Este artigo foi inicialmente publicado em 2016 e é agora republicado quando a eutanásia volta a ir a votos no Parlamento
Não vale a pena fintar a morte. Quando o diagnóstico diz que o tratamento médico já é ineficaz, que a morte se aproxima e não é possível contorná-la, o objetivo dos médicos e dos enfermeiros é aliviar ao máximo a dor do paciente. E isto “não é matá-lo, é permitir uma morte mais natural quando esta tiver que acontecer”, explica ao Observador a enfermeira Ana Paula Sapeta.
São 31 anos de serviço. À experiência do terreno acumula o cargo de diretora da Escola Superior de Saúde Dr. Lopes Dias, em Castelo Branco, e a sua especialização em Cuidados Paliativos. Só se lembra de um caso em que um doente pediu para morrer. Na altura informaram-no que iria ser transferido para os Cuidados Paliativos e ele insistia que não queria. Queria morrer o mais depressa possível. “O enfermeiro que o acompanhava prometeu guardar-lhe a cama, caso ele quisesse regressar. Mas que experimentasse”, conta Ana Paula Sapeta. Ele não voltou. Ficou três meses nos Cuidados Paliativos até morrer. “Neste período agradeceu-nos o que estávamos a fazer. Pôde realizar alguns sonhos, porque ainda era autónomo, e despedir-se da família.”
Uma “morte digna”. Mais do que matar, defende Ana Paula Sapeta, “devia estar a discutir-se como se morre”. Atenta ao que a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, também defende, a enfermeira conta que nunca viu um profissional administrar insulina com o intuito de matar alguém. “E isso não é eutanásia”, ressalva. Eutanásia é um ato médico, feito a pedido consciente do doente, tem que ser um pedido expresso.
Um outro médico oncologista, que podemos começar a chamar de Pedro, considera que as declarações sobre o coma insulínico “revelam uma grande ignorância”. E porquê? “O coma insulínico é uma coisa completamente imprevisível porque as reservas do indivíduo são completamente imprevisíveis e há pessoas que recuperam, outras não”, explica, acrescentando que essa prática era utilizada sobretudo nos hospitais psiquiátricos, em alternativa aos eletrochoques, mas que foi abandonada há muitos anos. “Nunca ouvi tal coisa em toda a minha vida profissional”, garante.
Continuando nos Cuidados Paliativos, mas num centro hospitalar da zona norte, uma médica explicou ao Observador como é acompanhar os doentes até “ao último suspiro”. Quando se sabe que nada mais há a fazer, a dor é aliviada com recurso a morfina. E, mais calmos, os doentes acabam por agradecer os últimos dias de vida, sem dor, e com possibilidade de se despedirem. “Já houve familiares que me disseram que preferiam que o doente morresse. Mas dizem-no em desespero. Porque, depois, quando percebem que o familiar não está em sofrimento, até agradecem aqueles últimos dias de vida. Muitas vezes vêm familiares do estrangeiro despedir-se. E estes dias permitem uma morte mais calma”, assegura.
Suspender um tratamento ou optar por não iniciar alguma terapêutica que só vai prolongar ou até provocar sofrimento ao doente em fim de vida também não é matar. Assim como não é eutanásia enviar um doente em fim de vida para casa, mesmo sabendo que isso lhe pode precipitar a morte. Tudo isto é visto como boa prática médica, a que se dá o nome de ortotanásia. Pelo contrário, lançar mãos a um tratamento num doente terminal com doença respiratória, por exemplo, “é obstinação terapêutica”, diz a médica. Chama-se distanásia.
E segundo os códigos deontológicos dos médicos e enfermeiros, a distanásia é tão proibida como a ajuda ao suicídio e a eutanásia. A distanásia ou a obstinação terapêutica é quando se insiste em administrar tratamentos médicos a um doente, só para lhe prolongar a vida por mais alguns dias, mesmo que viva sem qualidade e até lhe aumente a dor. Isso não vai curá-lo. “É prolongar a vida a todo o custo. São tratamentos inúteis. A distanásia existe nos hospitais, nas urgências, nos serviços de medicina interna”, diz a enfermeira Ana Paula Sapeta. “E isso, sim. Devia ser discutido.”
“Muitas vezes, a obstinação terapêutica acontece para responder aos pedidos das famílias. Infelizmente, isso pratica-se nos hospitais. É muito vulgar, por exemplo, com o suporte respiratório. Muitos familiares imploram ao médico para ‘não desligar a máquina’ e ele não desliga”, afirma Walter Osswald, professor aposentado de Terapêutica, da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, sublinhando que a “distanásia é um erro médico”.
A enfermeira Ana (nome fictício), 34 anos, assiste a essa obstinação todos os dias no hospital da Grande Lisboa onde trabalha. “Às vezes há doentes completamente vegetais, sem atividade cerebral, e os médicos continuam a dar-lhes medicação agressiva. Para nada”, afirma. Também ela nega alguma vez ter assistido à administração de insulina para provocar a morte dos doentes em sofrimento, como sugeriu a bastonária da Ordem dos Enfermeiros. O que costuma fazer -se é “sedar-se os doentes para lhes aliviar a dor”. “Falamos com a família, sim, quando as doses a administrar deixam o doente inconsciente.”
É o que se pode chamar de sedação terminal. Walter Osswald explicou ao Observador que esta prática consiste em injetar aos doentes — que estão com muita dor, agitação e convulsões — substâncias calmantes que “põem a pessoa num estado de calma, ao ponto de ficar inconsciente”. “Está mais do que indicado provocar sedação se a pessoa está agitada ou com convulsões, mesmo que isso precipite a morte. Mas isto não é eutanásia, a menos que a intenção do médico seja matar o paciente.”
O neurologista Joaquim Ferreira, diretor clínico do Campus Neurológico Sénior, acrescenta que “o objetivo da utilização da morfina não é encurtar a vida. O objetivo é dar conforto nos últimos momentos” e sublinha que “não dar opioides é que é má prática”. “Um dos parâmetros de má qualidade é quando se usam muito poucos opioides para tratar a dor. Além de que as pessoas morrem pela doença, não pela morfina. Não é assim tão linear que a morfina antecipe a morte”, garante.
Tiago (nome fictício), enfermeiro num outro hospital da Grande Lisboa, também defende que a “administração de morfina serve para aliviar a dor e confortar o doente, que já não tem cura”. É a forma mais indolor de o doente morrer. “Porquê administrar um tratamento que o vai fazer viver mais dois dias ou uma semana em grande sofrimento?”. Tiago duvida que algum profissional recorra à insulina numa situação destas. “A administração de grandes quantidades de insulina provoca convulsões. Seria uma morte atroz. Não acredito que alguém fosse capaz de o fazer!”, afirma.
Em relação à denúncia feita em 2016 pela bastonária Ana Rita Cavaco, de que haveria médicos a sugerirem formas de eutanásia nas reuniões de equipa, o neurologista Joaquim Ferreira assegura que nunca esteve em reuniões em que essa questão se tenha colocado. “As equipas médicas discutem, isso sim, níveis de cuidados terminais. Perante alguém que está próximo da morte, em termos de horas, dias ou semanas, discutimos se se deve dar este ou aquele medicamento. Isso é muito diferente de discutir eutanásia”, atesta, acrescentando que “nenhum médico deve prolongar o sofrimento de um doente com medidas heróicas que são fúteis. Isso é má prática médica!”
Pedro, o médico oncologista que lida de perto com doentes terminais, garante que na sua vida profissional “nunca em alguma reunião” assistiu “a discussões sobre formas de obviar a vida de um doente”. Aliás, “os níveis de cuidados terminais são discutidos com muito cuidado e devagar”. “Nós queremos é que elas vivam o melhor possível e o maior tempo possível. As pessoas morrem todas, a questão é como vivem”, remata.
“Vi casos em que a esperança morreu antes do doente”
E precisamente por não quererem viver a qualquer custo, alguns (muito poucos) doentes, em desespero, acabam mesmo por pedir aos médicos para os ajudarem a morrer. Assim, sem rodeios. Sem eufemismos e sem sombra para dúvidas. São situações raras, a julgar pelos relatos dos médicos ouvidos pelo Observador, mas acontecem.
“Vi casos em que a esperança morreu antes do doente. São casos limite e raros”, conta Pedro, o médico oncologista, explicando que estes pedidos podem surgir em duas fases diferentes da vida: quando recebem a notícia do diagnóstico e quando se aproximam do fim da vida.
“Não é assim tão raro no momento do diagnóstico dizerem-nos que não estão disponíveis para determinado tipo de degradação ou sofrimento e querem saber se podem contar connosco para abreviar o sofrimento. Já tive alguns pacientes que me perguntaram claramente se podiam contar comigo para antecipar a morte quando chegassem a uma determinada fase da doença”, relata ao Observador, completando que normalmente são pessoas mais velhas e sozinhas. E o que faz nessas alturas? “Explico-lhes a lei e digo o que posso fazer em termos de tratamentos, cuidados paliativos e apoio psicológico e psiquiátrico para lhes aliviar a dor e a degradação da vida. É isto que mais os aflige, a degradação, a perda do controlo do corpo e a dependência. Até mais do que a dor”, garante.
Mais complicado é quando um doente pede para ser morto o mais rápido possível. Naquele instante até. “Nessa altura ficamos entalados.” Pedro não precisa sequer dos dedos das duas mãos para contar o número de vezes que se viu confrontado com um pedido deste género. “Senti-me sempre muito pequenino”, garante.
E por ser tão raro e tão angustiante, lembra-se da primeira vez em que tal aconteceu, estava no início da sua já longa carreira. Um jovem, de vinte e poucos anos, que tinha um tumor entre os pulmões e que ao fim de três ou quatro anos deixou de responder aos tratamentos. “Já estava internado e ventilado. Pediu-me para morrer e eu expliquei-lhe que não podia fazê-lo e que só podia aliviar-lhe os sintomas”, recorda Pedro. Aumentou-lhe a medicação, dando-lhe mais morfina e outros sedativos, e o jovem acabou por morrer três ou quatro dias depois, com insuficiência respiratória, “por invasão do pulmão pela doença”.
Mas o caso que mais o marcou aconteceu há dois anos. Uma senhora, na casa dos 50 anos, que depois de um percurso de cinco anos de luta contra um cancro muito agressivo, com recurso aos mais “sofisticados tratamentos”, chegou a uma situação de final de vida e soube disso. “Fez as suas despedidas e voltou ao hospital onde quis ficar internada. Nessa altura, com a dor controlada e ainda com autonomia física, pediu-me ajuda para morrer. Marcou-me muita pela angústia existencial imensa e pela racionalidade total do pedido que não era enevoado por nada. Ela só não queria estar à espera da morte. Já tinha resolvido tudo na sua vida, não quis sequer ter mais visitas”, conta emocionado. Teve de esperar duas semanas pela morte.
A morte assistida em números
O ex-presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal, Duarte Nuno Vieira, diz que em 15 anos de serviço não se recorda de uma única autópsia em que tenha sido levantada a questão da eutanásia. Há uns anos o professor deu uma conferência sobre o tema numa faculdade de Direito, na Alemanha. Dos estudos que consultou, recorda-se de alguns números mais curiosos, que partilhou com o Observador.
Por exemplo, num dos países onde o suicídio assistido é legal, 40% dos doentes desistem de morrer depois de terem passado o processo de aprovação e de lhes ter sido preparado o medicamento que devem tomar para morrer. Por cá, um estudo feito em 2007 pelo médico José Ferraz Gonçalves diz que 39% dos médicos oncologistas portugueses defendem a legalização da eutanásia, mas só 24% diz estar disposto a fazê-la em caso de legalização.
Um dos estudos internacionais consultados pelo agora diretor da Faculdade de Medicina de Coimbra, Duarte Nuno Vieira, diz que 75% dos médicos que receberam solicitações para praticarem a eutanásia ou a morte medicamente assistida aos seus pacientes decidiram reforçar o tratamento dos sintomas físicos: 65% dos profissionais de saúde prescreveram um tratamento para a depressão e 25% remeteram os doentes para avaliação psiquiátrica.