Vem sendo noticiado que a primeira autorização de gestação de substituição (vulgarmente designada por “barriga de aluguer”) em Portugal, ao abrigo da recente alteração legislativa, diz respeito a uma gestação por parte da mãe da mulher que dela beneficiará.

Dir-se-á que está assim garantida a exclusão de qualquer forma de aproveitamento comercial, ou de exploração da vulnerabilidade da mãe gestante, situação muito frequente, sobretudo em países pobres, e que justifica a maior parte das críticas a esta prática.

Mas outros são, e não menos graves, os problemas suscitados por este outro tipo de gestação de substituição, por vezes designado como de proximidade. Problemas a que não tem sido dada a devida atenção, como se o afeto que une todas as partes envolvidas (avó, mãe e filho) tudo cobrisse e resolvesse.

São dignos de todo o respeito os sentimentos e as intenções das pessoas envolvidas neste caso. Mas isso não nos impede de analisar com objetividade todas as sua implicações.

A respeitável intenção de ter um filho não pode levar a fazer deste um objeto de um desejo ou de um direito, a satisfazer esquecendo ou ultrapassado o seu supremo bem.

Por outro lado, impõe-se reconhecer a verdade das coisas: a mulher requerente ou beneficiária da gestação de substituição, a quem a gestação possa estar vedada por razões de saúde, nunca poderá viver a experiência da maternidade em toda as suas dimensões (poderá vivê-la nalgumas dessas dimensões, como pode a mãe adotante, sendo que esta alternativa da adoção não suscita nenhum dos problemas éticos que suscita a gestação de substituição) e não adianta criar a ilusão de que assim é.

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Mas o maior dano de uma situação como a que poderá vir a ser legalmente autorizada é a do chamado “curto-circuito geracional”.

Não sou especialista na matéria, mas penso que o simples bom senso me permite a reflexão seguinte.

A gestação não pode ser encarada como uma qualquer atividade de prestação de serviços, ou como a que é própria de uma máquina incubadora.

Entre a mulher gestante e a criança de que será avó criam-se, durante a gestação, os laços (profundos, físicos e psíquicos) que são próprios de uma mãe, e não de uma avó. Esses laços são indeléveis, nunca poderão ser apagados, tanto mais que, ao contrário do que se verifica noutras situações, em que a mulher gestante abandona (é obrigada a tal) a criança à nascença, aqui o relacionamento entre a avó (mãe de substituição) e a criança há de manter-se durante todo o crescimento desta. Esse relacionamento nunca será o que é próprio de avó e neto, que deve ser próximo, mas que também exige algum desapego e distância, para não afetar o natural relacionamento entre mãe e filho. Esse desapego e essa distância não existirão, ou serão muito mais difíceis.

Surgirão, assim, de forma confusa e concorrente, uma “avó” e uma “mãe” que disputam os laços próprios da maternidade. Poderá aqui dizer-se que “mãe só há uma”?

Nem se diga que o afeto entre avó, mãe e neto tudo resolve, porque o amor é indistinto (“tudo é amor”). Não, o amor não é indistinto. O amor tem as suas especificidades. O amor entre mãe e filho não se confunde (não pode, nem deve, confundir-se) com o amor entre avó e neto. Como não se confundem o amor materno, paterno, conjugal ou fraternal (estaria legitimado o incesto se assim fosse). É uma questão de “ecologia humana”.

Este tipo de experiência de gestação de substituição, que se pretende seja legalmente autorizado, e as consequências que possa ter no desenvolvimento da criança, é, como facilmente se pode intuir, de desfecho incerto. É inegável que envolve riscos. Porque está em jogo o bem dessa criança, o princípio de precaução (que leva a não correr tais riscos) deveria valer aqui mais do que em qualquer outro âmbito.

Pedro Vaz Patto é presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz