Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres.

O padrão confirma-se pelos números da Polícia Judiciária. Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna de 2015, 92,7% das vítimas eram do sexo feminino e 7,3% do sexo masculino. A maioria delas tinha entre 21 e 30 anos, seguindo-se as vítimas entre os 16 e os 18 anos. Em mais de 50% dos casos, existia uma relação de proximidade entre agressor e vítima (conhecidos da zona de residência, do trabalho, amigos, colegas, namorados) ou familiares (maridos, pais, avós).

“A maior parte das violações são cometidas por alguém muito próximo, numa relação íntima e na família, porque essa pessoa domina mais o contexto da vítima e isso facilita o seu poder“, aponta Rita Mira, uma das responsáveis pelo projeto “Novos desafios no combate à violência sexual” da AMCV.

Um marido agressor sabe as rotinas da mulher, sabe quais são os espaços que frequenta, sabe os horários dos filhos e como os fintar. “O agressor premedita o crime, estuda quando o pode fazer, e é isso que lhe dá a oportunidade de atacar. Estuda a que horas não está ninguém em casa e quanto tempo demoram a voltar, por exemplo”, explica a presidente da associação. É também desenhada uma “estratégia de isolamento” dessa pessoa para que ela fique “frágil e desprotegida”, acrescenta. Mas Margarida Medina Martins há-de ressalvar várias vezes que a ação está sempre do lado dos agressores: “São eles que fazem a estratégia. E é isso que lhe dá a oportunidade de atacar. É o contexto do agressor que condiciona o assalto e não as características da vítima”.

Na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, quer queiram quer não?

Dos 45 anos de Carolina, 20 deles foram passados com Manuel. Foi a primeira, e a única, relação da vida dela. “Por onde é que quer começar?”, pergunta, quando lhe pedimos para contar a sua história. Carolina saiu da espiral há cinco anos. A violência sexual era (apenas) um tópico da lista que incluía agressões físicas, tortura psicológica e uma tentativa de homicídio.

Primeiro, o controlo. Carolina não podia distrair-se e dar um qualquer sinal que pudesse ser depois mal interpretado. “Quando íamos no carro, eu tinha de olhar sempre em frente, não podia olhar nem para a esquerda nem para a direita, senão ele dizia logo que eu estava a olhar para os homens que passavam…”, lembra.

Para ela, o verdadeiro marco do início da violência aconteceu na segunda gravidez. Foram comprar umas calças de grávida, cor branco pérola, que Manuel aprovou. “Até experimentei à frente dele. Ele gostou e comprámos”. Mas, em casa, as coisas mudaram. “Virou-se para mim e disse: ‘Afinal não quero que vistas, é muito transparente, fica-te muito justo às pernas'”. Carolina não percebeu a mudança radical de opinião. Manuel pegou nas calças e rasgou-as com as mãos.

"Às vezes tentava bater-me quando eu não queria ter relações sexuais. Mas como é que eu podia querer ter relações com ele com as coisas assim... Não é?"
Carolina, 45 anos

Aquelas calças foram só as primeiras de muitas. Pedro rasgou outras peças de roupa e chumbou escolhas de vestuário. Mandava-a para trás, como um prato no restaurante que não está ao agrado do cliente. Maquilhagem, nem vê-la. “Ele dizia que o que eu queria era mostrar-me aos homens”, recorda. Caso houvesse dúvidas, Pedro lembrava que tinha poder sobre ela: “Dizia-me várias vezes: ‘És minha, tens de fazer o que eu quero, tu és minha mulher'”.

Testemunho_carolina_vestido violação

Manuel bebia bastante e o álcool era a desculpa para as estaladas — e daí passou a ser a desculpa para toda a violência. “Eu estava a dormir e ele acordava-me porque queria ter relações. Às vezes eu até fingia que estava a dormir… Mas tinha de ser quando ele queria. Ele dizia: ‘Tens de fazer, és minha mulher’, e outras coisas piores. Estava perdido de bêbedo e fazia muita tortura psicológica. Eu dizia que não queria, que queria dormir. Como é que eu era capaz de fazer alguma coisa com ele assim?“.

Não interessava o que ela queria, interessava o que ele queria. Algumas vezes deu para escapar. “Cheguei a conseguir fugir, ou para o quarto da minha mãe (que vivia comigo) ou para o quarto das minhas filhas. Outras vezes, a minha filha do meio ouvia a discussão e punha-se entre nós os dois. Normalmente, nós mães é que protegemos os filhos, mas aqui os papéis inverteram-se…”

Por estar casada com ele, era obrigada a fazer isso com ele? Acho que não”

Mas, na maioria das vezes, era só Carolina e Manuel. Se Carolina não respondia aos avanços sexuais de Manuel, ele atacava-a. “Chamava-me nomes, dizia-me: ‘Tu não prestas, não vales nada, escondes-te ao marido na cama mas queres andar a mostrar-te na rua’.”

Carolina não identifica um episódio específico em que tenha sido violada. Identifica quatro anos, os últimos da relação, de violência sexual. “Eu cedia. Chegámos a estar a fazer e eu estar a chorar. Era horrível. Sentia nojo dele”. Então, porque é que aceitava? “Para ele não me massacrar mais. Eu ia perdoando porque ele pedia desculpa e dizia que não podia viver sem mim e que eu era a mulher da vida dele”.

Coação sexual

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Forçar ou pressionar atos sexuais, usando a força física, intimidação psicológica, ameaças (de violência física, de insinuações na zona de residência ou de despedimento no emprego, por exemplo), entre outros.

Organização Mundial de Saúde

Afinal, onde está a fronteira numa relação? Segundo várias organizações internacionais, a resposta chama-se “consentimento”. Para a Organização Mundial de Saúde, violência sexual corresponde a “qualquer ato sexual indesejado, como uma tentativa de obter um ato sexual, comentários ou aproximações sexuais indesejadas, ou outros atos que prejudiquem a sexualidade de uma pessoa usando a coação sexual (ver caixa), em qualquer cenário, independentemente de quem comete e da relação que tenha com a vítima”.

O Parlamento Europeu recomenda que sejam incluídos na legislação todos os pressupostos que prejudiquem “a liberdade e a capacidade de consentir”. A ONU sugere alguns deles, como consumar um ato sexual com uma pessoa que não esteja em condições de o consentir, como no caso de estar doente, ser portadora de deficiência, estar sob pressão ou sob a influência de álcool ou drogas. Na Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres e Violência Doméstica, adotada em Istambul em 2011, ficou definido que há violência sexual quando são cometidos atos sem consentimento, incluindo com antigas e atuais companheiras.

Puxar uma mulher na rua e forçá-la a ter relações sexuais é entendido por todos como violação. Mas, e num casamento? Onde é que acabam as cedências e começa a violência sexual? A fronteira é mais difícil de definir porque, à partida, já houve relações sexuais uma, duas, 20 ou 100 vezes entre o casal. Porque é que, à 101.ª vez, a mulher decide que não quer?

Isabel Ventura, investigadora na área de crimes sexuais e justiça, responde a estas questões com um exemplo: “Imagine que eu lhe pergunto assim: ‘Catarina, precisava que me emprestasse 5 euros. Posso ir à sua carteira buscar?’ E a Catarina responde: ‘Claro, Isabel. Força’. E eu vou. Isso permite-me ir à sua carteira buscar 5 euros sempre que me apetecer? Não. A Catarina autorizou-me só daquela vez. Para as próximas, preciso do seu ‘sim’ novamente”.

É aqui que está a raiz da questão, aponta Isabel Ventura. “Neste exemplo estamos a falar de propriedade, mas a ideia é a mesma. Pelo facto de uma pessoa permitir por uma vez ter relações sexuais, não quer dizer que permita sempre. É preciso que seja constantemente permitido, que o consentimento seja constantemente renovado”, reforça.

"Atos sexuais forçados no casamento ainda é um conceito estranho porque o casamento ainda serve um dos princípios prioritários na vida, que é a reprodução. É violação ou é 'dever'?"
Isabel Ventura, investigadora na área dos crimes sexuais

A coação sexual vê-se bastante no dia-a-dia de alguns casais, salienta a investigadora. “Por exemplo, uma insistência constante para fazer sexo anal ou uma outra prática. O outro elemento não quer, mas o primeiro insiste: ‘As outras fazem’, ‘a minha ex-namorada fazia’, ‘vais ver que não dói’. E quando acontece, nós não chamamos violação. Mas sabemos que não nos sentimos bem e que não queríamos”.

A autora da tese de doutoramento “Medusa no Palácio da Justiça: Imagens sobre mulheres, sexualidade e violência a partir dos discursos e práticas judiciais” refere-se a “uma série de atos que não chamamos de violência” mas que constituem “pressão ou intimidação” e que, por isso, se denominam de coação sexual. “Nós romantizamos aquilo, como se aquela pressão constante fosse amor. Porque sentimos que há algo de errado connosco, porque queremos querer. E assim a vítima vai sofrendo processos de erosão”, remata.

Questionada sobre esta “naturalização” da pressão na vida sexual, que pode degenerar em violência sexual e violação, a presidente da AMCV lembra-se sobretudo das mulheres mais velhas. “Muitas foram educadas para pensar que tudo o que acontecesse na intimidade sexual do casal estava certo. Estava casada, era suposto ter relações sexuais quando ele quisesse. Isto acontece nas gerações muito antigas mas também em algumas mais jovens. Em nome da família, do amor. É muito assim: ‘Aconteceu, mas já aconteceu a 500 milhões de mulheres, o tempo apaga, a tua avó também passou por isso’“, ilustra. “Há uma presunção da disponibilidade sexual da mulher”, acrescenta Rita Mira.

Quem é que pode ser vítima de uma violação?

Qualquer pessoa pode ser vítima. O padrão correspondente a uma mulher frágil, pobre, com um passado de abusos e com pouca escolaridade é um mito, sublinham todas as partes ouvidas pelo Observador. “A ideia de vítima ainda é de uma pessoa passiva, silenciosa, sem capacidade de reagir. Uma pessoa mais proativa não se enquadra naquilo que nós esperamos de uma vítima. Não é submissa, não é incapaz. Mas isso é um erro de perceção”, alerta Rita Mira, que, por lidar com vítimas de violação da AMCV, revela ainda: “Nós recebemos sobreviventes de todas as idades, estratos sociais, etnias e orientações sexuais”. Rita refere-se muitas vezes a elas como “sobreviventes”. Prefere aquele termo a “vítimas” e corrige-se a si própria.

375

Em 2015, foram registadas 375 queixas por violação em Portugal. Em média, é mais do que uma por dia.

Relatório Anual de Segurança Interna de 2015

Poucos esperam que uma mulher bem-sucedida, intelectual e rica seja vítima. Nem ela própria. Estudou, tem cultura, é forte. Mas acontece. “As mulheres com mais escolaridade culpabilizam-se bastante. Por terem acesso a informação e por terem noção que, à partida, teriam mais competências para perceber sinais. E acabam por se penalizar por isso não ter acontecido, por não terem ‘percebido’. Isto no contexto das relações de intimidade. Ficam surpresas: ‘Como é que eu não vi?'”, explica Rita Mira. É como se a vítima estivesse numa “teia” que lhe tira a capacidade de “análise objetiva”, reforça.

Testemunho_Julgamento violações

As provas e a queixa. Fazer ou não fazer?

Se a vítima quiser apresentar queixa-crime, é aconselhável preservar os vestígios para fazer prova em tribunal. Esses vestígios são recolhidos no Instituto de Medicina Legal e em alguns hospitais (que tenham os mecanismos necessários), através do exame médico-legal, que pode ser realizado até 72 horas após o ato. Três dias.

Até fazer o exame, a vítima deve permanecer tal como ficou. O mais imóvel possível. E isso implica evitar comer, beber (nem que seja água), ir à casa de banho, lavar os dentes, fumar e tomar banho. Não se deve trocar de roupa ou tocar no próprio corpo, nem sequer limpar o local onde ocorreu a agressão — por exemplo, pôr lençóis para lavar ou limpar determinadas manchas. Registos da pele, da saliva, do sangue, do sémen ou dos pelos do agressor podem estar ainda no corpo da vítima e no local do ato. Tudo isso fez parte do crime, e tudo isso pode ser parte da resolução.

Exames

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A vítima pode fazer análises e medicação preventiva para eventuais infeções sexualmente transmissíveis, como antirretrovirais para o VIH/SIDA. Pode solicitar a pílula do dia seguinte e testes para comprovar que foi drogada.

Mas seguir essas recomendações não é obrigatório. No “Guia para Sobreviventes”, criado no âmbito daquele projeto e dirigido a raparigas e mulheres a partir dos 16 anos, sublinha-se que a vítima pode só receber tratamento médico e escolher não fazer o exame médico-legal. Nem fazer queixa. Tudo depende da sua vontade.

A queixa junto da polícia, do Ministério Público ou do Instituto Nacional de Medicina Legal é a resposta que o sistema dá a uma vítima de violação. Mas escolher não denunciar o que aconteceu pode ser a atitude mais acertada, diz quem sabe. “Houve uma mulher que nos chegou e estava muito ansiosa com a questão da queixa. Quando decidiu não apresentar, ficou muito mais tranquila. Essa certeza permitiu-lhe retomar o controlo da sua vida. Tomar a decisão fortaleceu-a”, ilustra Rita Mira, mesmo sabendo que a questão é polémica. “Há uma condenação social de quem não faz queixa. Mas nós temos de respeitar. Não devemos impor nada”, justifica.

As vítimas até podem desejar ver o agressor ser punido pela justiça mas o que as assusta é a caminhada até aí. “Há pessoas que têm pavor a fazer queixa porque têm medo de se confrontar novamente com os episódios. Temem que o processo judicial seja um um reviver do sofrimento, um relembrar de tudo. E não há como fugir a isso”, admite. Porque é preciso contar a história várias vezes, descrever todos os pormenores.

Mas se a decisão de não avançar para a justiça ajuda alguns, ver o processo a andar pode ser parte da recuperação de outros, conta Rita Mira. “Nas mulheres que decidem levar o processo para a frente, a condenação é uma coisa importantíssima. É um reconhecimento social de que aquilo que aconteceu foi extremamente grave e que, por isso, aquela pessoa tem de ser punida”.

"Aquela pressão tipo 'as outras fazem', 'a minha ex-namorada fazia' ou 'vais ver que não dói' é coação sexual. Nós até romantizamos esses comentários e, quando acontece, não chamamos violação. Mas sabemos que não queríamos."
Isabel Ventura, investigadora na área dos crimes sexuais

“Se ele se mexia a meio da noite, eu tremia”

Sara deixou aquele episódio para trás quando fugiu de casa de Santarém para Lisboa, mas o que se passou ficou com ela durante muito tempo, sempre que via um homem a aproximar-se. Sara tem hoje 51 anos e tinha 40 quando o deixou, agarrou na filha e apanhou um autocarro para a capital. Não conhecia nada. Tinha apenas um número de ajuda lido numa revista e guardado num papel. Foi para aí que ligou logo que chegou e foi aí que a vida dela mudou.

Na verdade, a história começa aos 14 anos, quando namorou com um rapaz que tinha sido seu colega de escola. Namoraram oito anos, casaram e tiveram dois filhos com alguns anos de diferença. Poucas semanas depois de casarem, começaram as atitudes violentas. “Começou por apertar-me os braços se eu não concordava com alguma coisa que ele dizia. Ficava com marcas dos dedos e das unhas, nódoas negras… Ele não gostava que eu fosse contra as ideias dele”, conta ao Observador.

Testemunho_Sara_braço violações

Roberto também não gostava que ela fosse ao café sozinha, que trabalhasse na função pública porque lidava com muitas pessoas, que falasse muito com a família do lado dela. “Eu não podia ir ao café, tinha que me vestir como ele queria ou como a mãe dele queria, tinha de cortar o cabelo como ele queria. Eu tinha que chegar a casa e mostrar o recibo de vencimento, tinha que pedir autorização até para comprar roupa interior. Nunca fui senhora de mim durante esses anos”. Sara faz uma pausa durante uns segundos, olha para baixo. Está a recordar-se de alguma coisa. “Ele nunca passou o meu dia de anos comigo. Nunca”.

Hoje, a mulher admite que não foi o anel no dedo que despertou a violência: “Já tinha havido indícios no namoro, mas a esperança é sempre a última a morrer e eu pensei que, estando casada, ele ia melhorar”.

Não melhorou. A história de Sara é semelhante a muitas outras: a violência sexual na intimidade surge dentro de um padrão de violência doméstica: posse, intimidação, isolamento, violência física, psicológica e verbal. O controlo do corpo está dentro do controlo das rotinas, do vestuário, das pessoas com quem se relaciona e dos passos que dá: “[O sexo] tinha de ser sempre quando ele queria e eu tinha que estar sempre disposta. Nos últimos anos foi ainda mais difícil. Porque chegamos a um ponto em que temos medo, temos terror daquela pessoa”. Umas vezes cedia, outras resistia e isso custava-lhe “o peito negro de socos”. Houve um dia em que a violação foi consumada.

Passaram 11 anos desde que saiu de casa, mais de 4000 dias, mas Sara ainda se lembra daquele.
Era sábado de manhã, 8h10. “Não gritei. A minha filha estava a dormir e não queria acordá-la. Lembro-me do olhar dele, da expressão dele. Lembro-me de me segurar os pulsos. Ele era uma pessoa forte, tinha mesmo muita força, e eu não consegui fugir debaixo dele. E sabia que, se fugisse, ele agredia-me na mesma…”

Testemunho_Sara_bolo violações

Sara não fala em dores nem em marcas físicas. Fala no ato ‘daquela pessoa’. “Não há palavras… Não há. Nós nunca achamos que o nosso marido nos vai fazer uma coisa destas. Não era uma pessoa que eu tinha conhecido há um mês. Comecei a namorar com ele muito nova, foi o único homem da minha vida. Nunca achamos que o pai dos nosso filhos nos vai fazer isto”.

Depois desse dia, o inferno tornou-se insuportável. “Eu chorava a entrar em casa, tinha pavor de sair do meu local de trabalho. Aquilo era muito duro… Eu gostava muito, muito dele, mas ao mesmo tempo comecei a odiá-lo. Chegou a um ponto que já não me conseguia deitar à mesma hora que ele. Então dava a desculpa que ficava a ver televisão, às vezes até adormecia no sofá, até às 2h e 3h da manhã, algumas com a minha filha, e depois às escuras, com tudo desligado, a tatear pelas paredes, ia para o quarto sem ver nada para que ele não desse por mim. Para não o acordar. Tinha medo de dormir ao pé dele. Uma vez adormeci no sofá e ele foi lá às 3 da manhã aos gritos comigo, que eu tinha era de estar a dormir com ele… Mas eu adormeci ali. O cansaço era muito… Adormeci”.

"A partir daí, a ideia de deitar-me na mesma cama que ele era um terror. Quando ele se mexia a meio da noite, eu tremia. Se se levantava, eu ficava apavorada"
Sara, 51 anos

“Ódio aos homens” e às memórias. Como se recupera?

Quer o ato aconteça uma vez, três vezes, quer seja praticado à saída de uma discoteca ou na cama do casal, a dor não se mede. O que pode haver é “níveis de constrangimento” diferentes, por exemplo, entre violação de rua e violação em contexto de intimidade.

A primeira é, de uma forma geral, episódica e pontual. Aconteceu e morreu. Já a segunda está dentro de uma teia mais difícil de cortar, porque “dificilmente a pessoa resolve um casamento de um dia para o outro um casamento e consegue, de facto, um afastamento físico real daquele agregado ou daquela pessoa com quem está a viver”, explica Margarida Martins. Por outras palavras: “O nível de constrangimento a que está sujeita é mais prolongado, o que dá mais poder ao violador porque, apesar do que fez, mantém-se na zona”.

Testemunhos_Boneca violações

Fora o agressor, a sobrevivente tem de fazer um caminho de recuperação. Seguir com a vida. Pode durar meses ou anos, não há uma fórmula. Regra geral, há uma vontade de virar a vida ao contrário para varrer o/os episódio/os para o lixo.

Se foi uma violação de rua e se aconteceu perto da casa da pessoa, é natural que a vítima tenha uma grande necessidade de mudar de casa. “Mesmo que tenha sido uma coisa com mais probabilidade de ser episódica, a pessoa não se sente em segurança ali”, explica Rita Mira. Há quem venda a casa, o carro, e mude de zona geográfica. Porque o episódio aconteceu perto de casa, ou do trabalho, ou do ginásio onde costumava ir. “Há uma necessidade de fazer mudanças muito grandes na vida porque perdeu o controlo sobre aquelas zonas”, resume a especialista.

Para Teresa, aquela casa já não é um lar. Apesar de o amor já ter um significado diferente. Teresa tem um novo companheiro há quatro meses, o primeiro desde Pedro. “Ele dá-me valor, trata-me muito bem, sai comigo… E dá-me a mão na rua, é muito carinhoso. É honesto, é trabalhador. Ele diz-me ‘eu amo-te’ sem eu pedir. Dá-me um beijo mesmo que eu não esteja à espera… Eu nunca senti o amor que estou a sentir agora”, conta.

Teresa optou por contar ao parceiro o que tinha sofrido. Queria ultrapassar por si, mas as memórias não a deixavam sentir-se tranquila com o namorado. Por isso, abriu o jogo. Ele ficou “em estado de choque”, diz. “Às vezes, quando estamos juntos, lembro-me e vêm-me as lágrimas aos olhos. E às vezes ele também chora comigo”.

Teresa mantém a mesma casa, a mesma sala, o mesmo sofá. Evita dormir lá, prefere dormir agora na casa do namorado, mas de vez em quando tem de regressar, até porque continua a pagar a renda. “É horrível ficar lá. Já tentei mudar o estilo da casa, a ordem das coisas, até já mudei a posição da cama e os objetos da sala… Mas a sala vai estar sempre ali”. Teresa está entusiasmada com o novo amor, mas acautela-se a si própria: “Medo vou ter sempre. O que está cá dentro fica cá dentro. É o orgulho de mulher, é uma ferida de dentro”.

"É horrível estar em casa. Já tentei mudar o estilo da casa, a ordem das coisas, até já mudei a posição da cama e os objetos da sala… Mas a sala vai estar sempre ali".
Teresa, 36 anos

Carolina e Sara nunca mais tiveram nenhum companheiro. No caso de Carolina, já passaram cinco anos desde o fim da relação. Não o suficiente para acreditar noutra pessoa: “É muito cedo. Ainda não deixo ninguém aproximar-se de mim. É muito complicado. Já me convidaram para jantares ou para cafés, mas nego sempre. Tenho medo que essas pessoas possam ter ideias e recuso sempre. Só saio em família, ou em grupo, sinto-me mais protegida. Vai ser muito difícil acreditar… Não sei… Acho que não vai acontecer. A pessoa que estivesse comigo agora ia pagar a fatura daquilo que eu passei”.

Para Sara, as grandes vitórias estão a chegar agora. Quando chegou a Lisboa, trazia uma fatura quase impossível de carregar. “Tinha ódio aos homens. No dia em que cheguei, não conseguia dirigir a palavra a um homem. Mesmo para comprar um bilhete de metro, de autocarro, eu não conseguia. Teve de ser a minha filha a ajudar-me. Para mim, os homens eram todos iguais a ele”.

O maior desafio aconteceu quando começou a trabalhar. Aí, tinha mesmo de lidar com toda a gente. “Foi uma grande adaptação. Foi muito difícil ter de falar com um homem, mas hoje em dia falo. Tenho vários colegas no meu trabalho”, nota.

Vitória a vitória, caso a caso. Recuperar a vida sexual é só uma (pequena) parte do processo. Há uma “perda de identidade”, uma “despersonalização do ‘eu'”, explica Rita Mira, como se o interior ficasse em pedaços. Mais do que o corpo, é a ‘vontade’ da pessoa que é violada, como se ela tivesse perdido o controlo da sua liberdade. “No fundo, o que é violado é a integridade da pessoa: física, psicológica, emocional, moral, sexual. Há um todo de união que é interrompido por aquele assalto. O apoio técnico permite que as sobreviventes recuperem o controlo da sua própria vida”, sublinha a presidente da associação.

É preciso insistir para que as vítimas se sintam seguras a cumprir a sua rotina normal. Porque os desafios estão nas pequenas coisas. “A sobrevivente pode entrar em crise por fatores imprevisíveis. Por exemplo, está no escritório a trabalhar e de repente passa uma pessoa com o mesmo perfume que tinha o violador. Aquela pessoa está no local de trabalho, aparentemente seguro, mas entra em pânico com aquilo. Porque o episódio vem à memória. Aquela pessoa que passou não tem nada a ver com o que aconteceu, mas ela entra em crise”, ilustra.

É preciso explicar às vítimas que "não há nada que pudessem ter feito para evitar", destaca Bruno Brito, da APAV. Muitas gastam horas a desfiar coisas que podiam ter feito para travar o ato.

Agora é extrapolar isto para a multiplicidade de hipóteses. Um som ou uma voz que ela associe ao episódio, um cheiro relacionado com o sítio onde aconteceu o ato. E isso afeta todas as áreas da vida, desde a saúde, ao trabalho, até ao amor. “Por exemplo, se o episódio aconteceu em casa, ela passa o dia no trabalho aterrorizada por ter de ir para casa ao fim do dia. Isso compromete a sua carreira profissional, as suas possibilidades de crescer na empresa”, ilustra Margarida. A vítima empurra o episódio para fora da memória, mas ele está em todo o lado.

Como é que se previne uma violação?

Enquanto houver agressores, haverá vítimas. Primeiro, é preciso explicar às vítimas que “não há nada que pudessem ter feito para evitar”, destaca Bruno Brito, da APAV. Muitas gastam horas a desfiar coisas que podiam ter feito para travar o ato: Teresa arrepende-se de não ter agarrado em algum objeto que estivesse ao lado do sofá, Carolina arrepende-se de não ter saído de casa mais cedo.

Depois, é preciso educar as crianças e jovens para a igualdade de género e para o respeito pelos outros. Mas como é que isso se faz? “O conceito ‘não é não’ pode ser trabalhado desde muito cedo. Até porque é na adolescência que encontramos alguns agressores sexuais. Em 2014, cerca de 35% das violações foram cometidas por adolescentes entre os 13 e os 17 anos. Cerca de 15% dos abusos sexuais de crianças cometidos em Portugal são cometidos por jovens entre os 13 e os 17 anos de idade. Não podemos esperar que os adolescentes sejam adultos para começar a intervir e a prevenir”.

A explicação é de Ricardo Barroso, professor universitário na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e membro da Comissão Científica da International Association for the Treatment of Sexual Offenders. O investigador foi notícia quando defendeu a criação de um plano nacional contra a violência sexual, em vez de “medidas avulsas sem qualquer eficácia”. A urgência justifica-se com o facto de os resultados destes planos de ação só começarem a aparecer, em média, oito anos depois.

Das cinco partes da estrutura sugerida por Ricardo Barroso, a primeira intitula-se “Informar, Sensibilizar e Educar”. O que é que se pode fazer neste campo exatamente? “Não se ensina ninguém a ‘não violar’. Temos é que trabalhar os processos psicológicos adjacentes aos comportamentos dos violadores. Por exemplo, podemos trabalhar desde cedo a gestão da raiva e da cólera e a sua associação aos relacionamentos afetivos com outras pessoas, o respeito pelos outros, bem como as consequências dos comportamentos de agressão”. Isto implica trabalhar com as escolas e criar conteúdos de Direitos Humanos.

Portugal não tem um plano específico para combater a violência sexual, mas integra a questão no mais recente “V Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e de Género”, de 2014 até 2017. Uma das medidas a implementar é “desenvolver respostas dirigidas a vítimas de agressões sexuais”, sendo que um dos objetivos é a “criação de protocolos de atuação para vítimas de agressões sexuais — rape crisis center“.

Mais denúncias conseguem-se dando mais visibilidade à violência sexual, como foi dada à violência doméstica, considera Ricardo Barroso: “Só agora, cerca de 16 anos depois do início do I Plano Nacional contra a violência doméstica, é que conseguimos ter algo concreto no terreno. Já viu que atualmente temos formação de polícias/GNR especializados desde a formação de base, casas abrigo, instituições especializadas, mais denúncias a entrar nas esquadras, mais vizinhos a “meterem a colher”? Isto foi algo que demorou imenso tempo a conseguir”.

Pode custar tanto enfrentar o futuro como deixar o passado. É trocar o conhecido pelo incerto. Sara resume: “É muito doloroso nós deixarmos a casa onde vivemos, deixarmos as nossas coisas todas para trás, o nosso local de trabalho, a família… Tudo o que nós conhecemos. Eu nasci ali e estive ali até aos 40 anos”. A viver começou quando subiu para o autocarro de Santarém para Lisboa.

Nota: os nomes das protagonistas e respetivos companheiros foram alterados para proteger as sobreviventes.

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