A palavra ‘lusofonia’ é um substantivo abstracto que pretende designar a qualidade de falar português. É possível que haja uma qualidade de falar português, no sentido trivial do termo; mas é tão trivial como a qualidade de falar finlandês ou swahili.  Ora a palavra ‘lusofonia’ é usada na acepção de que falar português não é trivial; está ligada à ideia de que as pessoas que falam português são especiais.

Em que sentido e em relação a quem serão os falantes de português especiais? A maioria das pessoas que usa o termo ‘lusofonia’ possivelmente não achará que os falantes do português pertençam a uma espécie biológica diferente da dos falantes de swahili ou finlandês; e têm razão. Mas acham que são especiais, e sobretudo que entre todos os falantes do português existe uma relação especial, que se deve ao facto de todos falarem português.

Esta teoria não se percebe bem. É parecida com a teoria de que todos os ruivos ou todos os coxos estão unidos por uma relação especial; e que os ruivos devem lealdade aos ruivos, e os coxos aos coxos. A analogia não é injustificada: tal como ser-se ruivo, ou ser-se coxo, falar português é uma condição infrequente que não tem a ver com os méritos de quem a satisfaz. Fala-se português por casualidade. Ora o que pode ser uma relação especial entre pessoas que devem ao acaso estar nessa relação?

Falar uma mesma língua, além de não ser mérito de quem a fala, pode ser feito de muitas maneiras:  muitos falantes de português só dizem disparates; outros mentem; uma minoria substancial escreve romances autobiográficos. É o meu dever de lusofonia aplicável aos meus colegas de língua que só dizem disparates? É a minha solidariedade de ruivo extensível aos ruivos que batem na família? Tal como não sinto qualquer afinidade com os meus colegas ruivos que batem na família, assim não me parece justificado sentir um dever especial para com os autores de disparates em português.

A conclusão tem uma aplicação evidente no campo das relações internacionais: sob o conceito de lusofonia disfarçam-se algumas das companhias mais indesejáveis da nossa política externa, e algumas das organizações mais ineptas da longa lista de organizações ineptas que povoa o direito internacional público. Não se quer com isso dizer que a política externa não envolva muitas vezes andar em companhias indesejáveis; na maioria das vezes implica mesmo almoços constantes com quem nunca se jantaria.  Mas parece um exagero justificar essas companhias só porque os barulhos que saem das suas bocas são parecidos com os nossos, tal como parece despropositado justificar a nossa afeição por mentirosos ou por coxos simplesmente pelo facto de, por mero acaso, nos acontecer a nós sermos coxos e mentirosos.

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