Aconteceu. Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos. Era impensável que tivesse ganho as primárias do partido republicano – mas ganhou-as e todos culparam a divisão dos adversários. Era ainda mais impensável que ganhasse a corrida à Casa Branca, e ganhou-a. E agora não há bodes expiatórios: a adversária era a mais preparada candidata que os democratas podiam escolher, teve todos com ela – incluindo Barack e Michele Obama –, dispunha da mais poderosa máquina eleitoral e tinha mais dinheiro.
Mesmo assim, aconteceu.
E agora que aconteceu não vale a pena prever o apocalipse. Porque não vai acontecer. O momento é de espanto e choque, mas continuo a acreditar que a democracia americana não deixará de ser a democracia americana, e se há coisa que a caracteriza é o princípio da limitação de poderes. A fidelidade aos “checks and balances”. O presidente, o “homem mais poderoso do mundo”, não é omnipotente: Trump não actuará a seu bel prazer, mesmo que a sua surpreendente vitória o tenha creditado com uma autoridade pessoal que nunca pensámos possível. Ele já não é um homem sozinho, pois representa o movimento que o elegeu. Mas ele também não é um vencedor solitário, pois os republicanos também conseguiram conservar maiorias na Câmara dos Representantes e no Senado, por vezes com votações mais expressivas que as de Trump. Serão — têm de ser — o seu contrapeso.
O importante, agora, é perceber o que aconteceu e começar a tentar perceber o que pode vir a seguir.
O que aconteceu foi algo que antevi nos dias que passei nos Estados Unidos no passado mês de Julho, sobretudo nas regiões afectadas pela desindustrialização: Donald Trump estava a falar, e a ser ouvido, por legiões de americanos que se sentiam e sentem esquecidos por Washington e pelas elites políticas. Gente que se sente estrangeira no seu próprio país, trabalhadores preocupados com a perda das suas indústrias e dos seus empregos, famílias que tinham visto frustradas as suas expectativas de uma vida melhor. E não, não estamos a falar de grunhos sem educação, mesmo que os houvesse – estamos a falar da classe média baixa branca, de eleitores tradicionais do partido democrata.
O que aconteceu é que um político sem experiência, imprevisível, muitas vezes grotesco, foi capaz de se identificar com aquela parte da América de que os jornais não falam e que as televisões não mostram, uma América aflita e zangada. Foi essa capacidade de falar a esses eleitores que lhe permitiu ganhar as primárias republicanas e, depois, mobilizar suficientes eleitores para desautorizar as sondagens e bater Hillary sem apelo nem agravo.
O que aconteceu – o que está a acontecer há muito tempo – é que cresce nas nossas sociedades o desconforto com fórmulas económicas e políticas que não dão a uma parte importante da cidadania a percepção de que controlam os seus destinos e os seus governos. Esse mal-estar não é um exclusivo dos Estados Unidos, está também muito presente na Europa, e tende a explodir quando surgem factores externos de pressão como uma crise económica ou uma vaga migratória, um atentado terrorista ou uma vaga de criminalidade.
Mas, atenção: o populismo, mesmo que tantas vezes grotesco, de Donald Trump não é um fascismo. Tal como a América de 2016 não é a Itália de 1920. As instituições americanas têm uma solidez que não existia na Europa dos anos negros das décadas 20 e 30 do século passado.
Não se misture o que não pode ser misturado, pois isso conduzir-nos-á a erros maiores no futuro. Se com esta eleição entramos num mundo que não conhecemos, porque não conhecemos as regras de Trump – ou sequer se tem regras –, a verdade é que o mais importante é, por um lado, obrigá-lo a seguir as regras do jogo, em especial na frente internacional, e, por outro lado, compreender que o triunfo de Trump, assim como o triunfo de outros populismos, corresponde ao fracasso dos políticos e partidos moderados, de esquerda e de direita, à sua incapacidade de falarem com sectores cada vez mais importantes do eleitorado. E que é isso que temos de mudar, não imitando o populismo, ou promovendo uma variante esquerdista do populismo, antes mostrando como o nosso mundo imperfeito é muito melhor do que as quimeras prometidas pelos demagogos.
Como disse no início, não há bodes expiatórios, Donald Trump teve quem lhe desse boa luta. O que há, isso sim, é um enorme vazio de boas respostas – aquelas que temos de dar aos que foram votar Trump para acabar com a política tal como a conhecemos. Os que têm de ser reconquistados para uma agenda reformista e moderada, sem milagres mas com esperança.
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