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Há poucos conceitos estéticos rodeados de tantos equívocos como o kitsch. A maioria das pessoas emprega a expressão como sinónimo genérico de vulgaridade e mau-gosto e outras usam-no em vez do adjectivo “piroso” – como se o uso de uma palavra “estrangeira” e “sofisticada” as colocasse mais acima do desprezível objecto, pessoa ou evento a que aludem. Outras aplicam o termo kitsch às expressões ostensivas, exuberantes e deliberadas de “piroseira” associadas à comunidade homossexual. Mas poucos usam kitsch no sentido em que os críticos e pensadores da estética e da sociedade a têm definido.
Ninguém é dono das palavras e o significado destas evolui com o tempo e muda com o contexto, mas vale a pena debruçarmo-nos sobre o ensaio que Fritz Karpfen publicou em 1925, bem como às reflexões de Milan Kundera, Hermann Broch, Pascal Bruckner e outros pensadores sobre o assunto. Mas antes, vamos ao Festival Eurovisão da Canção.
Uma pistola numa luta de facas
Houve quem tentasse desvalorizar a vitória de Salvador Sobral no Festival Eurovisão da Canção de 2017, com a canção “Amar pelos dois”, composta por Luísa Sobral, com a “acusação” de ter recorrido a uma arma não autorizada por uma lei não escrita do certame. No jornal El Español, Manuel de Lorenzo, escreveu, em tom irónico, que “desde o início que o plano de Portugal era jogar sujo”, ignorando o modelo de canção que se tornara usual no certame nos últimos anos e apresentando a concurso “uma canção bem escrita, de harmonias sedosas, uma melodia delicada e versos inspirados […] Levar o festival a sério e ganhar é uma infâmia” (alguns espanhóis, abespinhados por a canção espanhola ter ficado em último lugar, terão subscrito a tese do “jogo sujo”, mas sem ironia).
[“Do it for your lover”, por Manel Navarro: Em 2017, Espanha renegou a sua identidade e fez alinhar uma boys band de surfistas louros a cantar em inglês sobre uma cançoneta reggae talhada à imagem do gosto musical de miúdos de oito anos de idade, num cenário apropriado a um anúncio a refrigerantes hipercalóricos. Foi punida com a pior votação de sempre e ofereceu à Catalunha um argumento adicional para pedir o divórcio]
O próprio Salvador Sobral parece estar consciente da “disparidade de armas” ao declarar, logo após a vitória, que “vivemos num mundo de música descartável, de música fast food sem qualquer conteúdo. Isto pode ser uma vitória da música, das pessoas que fazem música que de facto significa alguma coisa. A música não é fogo-de-artifício, é sentimento. Vamos tentar mudar isto. É altura de trazer a música de volta, que é o que verdadeiramente interessa” e ao salientar a importância de se fazer “música de qualidade, simples, sem artifícios”.
Sobral chegou mesmo a exprimir a esperança de que a sua vitória tivesse um efeito pedagógico: “sinto que é um bom passo que as pessoas tenham gostado desta música, que tem tanto conteúdo, emocional, lírico, melódico, acho que isto pode ajudar de alguma maneira, se calhar até nos anos próximos a Europa trazer músicas com um bocadinho mais de significado a todos os níveis”.
Porém, a inesperada vitória de “Amar pelos dois” não tem tanto a ver com a suposta “qualidade” superior da canção, mas com o facto de ser um “corpo estranho”: o Festival Eurovisão da Canção era, já há algumas décadas, um evento eminentemente camp e Sobral concorreu com uma canção alheia a essa estética. E ganhou ou por mero acaso (afinal que crédito merece o júri do festival e o voto dos telespectadores?) ou porque o júri e o público que se interessa o suficiente por uma inanidade como o Festival Eurovisão para participar na televotação, enfastiados por anos consecutivos de domínio do camp, decidiram dar a vitória a um outsider.
[As canções do Festival Eurovisão da Canção não podem ser acusadas de falta de sentimento. Na verdade, estão quase todas empapadas em sentimento: é rara a canção que não fala de amor, amantes ou coração. É o caso de “Nous l’amoureux”, cantada por Jean-Claude Pascal, que deu ao Luxemburgo a sua primeira vitória, em 1961. Atente-se, aos 20’’, no inenarrável cenário com escadarias e balaustradas de fancaria]
O que é o camp?
O camp é extravagante, excessivo e ostentatório e tem consciência de o ser – é mau-gosto deliberado e levado até aos limites. O Oxford Dictionary of English dá esta definição de camp: “ostensiva e extravagantemente efeminado” (referindo-se a um homem ou aos seus maneirismos); algo que possua “um estilo deliberadamente exagerado e teatral”. O camp não está obrigatoriamente ligado aos sectores mais “flamejantes” da comunidade homossexual, mas são eles os seus mais entusiásticos cultores.
O Festival Eurovisão começou como um concurso “a sério”, favorecendo um modelo de cançoneta conforme aos valores burgueses e aos ideais estéticos da classe média sem cultura ou verdadeiro interesse musical, completamente alheado do que acontecia no mundo real da pop e subjugado à ditadura do mínimo denominador comum, que garante que nunca uma canção com um pingo de individualidade e originalidade será aceite a concurso. Com o passar do tempo e as mudanças dramáticas no relacionamento das massas com a televisão, com a música e com o entretenimento em geral, estes jogos florais investidos de pompa, formalidade burocrática e competição patriótica, este tristonho equivalente musical dos Jogos Sem Fronteiras, foi deixando de apaixonar as massas; o seu público passou a compor-se sobretudo de donas de casa, reformados e gente que gosta de assistir a concursos (sejam eles do que for) e até nos salões de cabeleireiro – durante anos o fórum privilegiado para a discussão dos resultados do Festival Eurovisão – o assunto acabou por ser suplantado pelas namoradas dos jogadores de futebol e pelas paixonetas “na vida real” dos actores das telenovelas. O Festival Eurovisão teria definhado até à morte se, a dada altura, não tivesse sido adoptado pela comunidade LGBT, que ficou encantada com o potencial camp nele contido. E foi assim que o Festival da Eurovisão se foi tornando cada vez mais excessivo, colorido, plastificado, cintilante, bizarro e postiço, uma evolução que culminou na edição de 2014, com a vitória do/a representante austríaco/a Conchita Wurst, que suscitou reacções indignadas dos sectores conservadores que não tinham ainda percebido que o Festival Eurovisão há muito deixara de ser o sorumbático “espectáculo para a família” dos anos 70.
[“Rise like a phoenix”, por Conchita Wurst, na Festival Eurovisão de 2014: o zénite do camp]
A canção de Luísa Sobral, tão elogiada pela sua originalidade e frescura, não é mais do que um regresso a esse passado: teria passado despercebida ao lado de cançonetas sentimentalonas como “L’oiseau et l’enfant” da francesa Marie Myriam (vencedora em 1977), de “Après toi”, da luxemburguesa Vicky Leandros (vencedora em 1972), ou de “What’s another year”, do irlandês Johnny Logan (vencedora em 1980).
[“What’s another year”, por Johnny Logan, no Festival Eurovisão de 1980: 37 anos depois, os rapazes sensíveis, tímidos, solitários e cheios de auto-comiseração voltaram a estar na mó de cima]
https://youtu.be/IuHhlGMuIus
Manuel de Lorenzo, o articulista do El Español, sintetiza bem o que ocorreu na edição de 2017: “tínhamos planeado um sábado à noite divertido e teve de aparecer um vizinho sensato”. Todavia, Lorenzo engana-se (ou exagera na ironia) quando descreve “Amar pelos dois” como “uma canção bem escrita, de harmonias sedosas, uma melodia delicada e versos inspirados”.
“Amar pelos dois” aspira a sê-lo e quer a sua autora e o seu intérprete quer a legião de articulistas e opinadores portugueses que embandeiraram em arco com a vitória lusa no certame a vêem envolta nestas dignas roupagens – houve mesmo quem, tomado de fervor patriótico, visse nela uma digna herdeira das cantigas de amigo medievais (vá lá que ninguém se lembrou de invocar a escola polifónica da Sé de Évora).
[“Ondas do mar de Vigo”, do trovador galego Martin Codax (séculos XIII-XIV), pelas Vozes Alfonsinas: a lamentação dos amantes pela perda da sua cara-metade tem sido assunto recorrente das canções desde que há memória]
A matriz de “Amar pelos dois” são, remotamente, as canções do American Songbook compostas no início do século XX por luminárias como Cole Porter, Rodgers & Hart ou os manos Gershwin (que os manos Sobral, que estudaram jazz e o praticam, conhecem bem), hibridada com nacional-cançonetismo e canção brasileira e reduzida ao mínimo denominador comum necessário para cativar os jurados e os televotantes do Festival Eurovisão da Canção. “Amar pelos dois” é uma canção kitsch que, por acidente, venceu um risível concurso de canções camp.
Ver nela um sinal da pujança da pop portuguesa é um delírio que só pode acometer quem não esteja a par da pop que se pratica pelo mundo fora e manifestar a esperança de que ela contribua para elevar o nível do Festival é algo tão despropositado e hilariante como a pretensão de elevar o nível artístico da dança do varão, de conferir um cariz erudito aos programas da manhã dos canais de TV generalistas ou de promover o jogo do berlinde a modalidade olímpica.
O que é o kitsch?
“Futilidades baratas e desprovidas de gosto, enfeitadas com atributos artísticos; presunção ridícula com chavões diletantes que correspondem à cultura do merceeiro; coisa que não quer dizer nada e nada exige ao pensamento; adorno no convívio pacato do burguês à mesa do café; […] bluff que quer fazer bluff ao coração e faz verter lágrimas como uma cebola; […] em suma, pechisbeque que especula com a alegria infantil por aquilo que brilha”.
É esta a definição que Fritz Karpfen apresenta logo na abertura de Kitsch: Um estudo sobre a degenerescência da arte (“Der Kitsch: Eine Studie über die Entartung der Kunst”), publicado originalmente em 1925 e que agora chega a Portugal pela mão da Antígona, com tradução e introdução de João Tiago Proença.
O austríaco Fritz Karpfen (1897-1952?), crítico de arte e editor (escreveu um livro sobre o escultor Gustinus Ambrosi e outro sobre Egon Schiele), não foi o inventor do termo kitsch, que terá surgido nos meios artísticos germânicos nas décadas de 1860-70 para designar quadros e desenhos populares e facilmente vendáveis, mas este ensaio foi uma das primeiras análises sérias sobre o fenómeno.
O ensaio impressiona por uma ferocidade pouco usual hoje nos debates estéticos: “O kitsch é a grandiloquência na arte. E nem sequer a grandiloquência, mas o palavreado pomposo, mesquinho, viscoso e repugnante – a mentira”. Karpfen associa indissoluvelmente o kitsch aos valores burgueses: “Em todos os tempos, em 1000 pessoas há 999 que possuem quadros decora-o-teu-lar, e só uma delas possui um quadro” – Karpfen rotula os primeiros de “cidadãos-merceeiros ou libertários-liberais ou socialistas reaccionários […], os kitschistas da vida […] São como massa tenra que oprime a vida, e desta massa brota o muco que cobre a verdadeira arte”.
Um dos eixos centrais da argumentação de Karpfen é a visão do kitsch como o mais perigoso e persistente inimigo da verdadeira arte e da originalidade: “Assim que uma criação artística nova, produtiva, se destaca como expressão da vida espiritual da época, logo acorrem, pressurosas, as aranhas e ocultam o novo sob a sua teia iridiscente [O kitsch] é o parasita, o chacal da reacção” e tudo faz para inutilizar e absorver qualquer ideia nova e pura. Karpfen alerta que o ódio do kitsch a tudo o que é inovador vai a par com a veneração beata por tudo o que é antigo e tem patine. Todas as épocas tiveram o seu kitsch e produziram em massa as suas “mentiras” artísticas e não é por terem passado os anos que ganharam valor e autenticidade: “eram kitsch na época em que foram feitos e continuam a ser kitsch na época em que foram descobertos”.
Um dos alvos contra os quais Karpfen se encarniça é o kitsch religioso. A arte religiosa teve vitalidade enquanto “a ideia de religião possuía carácter vinculativo para a Humanidade […] mas, à medida que a força espiritual geradora de panteões se tornou numa oca história de deuses, também as obras repassadas de humildade e de consagração artística se tornaram meros artigos religiosos”. “A arte religiosa em massa tornou-se kitsch”, perante a indiferença da Igreja, a quem “tanto se lhe dá que o fiel ore diante de uma obra de arte ou diante de uma oleografia medíocre – o importante é que ore”.
É instrutivo, a este propósito comparar a genialidade e abundância de obras de música sacra produzidas durante os períodos medieval, renascentista e barroco, o rápido declínio do género ao longo da segunda metade do século XVIII, a produção esparsa de grandes obras nos séculos XIX e XX e o florescimento do “minimalismo sacro” na viragem dos séculos XX/XXI, uma corrente dominada pelo kitsch (a ela se regressará adiante).
Kitsch, exotismo e eurocentrismo
O capítulo “O kitsch exótico” é talvez o mais controverso do livro. Por um lado, Karpfen tem razão quando denuncia o fascínio acrítico por “arte” proveniente de lugares exóticos e os estratagemas usados pelos fabricantes e comerciantes para impingir pechisbeque aos ocidentais crédulos.
O ponto mais discutível do livro é quando desvaloriza a arte produzida por “hotentotes e bosquímanos” com base numa argumentação inequivocamente eurocêntrica e racista: “Trata-se muito provavelmente das tribos humanas mais primitivas, cujo intelecto está num nível pouco superior à diferenciação entre macaco e homem. Não se duvide que as máscaras e os ídolos grosseiros só para os museus de etnografia […] têm interesse; mas nada, absolutamente nada, têm em comum com a arte […] Não, caríssimos, bem podeis cair em êxtase perante um ‘primitivo’, perante as carrancas de um bosquímano; proferir conferências sobre elas, e sobre elas escrever belos livros: as máscaras no seu conjunto são – artisticamente – um verdadeiro lixo. O seu lugar é no museu entre os crânios da paleontologia, entre os dardos e as panelas – num museu de história natural!”.
Se removermos da equação as considerações racistas, há um aspecto implícito na argumentação de Karpfen que merece reflexão: as sociedades “primitivas”, pela sua incipiente divisão do trabalho, não permitem que o “artista” possa consagrar tempo e estudo suficiente ao desenvolvimento da sua técnica e à pesquisa estética. E talvez devido a essa falta de tempo e dedicação, contenta-se em reproduzir os modelos herdados do passado – as suas obras estão mais próximas do artesanato do que da arte. Não há nelas a incessante busca de aperfeiçoamento, sofisticação e inovação que caracteriza a arte ocidental e nelas não se destacam criadores individuais, pois o artista não imprime um cunho pessoal ao que faz, limita-se a reproduzir um modelo consagrado pela tradição.
As polifonias e polirritmias dos pigmeus Aka podem ser fascinantes – e têm inspirado compositores ocidentais como György Ligeti e o grupo de jazz belga Aka Moon – mas entre os Aka não surgiu um Josquin Desprez ou um Johann Sebastian Bach.
E, na ausência de um sistema de notação, a música dos Aka nunca poderá atingir grande elaboração, pois depende estritamente da memória para ser executada e transmitida à geração seguinte. Mesmo que na arte não possa falar-se de “progresso” e “obsolescência”, cada nova geração de compositores ocidentais desfrutou do saber acumulado das gerações que a precederam e encarregou-se de depositar ela mesma mais uma camada de contributos; já entre as sociedades sem notação musical, o património acumulado mantém-se praticamente constante de geração para geração.
O assunto é delicado e nem tudo pode ser generalizado, mas, se não aderirmos ao relativismo radical, é indesmentível que o contributo da Itália ou da Alemanha para a música ou para a artes plásticas é mais rico do que o dos bosquímanos ou dos pigmeus. O que não quer dizer que a música e as artes plásticas não ficariam mais pobres sem o contributo dos bosquímanos e pigmeus.
[Música polifónica dos pigmeus Aka, da África Central]
Como identificar o kitsch
A pretensão é uma componente indispensável do kitsch: as “futilidades baratas e desprovidas de gosto” que se contentam em ser isso mesmo e não aspiram a ser Grande Arte não são kitsch (talvez o termo “piroso” seja o mais apropriado para designar os objectos desta categoria).
Sem emulação também não há kitsch: explica Karpfen que “as coisas que são formadas, à maneira dos epígonos, em conformidade com modelos antigos, essas são kitsch, pois falsificam o estilo e a vontade da época. Os objectos, porém, que são formados sem nenhum modelo existente […] podem ser maus, disparatados, inartísticos e vulgares”, mas não são kitsch. O escritor Hermann Broch (1886-1951) tinha opinião análoga: para ele, a essência do kitsch é a imitação – só que o seu objectivo é copiar o belo, não o bom. O resultado é “uma falsidade generalizada da vida”.
Outra componente essencial é a inconsciência. Embora os resultados possam, por vezes, ser semelhantes, uma diferença fundamental separa o kitsch do camp: o primeiro é ingénuo, o segundo é auto-consciente e irónico. O primeiro está convencido de que está a produzir “obras-primas” ou, pelo menos, “canções de qualidade” e a contribuir para a elevação dos padrões estéticos; o segundo sabe que é ridículo ou até grotesco e tira prazer da farsa e do fingimento e de exagerar o ridículo e o grotesco.
No livro Kitsch and art (1996), Tomáš Kulka faz o kitsch depender da reunião de três condições:
1) O tema é belo ou fortemente imbuído de emoção;
2) O tema é de identificação fácil e imediata;
3) A obra não enriquece ou aprofunda o nosso entendimento do tema.
O kitsch na música do nosso tempo
Munidos destas definições e precisões, podemos regressar ao mundo da música e tentar perceber onde está o kitsch e o que o separa do camp.
Conchita Wurst, Lady Gaga ou Nicki Minaj – ou os pioneiros Village People – são paradigmas do camp na música. São canastrões que sabem que o são, que cultivam o mau-gosto ostensivamente e que se deleitam em ser exuberantes, bizarros e “flamejantes”.
Nos antípodas do camp está o kitsch solene e grandiloquente de Ludovico Einaudi (n. 1955) e Max Richter (n. 1966): música que aspira a ser solene e nobre, decalcada dos modelos do Classicismo e do Romantismo, mas numa cópia superficial, inepta e diluída (ver Max Richter: Esta música precisa de receita médica?). Há quase sempre um piano ondulante e encantatório, um violoncelo lamentoso, um coro de violinos elegíacos, um véu azul-cerúleo de sintetizador; Richter gosta ainda de polvilhar esta mousse pegajosa com raspas de electrónica, crepitações de estática e ruído ambiente.
[“Primavera”, de Ludovico Einaudi: sim, estas flores têm um ar sempre viçoso, mas é porque são de plástico]
O mais surpreendente no sucesso de público e de crítica de Einaudi e Richter não é a indigência do truque, é o facto de este já ter sido usado muitas vezes. Podemos encontrar os seus antecedentes nas orquestras de Paul Mauriat (1925-2006) e Frank Pourcel (1913-2000), campeões do easy listening orquestral e da diluição de fronteiras entre música popular e erudita, com as suas versões pré-mastigadas, simplificadas e edulcoradas de trechos célebres do cânone clássico, as suas orquestrações pomposas e insufladas de êxitos pop e as suas releituras de trechos célebres de bandas sonoras de cinema.
[“Nessun dorma”, da Tosca de Puccini, na versão de Franck Pourcel: como fazer desaparecer uma bela ária sob uma espessa cobertura de glacé]
https://youtu.be/jmPhUc7nY4o
Antes já Mantovani (1905-1980) tinha desbravado esse caminho com sucesso – foi o detentor dos recordes de vendas de discos no Reino Unido, até à explosão dos Beatles, e em 1959 conseguiu a proeza de ter, em simultâneo, seis álbuns no Top 30 dos EUA. As hostes da música-ligeira-a-fingir-se-séria seriam depois “enriquecidas” com a estridente James Last Orchestra, dirigida por Hans Last (1929-2015), e com o piano de alcaçuz de Richard Clayderman (n. 1959).
[“L’amour est bleu”, composição de André Popp, que foi, na versão cantada por Vicky Leandros, a representante do Luxemburgo ao Festival Eurovisão de 1967; na versão desse mesmo ano pela orquestra de Paul Mauriat e com o título “Love is blue” (a que se ouve neste videoclip), chegou a n.º 1 do top de singles dos EUA. Havia quem defendesse que este tipo de música serve de porta de entrada do público para a música “erudita”. É uma ideia demasiado generosa: o kitsch não conduz a lado algum, é um beco sem saída]
Na segunda metade dos anos 70 e na década de 1980, o advento dos sintetizadores e o embeiçamento das massas com a tecnologia (puxada pela disseminação do “computador pessoal”) levou à ascensão dos gurus do sinfonismo electrónico, como Vangelis e Jean-Michel Jarre (n. 1948). Hoje estão ambos tão fora de moda como o mobiliário em fórmica, mas o primeiro fez furor com os seus concertos histéricos e hipertecnológicos, com mais explosões e feixes de raios laser do que uma batalha de Star Wars; o segundo teve os seus momentos de glória com as balofas bandas sonoras para os filmes (também eles a deslizar para o lado do kitsch) Chariots of fire (1981) e 1492: The conquest of Paradise (1992).
[Tema de abertura de 1492: The conquest of Paradise, de Vangelis]
https://youtu.be/94dY-QxjDiE
Vangelis não trouxe alterações substanciais às bandas sonoras do cinema, limitou-se a substituir a orquestra tradicional por sintetizadores e sequenciadores. Vangelis e os outros “magos” da electrónica não podem ser acusados de ter tornado kitsch a música para cinema, pois esta sempre tinha sido, na sua essência, uma versão derivativa e abastardada da tradição sinfónica ocidental. Não quer isto dizer que não seja eficaz como banda sonora, mas revela a sua pobreza e falsidade quando ouvida fora do contexto do filme.
Torna-se oportuno recordar a indispensável componente do kitsch que é a pretensão: enquanto uma banda sonora orquestral é apenas uma peça no todo que é o filme, não é kitsch, nem sequer é pertinente fazer reparos à sua escassa substância ou aos seus truques já muito vistos – só interessa se ela cumpre a sua função na “obra de arte total” que é o filme. Mas passa a integrar a categoria do kitsch quando tem a presunção de se assumir como obra musical autónoma e é editada em disco. Fenómeno similar ocorre com as letras das canções pop: enquanto se limitam a ser isso mesmo, cumprem condignamente a sua função, mas quando são coligidas em livro e lidas como poesia, a sua fraca qualidade literária torna-se (salvo raras excepções) gritante.
Além de ser uma versão empobrecida de modelos sinfónicos clássicos, românticos e impressionistas, a música orquestral para filmes é quase sempre enfática e grandiloquente – um defeito em que os políticos (ou os seus especialistas de comunicação, “marqueteiros” e consultores de imagem) vêem uma qualidade, repescando os trechos de atmosfera mais nobre e heróica dessas bandas sonoras para galvanizar as massas em comícios e outras acções de propaganda. Ao ser posta ao serviço da angariação de votos e do engrandecimento de figuras que pouco têm de nobre ou heróico, a música para filmes desce mais uns patamares nos círculos infernais do kitsch.
[O re-kitsch: a banda sonora kitsch de O gladiador (2000), composta por Hans Zimmer, é recauchutada e posta ao serviço da glorificação de realizações como o Cartão do Cidadão e os computadores Magalhães]
https://youtu.be/QS_LlDOW2Ns
Os tempos e os gostos mudam, mas o apetite por kitsch é insaciável, pelo que, em cada época, há sempre compositores a fabricá-lo de acordo com as aspirações do público. O apetite por kitsch dos nossos dias pede pathos e gravitas (um simulacro de pathos e gravitas, entenda-se, ninguém quer ficar realmente deprimido ou perder-se em cogitações sobre o sentido da vida). O kitsch de Mantovani, Mauriat e Last era alegre, colorido e espalhafatoso e vivia de parasitar êxitos alheios, Einaudi e Richter são sorumbáticos, cinzentos e solenes e compõem a sua própria música – são vistos como criadores e até mesmo como desbravadores de novas vias estéticas (por quem não conheça os modelos de que derivam, alguns dos quais já são, eles mesmos, um ersatz).
Apesar de Einaudi e Richter fabricarem o seu ponderoso kitsch em quantidades copiosas, o mercado tem lugar para produtos quase idênticos, como Ólafur Arnalds (n. 1986) e Jóhann Jóhannsson (1969). Não é despiciendo que Jóhannsson e Richter tenham sido acolhidos no catálogo da Deutsche Grammophon, o que equivale a um certificado de qualidade e de pertença a uma elite (e vale a pena registar, para termos noção das mudanças operadas, que nunca a veneranda editora da “marca amarela” se rebaixou a conceder tal honra a Mantovani ou a Mauriat).
[“A pile of dust”, do álbum Orphée (2016), de Jóhann Jóhannsson: tédio irrepreensivelmente chique]
Estes “atestados de qualidade” têm repercussão profunda na forma como público e crítica recebem as obras dos compositores “agraciados”: é hoje frequente que críticos respeitáveis coloquem Jóhannsson e Richter no mesmo plano de Beethoven e Bach. Pelo seu lado, estes compositores pseudo-eruditos também fazem questão de ser vistos como pares dos grandes compositores canónicos ao conceberem obras que pretendem entrar em diálogo com eles – são disso exemplo Recomposed, em que Richter “recompõe” As quatro estações de Vivaldi, ou The Chopin Project, de Arnalds, que dilui trechos de Chopin em água-de-rosas com açúcar.
[“Verses”, do álbum The Chopin Project (2015), de Oláfur Arnalds, a partir de Chopin]
Em tom e atmosfera, Einaudi, Richter, Arnalds e Jóhannsson não estão longe da corrente do “minimalismo sacro” (holy minimalism), também designado como “música neo-contemplativa” (neo-contemplative music), que começou a afirmar-se na viragem das décadas de 1970/80. Os seus principais representantes são o polaco Henryk Górecki (1933-2010), o letão Peteris Vasks (n. 1946), o britânico John Tavener (1944-2013) e o estónio Arvo Pärt (n. 1935). Este último merece ser considerado à parte, pois as suas primeiras obras neste registo têm originalidade e real valor, mas foi deslizando, pouco a pouco, para a beatice delicodoce e para a repetição de fórmulas.
[“Song of the Angel” (1994), de John Tavener, por Patricia Rozario (soprano) e Andrew Manze (violino): espiritualidade pasteurizada e empacotada no vácuo]
Nas fileiras da escola minimal-repetitiva encontramos compositores que são maçadores e avaros de ideias – como Steve Reich (n. 1936) e Terry Riley (n. 1935) – mas não são kitsch, mas também dois dos mais obnóxios e prolíficos fabricantes de kitsch: Philip Glass (n. 1937) e Michael Nyman (n. 1944) (ver Steve Reich aos 80: O disco não está riscado e Philip Glass aos 80: Onde é que já ouvimos esta música?).
Num patamar inferior do kitsch está o violinista holandês André Rieu (n. 1949), que é demasiado canastrão para agradar ao público (supostamente) high brow que se deleita com Richter e Nyman. O repertório de Rieu é uma mixórdia inenarrável, onde entra tudo desde que seja popular e alegre e permita ao público bater palmas a compasso: êxitos da “música ligeira”, marchas escocesas, canções de Natal, trechos de bandas sonoras de cinema e lugares-comuns do repertório “erudito” – sobretudo valsas, polcas e galopes da família Strauss, em relação aos quais é oportuno retomar uma frase de Karpfen: eram kitsch na época em que foram feitos e continuam a ser kitsch hoje.
As tournées de Rieu rivalizam em espectacularidade e receitas com as das maiores estrelas da pop e do rap e o palco da tournée de 2008 de Rieu (que era, à data, o maior palco da história das tournées musicais) tinha por pano de fundo uma reprodução em tamanho natural do palácio de Schönbrunn, em Viena, cuja construção se iniciou no século XVII, mas que, para efeito deste espectáculo, interessa associar exclusivamente à valsante e glamourosa princesa Sissi (1837-1898).
[A tournée de 2008 de André Rieu. Foi preciso um visionário como Rieu para nos revelar o segredo do Bolero de Ravel: aquele repetitivo e interminável crescendo é, afinal, uma representação musical do acto sexual. Atente-se no orgasmo feérico aos 4’40’’ do vídeo]
Tudo na figura pública de Rieu, nos seus espectáculos e na apresentação dos seus discos é tão exuberante e excessivo que está a um passo do camp. Mas as massas que acorrem para ouvi-lo fazem-no sem qualquer ironia: estão convencidas de que estão a aceder à Alta Cultura e interpretam todo aquele circo grotesco como o nec plus ultra do bom-gosto. Entre as centenas de milhares de espectadores que acorrem anualmente aos concertos de Rieu não há um que fosse capaz de declarar (ou de pensar) “paguei caro pelo bilhete mas vale bem a pena, pois aquilo é tão pavorosamente foleiro que se torna incrivelmente divertido”.
E o que pensará o próprio Rieu do seu número? É indiferente: quer ele acredite piamente que tudo aquilo é do mais requintado gosto, quer alinhe na farsa de forma cínica apenas por saber que ela arrasta multidões e o faz facturar tanto quanto Justin Bieber ou Beyoncé, o que importa é que, para o exterior, ele desempenha, sem vestígio de ironia (ou auto-ironia), os papéis de “grande violinista clássico” e de “mediador entre as massas e a Grande Música”. Estamos pois inequivocamente ancorados no kitsch, apesar de o camp estar mesmo ao lado.
[“Bésame mucho”, por Laura Engel e pela orquestra de André Rieu, ao vivo em Maastricht: como uma anódina cançoneta pode ser carregada de atavios, laçarotes e maneirismos até se transformar em algo de horripilante. Atente-se nos rostos compenetrados e comovidos dos espectadores e nas lágrimas, sinais inequívocos que estamos no campo do kitsch e não do camp)]
Considerações finais
Para quem queira aprofundar a reflexão, é recomendável a leitura de Masscult & midcult: Essays against the American grain, uma compilação de textos publicados entre 1952 e 1972 por Dwight Macdonald, e os capítulos “Cultura de massas e níveis de cultura” e “A estrutura do mau gosto”, de Apocalípticos e integrados (1964), de Umberto Eco, que são considerados marcos fundamentais na análise do kitsch e do seu parente (ou sinónimo) midcult.
Fora do domínio académico, muitos têm sido os pensadores a dedicar atenção ao kitsch e entre elas contam-se alguns artistas, que, tendo consagrado a vida à demanda da verdade artística, se preocupam, inevitavelmente, com a proliferação da falsidade artística. Um deles é Alfred Brendel, que além de ter tido notável carreira como pianista, tem publicado poesia e ensaios sobre música e nos deixou, em The veil of order, uma longa conversa/entrevista com Martin Mayer, uma brilhante síntese do seu entendimento do kitsch: “O carácter cómico e desconcertante do kitsch aparece na desproporção entre a pretensão e a realização. O solene converte-se em irrisório, o engenhoso em banal. Tem sempre lugar nas margens da arte: literatura, teatro, cinema, artes plásticas, música. As minhas defesas perante o kitsch aguçaram a minha capacidade para distinguir o autêntico e o falso, o cómico e o ridículo. Ele pode ser doce ou amargo, reflexivo ou frívolo, respeitoso ou obsceno. O kitsch mais presente continua a ser o que julga falar em nome dos valores e das virtudes, do bom e do belo, da moralidade burguesa, do gosto ‘refinado’, do patriotismo e da religião. Kitsch, o grande harmonizador, o que tem confiança em si mesmo: onde fala o coração deve calar-se o intelecto. Kitsch, emoção excessiva, sentimento em segunda mão”.
O kitsch é, portanto, não só uma falsificação dos elementos formais de um dado estilo ou corrente estética, a reprodução de um estereótipo, é também uma falsificação emocional, pois faz acompanhar o objecto/obra da respectiva reacção emocional (pré-fabricada, estereotipada), dispensando a intervenção do intelecto do receptor. No ensaio A arte do romance (1986), Kundera definiu kitsch como “o não pensamento das ideias feitas”.
[O poder lacrimogéneo do kitsch: “O mio babbino caro”, da ópera Gianni Schicchi (1918), de Giacomo Puccini, numa versão edulcorada por Amira Willighagen (poderá haver algo mais comovente do que uma criança angelical?) e pela orquestra de André Rieu]
Apesar da ferocidade das suas invectivas contra o kitsch, Kundera escreve, em A insustentável leveza do ser: “no momento em que é reconhecido como mentira, o kitsch […] perde o seu poder autoritário e torna-se comovente como qualquer outra fraqueza humana. Porque nenhum de nós é o super-homem e escapa totalmente ao kitsch. Por muito que o desprezemos, o kitsch não deixa de ser parte integrante da condição humana”.
Assim sendo, o kitsch não pode ser visto como um conceito estático – escreve Pascal Bruckner, em L’euphorie perpétuelle (2000, traduzido em Portugal como A euforia perpétua), que “a única vulgaridade intolerável é aquela que se ignora a si mesma, se disfarça sob os ouropéis da elegância e do bom gosto e estigmatiza a grosseria dos outros. Porque a vida quotidiana é sempre kitsch, está sempre ligado a um bricabraque de sonhos risíveis, ao pechisbeque universal. É por isso que a felicidade de uns é o kitsch dos outros; assim que um modo de vida é adoptado pelas classes médias, é de imediato descartado pelas elites”.
Também Fritz Karpfen admite que “os homens no meio da miséria aspiram, porém, ao kitsch, pois faz parte da sua vida, como a zurrapa e o bordel, como uma mistela barata, boa para emborcar. Mas é no meio da humanidade que vivemos. Todos os que imaginam estar acima das massas […] aspiram à doçura leve das representações kitsch. Nem sempre bebemos […] a água cristalina da natureza e o vinho perlado; exigimos bagaço forte e cerveja barata […] Gostamos do vulgar e gozamo-lo com vulgaridade, caso contrário, a nossa humanidade seria uma mentira […]. Fruímos o kitsch e, com frequência […], só através dele experimentamos o milagre da arte […] O escuro não pode recobrir o claro; o bem tem de ser mais poderoso que o mal. Mas também do escuro temos necessidade, pois os nossos olhos ficariam cegos perante a pura claridade, e o mal foi criado por Deus para que reconheçamos o bem”.
[“A canção dos anjos” (1881), de William-Adolphe Bouguereau: Jesus finge que dorme, mas planeia vingar-se: quando for adolescente irá formar uma banda de death metal]
Cada um tem a liberdade de consumir o kitsch, o camp e a “música de qualidade” que entender adequada à sua natureza, aos seus interesses, ao seu estado de espírito e ao contexto – desde que não se deixe enganar pelos rótulos e não acabe a beber zurrapa convencido de que é um Château Mouton Rothschild de 1945.