Há coisas que fazemos, coisas que temos e coisas que nos acontecem. Fazemos um bolo, temos um sonho e acontece-nos apanhar uma constipação. Quando apanhamos uma constipação dizemos que temos uma constipação; mas quando temos um sonho não dizemos que apanhámos um sonho; e muito menos que fizemos um sonho. Quando fazemos um bolo, entretanto, parece exagerado dizer que o bolo nos aconteceu (como uma constipação) ou que tivemos um bolo (como quem tem um sonho).
Tudo o que fazemos, temos e nos acontece tem causas, mas na maior parte dos casos não nos preocupa muito conhecê-las. De facto as causas do bolo que eu fiz são as normais; incluem as propriedades físicas do açúcar e a decisão que tomei de fazer um bolo. Mas pode ser instrutivo conhecer as causas de um sonho, ou de uma constipação. Sabemos por exemplo que nenhum sonho se deve à nossa decisão de o ter. E sabemos mais ou menos como se apanha uma constipação, embora regra geral não as apanhemos de propósito.
A maior parte das pessoas nunca confunde fazer, ter e acontecer. Existem no entanto casos excepcionais. Um caso é o do cozinheiro inspirado. Observamos o cozinheiro inspirado a fazer um bolo; parece-nos a nós que o bolo foi feito por ele. O cozinheiro não nega que seja esse o caso; mas os bolos extraordinários, os bolos realmente bons, não são em sua opinião realmente feitos: são apanhados como uma constipação, ou tidos como um sonho. Desculpamos estas teorias, comuns a muitos outros artistas, porque as nossas vidas civis melhoram muito com as coisas que eles fazem. Uma obra de arte vale bem uma opinião exagerada.
Um caso diferente é o das pessoas que acham que nunca ninguém pode realmente fazer nada. São as pessoas que acham que tudo aquilo que fazemos não é realmente feito por nós; e que tudo aquilo que não fazemos, para nossa desgraça, nos acontece. A doença é conhecida desde a Antiguidade por panteísmo; consiste em imaginar que tudo o que se passa neste mundo resulta da acção de agentes maléficos e irrequietos. Entre estes agentes, que se escondem nas fontes, nas grutas e nas árvores como ninfas, os mais temidos, para nos limitarmos ao género feminino, são hoje a Autoridade Tributária, as Leis da História e a Senhora Alemã.
Para os panteístas existe uma divisão de trabalho entre as entidades numerosas em que acreditam e eles próprios. As entidades fazem coisas; a eles acontecem-lhes as coisas que as entidades fazem. A sua perspectiva não é a do cozinheiro inspirado, grato aos deuses de uma forma amável: é a de alguém que se imagina sempre manipulado por criaturas que não controla. Os panteístas vivem num mundo exíguo, povoado por monstros mitológicos invisíveis com extraordinárias capacidades de intervenção. Não fazem nada, não têm nada, tudo lhes acontece