Sara Nović pede que a entrevista seja feita por email — tem uma deficiência auditiva e, afinal de contas, há um oceano a separar-nos. Começo a missiva eletrónica com a história que gostaria de lhe contar pessoalmente — sobre Karoljna, uma croata de 1987 como Nović, que há um ano e meio passava os tempos livres na estação de comboios de Tovarnik, na fronteira da Croácia com a Sérvia, a dar comida e sorrisos às pessoas que fugiram de guerras na Síria, no Afeganistão, no Iraque, e que, aos milhares por dia, embarcavam ali rumo ao norte da Europa.
Nović tem apelido e ascendência croata, mas não nasceu nem cresceu no país dos pais, no país de Karoljna. Quando a guerra da Jugoslávia estalou em 1991, tinham ambas quatro anos; Anna, a protagonista de Rapariga em Guerra, tinha dez. Com o seu romance de estreia, a autora não tinha pretensões de desmistificar os episódios sangrentos que fecharam o século XX, com direito a transmissão ao vivo na televisão. No livro, lançado em Portugal pela Minotauro em março, Nović não explica como a desintegração da Jugoslávia começou com a Guerra dos Dez Dias, quando a Eslovénia abandonou a federação, e como a partir daí foi sempre a descer — só na Croácia, 20 mil pessoas morreram e 400 mil ficaram sem casa. O que faz é falar por uma criança que podia ter sido ela, que podíamos ser nós, num livro escrito quase como se fosse um guião de cinema em texto corrido. Sem o saber, Nović acaba a explicar porquê.
Como surgiu a ideia para este livro?
Escrevi a primeira versão destas personagens num conto quando estava na universidade. Tinha acabado de voltar da Croácia frustrada com o facto de até as pessoas mais inteligentes e instruídas que eu conhecia não saberem nada sobre a guerra. E por isso decidi escrever uma história sobre uma personagem meio no presente, meio como uma criança durante a guerra, queria reconciliar as duas. O meu professor ajudou-me muito e sugeriu que transformasse o conto num romance — na altura ri-me, porque não me passava pela cabeça que pudesse escrever uma coisa tão longa. Mas a história ficou em mim e acabei por expandi-la ao longo dos anos.
Como descreveria a sua ligação à Croácia e à guerra sobre a qual escreveu?
Tenho família e amigos na Croácia até hoje e vivi lá algum tempo, a cultura e a língua croatas fazem sem dúvida parte de mim. Apesar de não ter vivido a guerra, muitas pequenas peças do livro são histórias que as pessoas que a viveram me contaram. Apesar de todas as personagens serem ficcionais, queria que este livro encaixasse corretamente na cronologia histórica da guerra. Porque as pessoas eram abertas e estavam dispostas a partilhar as suas histórias comigo, e porque inicialmente estava a escrever a partir de um sítio de raiva face à ignorância das pessoas sobre esta guerra, esse rigor foi muito importante.
Decidiu imediatamente que a história ia ser contada do ponto de vista da Anna? Foi uma decisão consciente escolher uma criança para protagonizar e narrar o romance?
Quando escrevi o conto, a personagem que viria a ser a Anna também tinha dez anos mas era um rapaz. Ao longo do tempo isso mudou, penso que em parte porque queria cruzar a minha própria perspetiva (e as dos meus amigos) com a da personagem. De qualquer forma, aqui nos Estados Unidos, a maioria das pessoas pensa na guerra como uma coisa muito adulta e masculina, quando na realidade a guerra afeta as mulheres e as crianças provavelmente até mais. Senti que isso era uma coisa importante de transmitir.
A dada altura, Anna dá por si a pensar que, apesar de ser difícil aceitá-lo, no final de contas a culpa de um lado não prova a inocência do outro. Acha que pessoas como a protagonista ou como Karoljna são mais propensas a concluir isto precisamente porque eram crianças durante a guerra?
A maior parte dos jovens com quem falo por toda a ex-Jugoslávia entendem tão bem que a guerra teve muitas zonas cinzentas e uma confusão de motivações, entendem que foi uma guerra que teve tanto ou mais a ver com poder e dinheiro e corrupção governamental do que teve a ver com tensões étnicas, entendem que todos os lados fizeram coisas repreensíveis… Porque as crianças não tinham poder de decisão ou de escolha, acho que o sofrimento delas permite-lhes sentirem empatia por outras crianças, ou civis, que também sofreram e que também perderam poder, independentemente das circunstâncias políticas que os abrangem.
Acredita que a literatura pode desempenhar um papel redentor entre pessoas que viveram uma guerra como aquela que marcou a desintegração da Jugoslávia? Pode a literatura ajudar-nos a fazer as pazes com o passado?
Acho que a literatura pode desempenhar um papel redentor nas vidas das pessoas, mesmo que de uma forma muito pequena. Os emails de leitores que mais gosto de receber são os que vêm de pessoas que têm uma ligação pessoal à região e que me dizem que se identificam com partes da história da Ana ou que sentiram uma catarse enquanto liam o Rapariga em Guerra. Enquanto leitora, conheço alguns romances que definitivamente me moldaram ou alteraram a minha perspetiva sobre a vida e sobre o mundo, espero que o Rapariga em Guerra também possa dar um pequeno conforto ou perspetiva a alguns leitores.
Tinha a intenção declarada de tentar desmistificar a guerra?
Queria definitivamente dar aos leitores americanos uma noção factual de base sobre o que aconteceu na ex-Jugoslávia, mas ao mesmo tempo a natureza deste livro, sendo uma história narrada na primeira pessoa, do ponto de vista de uma criança, não lhe permite desmistificar ou explicar as complexidades da guerra. Espero que possa gerar empatia pelos que sofreram e pelos que hoje continuam a sofrer em circunstâncias semelhantes, que possa talvez até levar o leitor a investigar mais ou a envolver-se em projetos de apoio aos refugiados que hoje escapam a conflitos.
Como é que este livro foi recebido na Croácia e nos Estados Unidos?
Os croatas com quem falei tiveram uma reação boa ao verem a história da Anna no mundo, apesar de haver pontos em que acharam que eu podia ter escrito isto ou aquilo de outra maneira. O facto é que tive muita sorte de ter a ajuda da minha família e dos meus amigos na Croácia, que responderam às minhas perguntas incontáveis e que leram os primeiros rascunhos do livro. Mas claro que na Croácia já existe muita literatura sobre a guerra, ao passo que nos EUA muitos leitores encontram na história da Anna algo “novo” ou “uma perspetiva diferente”. Estou muito agradecida aos críticos e leitores pela reação positiva ao Rapariga em Guerra aqui nos EUA. É um sentimento estranho mas maravilhoso ter pessoas a sentirem uma real ligação a personagens que eu imaginei e com as quais vivi durante tanto tempo enquanto escrevia. Ter leitores a dizerem-me que choraram ou a enviarem desenhos de como acham que a Anna e o Luka são é basicamente o sonho de qualquer escritor.
Os mesmos Estados Unidos que acolheram o Rapariga em Guerra estão a lidar com um governo desfavorável à imigração e ao acolhimento de refugiados. Com tudo o que investigou sobre a guerra civil jugoslava, como olha para a administração Trump?
A eleição de Donald Trump é um momento muito assustador para a América e para o mundo. Ainda assim algumas pessoas aqui sentem que nada realmente grave, como uma guerra civil ou genocídio, pode acontecer na América porque temos a Constituição e os freios e contrapesos que impedem abusos de poder. O que o meu trabalho sobre a guerra da Jugoslávia me mostrou, contudo, é que nunca ninguém quer acreditar que o seu país vai afundar-se no caos — só que negá-lo não impede que aconteça. As políticas anti-imigração de Trump são mais um exemplo de como um líder volátil pode alimentar tensões étnicas e um fervor nacionalista para se agarrar ao poder. A paz é uma coisa precária (e, claro, a América não está em paz no Afeganistão, nem na Síria, nem no Iraque…). Mas neste momento também há muita resistência no terreno às políticas de Trump aqui nos EUA, espero que continuemos a lutar contra ele.
O próximo livro de Sara Nović vai voltar a abordar a ex-Jugoslávia ou quer escrever sobre outros assuntos?
Neste momento já escrevi 100 páginas de um novo romance passado aqui nos EUA que examina as vidas de três adolescentes surdos e do diretor da escola deles. De certa forma é muito diferente do Rapariga em Guerra, porque se passa na América e porque tem as perspetivas de várias personagens. Mas, por outro lado, os temas da linguagem, da identidade e de como nos sentirmos em casa no mundo são os mesmos.
Li que às vezes desliga o seu aparelho auditivo para silenciar o mundo e, nas suas palavras, “mergulhar abaixo da superfície do som”. É uma imagem forte e bonita que contrasta com a ideia de incapacidade tantas vezes associada às pessoas portadoras de deficiência. A surdez influencia a sua persona literária?
Sem dúvida que ser surda molda a forma como escrevo, acho que me torna uma pensadora e escritora mais visual e que afeta o ritmo das minhas frases, porque presto atenção à “batida” das palavras mais do que a outros tipos de sons. As pessoas tendem a estigmatizar a surdez porque pertence a uma minoria, mas o facto é que não me incapacita em nada, não me impede de fazer o que quero, escrever, dar aulas, viajar… Não só isso como me dá toda uma segunda visão do mundo através da Linguagem Gestual Americana que, por ser uma língua em 3D, deixa-me expressar coisas que eu nunca conseguiria dizer, muito menos articular, em inglês ou em croata. Tenho pensado muito sobre isto para o meu novo projeto — será que consigo aproveitar parte da essência da linguagem gestual no papel, nos diálogos das minhas personagens? É definitivamente um desafio, mas um desafio interessante.