“Fátima é, sem dúvida, a mais profética das aparições modernas” – lê-se n’A mensagem de Fátima, da Congregação para a Doutrina da Fé, publicada a 26-6-2000, pouco mais de um mês depois da revelação, pelo Cardeal Ângelo Sodano, da terceira parte do segredo de Fátima, na celebração eucarística, presidida por São João Paulo II, em que foram beatificados os pastorinhos Francisco e Jacinta Marto, na Cova da Iria, a 13 de Maio de 2000.
A primeira e a segunda parte do segredo eram há já muito conhecidas e, segundo o mesmo texto, “dizem respeito antes de mais à pavorosa visão do inferno, à devoção ao Imaculado Coração de Maria, à segunda guerra mundial, e depois ao prenúncio dos danos imensos que a Rússia, com a sua defecção da fé cristã e adesão ao totalitarismo comunista, haveria de causar à humanidade”. Como nesse documento também se afirma, “em 1917, ninguém poderia ter imaginado tudo isto: os três pastorinhos de Fátima vêem, ouvem, memorizam, e Lúcia, a testemunha sobrevivente, quando recebe a ordem do Bispo de Leiria e a autorização de Nossa Senhora, põe por escrito”.
Muito se especulou sobre a terceira parte do segredo de Fátima, escrito pela Irmã Lúcia e guardado nos arquivos do Vaticano. Os papas São João XXIII e Beato Paulo VI tiveram conhecimento do seu teor, mas decidiram não o revelar. Depois do atentado que São João Paulo II sofreu, na praça de São Pedro, em Roma, a 13 de Maio de 1981, precisamente no aniversário da primeira aparição na Cova da Iria, este papa, ainda convalescente, leu a terceira parte do segredo de Fátima que, contudo, continuaria secreta por mais dezanove anos, pois só viria a ser revelada a 13 de Maio de 2000, na Cova da Iria, por ocasião da beatificação dos dois videntes mais novos.
A este propósito, o referido documento dessa congregação romana reconhece: “Quem lê com atenção o texto do chamado terceiro «segredo» de Fátima, que depois de longo tempo, por disposição do Santo Padre, é aqui publicado integralmente, ficará presumivelmente desiludido ou maravilhado depois de todas as especulações que foram feitas. Não é revelado nenhum grande mistério; o véu do futuro não é rasgado. Vemos a Igreja dos mártires deste século que está para findar, representada através duma cena descrita numa linguagem simbólica de difícil decifração.”
Talvez, mais do que a maravilha dos crentes, tenha prevalecido a desilusão por parte dos agnósticos e ateus, se não mesmo a decepção também de alguns fiéis. A terceira parte do segredo de Fátima previa que um “Bispo vestido de branco” morresse, como consequência de um atentado. Se o “Bispo vestido de branco” é o papa, como também a vidente reconheceu, dever-se-ia ter verificado, depois de 1917, algum atentado contra um romano pontífice, de que tivesse resultado a sua morte. Ora, como já se recordou, São João Paulo II, embora gravemente ferido depois de alvejado por Ali Agca, na Praça de São Pedro, a 13 de Maio de 1981, não só não morreu como viveu mais 23 anos, pois viria a falecer em 2005. Que dizer então de uma profecia que prevê a morte violenta de um papa quando esta, na realidade, não acontece?! Se o facto que anuncia não se realiza, a conclusão parece óbvia: não pode ser, portanto, uma verdadeira profecia!
Foi esta uma das questões a que o então perfeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Cardeal Joseph Ratzinger, respondeu no seu comentário teológico ao manuscrito da Irmã Lúcia sobre a terceira parte do segredo de Fátima, que já tinha sido sumariamente revelado pelo Cardeal Ângelo Sodano, na missa da beatificação dos pastorinhos Marto, a 13 de Maio de 2000, em Fátima.
Para melhor compreender o sentido do texto da vidente, Tarcísio Bertone, que era então Secretário da Congregação para a Doutrina da Fé e depois viria a ser Cardeal Secretário de Estado do Papa Bento XVI, foi expressamente ao Carmelo de Coimbra, entrevistar-se com a Irmã Lúcia. “Quanto à passagem relativa ao Bispo vestido de branco, isto é, ao Santo Padre — como logo perceberam os pastorinhos durante a «visão» — que é ferido de morte e cai por terra, a irmã Lúcia concorda plenamente com a afirmação do Papa (João Paulo II): «Foi uma mão materna que guiou a trajectória da bala e o Santo Padre agonizante deteve-se no limiar da morte» (João Paulo II, Meditação com os Bispos Italianos, a partir da Policlínica Gemelli, 13 de Maio de 1994)”.
Segundo o Cardeal Ratzinger, a terceira parte do segredo de Fátima “constitui uma visão profética comparável às da Sagrada Escritura, que não descrevem de forma fotográfica os detalhes dos acontecimentos futuros, mas sintetizam e condensam sobre a mesma linha de fundo factos que se prolongam no tempo, numa sucessão e duração não especificadas. Em consequência, a chave de leitura do texto só pode ser de carácter simbólico”.
Quer isto dizer, em suma, que há que privilegiar uma interpretação não literal e, neste sentido, a anunciada morte do “Bispo vestido de branco”, que é um papa, é uma metáfora para o atentado mortal de que foi vítima. Se o seu falecimento não se chegou, de facto, a verificar foi graças a Nossa Senhora, segundo expressão muitas vezes repetida pelo próprio Karol Wojtyla: “foi uma mão materna que guiou a trajectória da bala e o Santo Padre agonizante deteve-se no limiar da morte”.
Que o atentado era mortal, não restam quaisquer dúvidas. O seu autor, um assassino profissional, Ali Agca, nunca chegou a compreender por que razão São João Paulo II não morreu quando contra ele disparou à queima-roupa, acertando no alvo. Quando ambos se encontraram, na prisão italiana onde cumpria pena, não pediu perdão ao Papa, nem confessou a sua culpa, mas perguntou-lhe o que era Fátima, pois não se explicava a sobrevivência de João Paulo II. Por essa razão, o Papa Wojtyla ofereceu a Fátima a bala que quase o matou e que, desde então, por feliz decisão de D. Alberto Cosme do Amaral, primeiro Bispo de Leiria-Fátima, está encastoada na coroa de Nossa Senhora.
Se é verdade, portanto, que na terceira parte do segredo de Fátima se previa a morte de um papa, não é certo que essa profecia não se tenha cumprido, não só porque a linguagem simbólica usada não era susceptível de uma interpretação literal, mas também porque o atentado que vitimou São João Paulo II cumpriu, segundo o juízo da vidente e do próprio papa, o que de essencial nessa parte do segredo se predissera.
“Chegamos assim” – pela mão de Bento XVI, quando ainda era o Cardeal Joseph Ratzinger – “a uma última pergunta: Que significa no seu conjunto (nas suas três partes) o «segredo» de Fátima? O que é nos diz a nós? (…) Quem estava à espera de impressionantes revelações apocalípticas sobre o fim do mundo ou sobre o futuro desenrolar da história, deve ter ficado desiludido. Fátima não oferece tais satisfações à nossa curiosidade como, aliás, a fé cristã em geral, que não pretende nem pode ser alimento para a nossa curiosidade. O que permanece (…) é a exortação à oração como caminho para a «salvação das almas», e no mesmo sentido o apelo à penitência e à conversão.”