A minha vida mudou numa tarde de Abril de 1992. Nessa tarde fui recebido por Fernando Guedes para uma entrevista que culminava o processo de candidatura a um emprego na Editorial Verbo. Deixou-me falar largamente enquanto me fitava com aquele seu olhar astuto e sorriso insondável. Fiquei com o lugar e, ao longo dos 18 anos seguintes, convivi com ele quase diariamente. De trato impecável, nem sempre era fácil trabalhar com ele. Cedo percebi, porém, que era sempre preferível dizer o que pensava, que argumentar não era perder tempo. E logo aprendi que, sob uma aparência inflexível, sabia reconhecer razões e ideias e valorizava quem se batia por elas. Assim cimentámos um relacionamento duradouro e cordial.

O seu percurso, indissociável da editora que fundou e dirigiu durante 50 anos, é suficientemente conhecido no meio editorial: o livro-entrevista publicado pela Booktailors, em 2012, designa-o significativamente como “figura tutelar da edição portuguesa”. É redutor, embora indispensável, recordar a publicação, nos anos 60, da Enciclopédia Verbo Juvenil e da Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, da célebre série dos Livros RTP, que em 1970 de certo modo assinalou o início da era marcelista, ou dos livros de culinária de Maria de Lourdes Modesto, com destaque para a Cozinha Tradicional Portuguesa, já nos anos 80, obras pioneiras que conheceram grande êxito e atingiram, no seu tempo, um número de vendas notável. Em todas elas se revela a visão e a dinâmica – e a intuição gráfica – do editor que haveria de presidir às principais organizações do sector, no âmbito nacional e internacional. Em 1996, a União Internacional dos Editores nomeou-o seu presidente honorário.

Naquela tarde de 1992, vi pela primeira vez, no seu gabinete, as pinturas de Fernando Lanhas, que a partir daí não cessei de admirar, mas foi apenas com o passar do tempo que a fraterna amizade que unia ambos se foi tornando mais nítida. O abstraccionismo geométrico de Lanhas, de que Guedes se ocupou num livro de 1988, e a sua própria poesia faziam parte de uma indagação estética e religiosa que os uniu numa longa cumplicidade privada e quase hermética. Em Fernando Guedes tal indagação prendia-se também com o seu particular interesse pela poesia de T. S. Eliot e Ezra Pound – tendo apresentado e traduzido ambos logo no primeiro número da Távola Redonda, no início de 1950, onde conviveram David Mourão-Ferreira, Alberto Lacerda, Couto Viana e Fernanda Botelho entre outros –, interesse que permaneceu vivo e do qual se ocupou num dos seus últimos livros, publicado em 2014.

Em 1959, o mesmo Fernando Guedes fundou e dirigiu a revista Tempo Presente, uma das poucas revistas culturais não de esquerda que existiu em Portugal, apresentando-se como “contracorrente” do que na época era dominante, onde a dicotomia passado/presente e clássico/moderno são apresentadas dinamicamente, fazendo jus aos versos de Eliot: “O tempo presente e o tempo passado/ São ambos presentes talvez no tempo futuro/ E o tempo futuro contido no tempo passado”.

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Editor, poeta, crítico de arte, ensaísta. Mas também historiador que dedicou muito do seu tempo à investigação de assuntos relacionados com a história do livro, da leitura e dos livreiros, tendo mesmo sido galardoado pela Fundação Calouste Gulbenkian. Fez ainda o pleno das Academias: foi membro das Academias das Ciências de Lisboa, Portuguesa da História e das Belas-Artes. No Brasil manteve sempre relações de natureza empresarial e cultural, mas também literária, destacando-se a amizade com Alberto da Costa e Silva ou Ledo Ivo e, em tempos mais recentes, o diálogo com Ivan Junqueira. Mesmo sem enumerar os cargos que desempenhou e as distinções de que foi alvo, chamar-lhe “príncipe renascentista” soa a lugar-comum, mas tem a virtude de, por ser comum, ser um lugar que todos os que tiveram o privilégio de trabalhar com Fernando Guedes são capazes de reconhecer.

Um dia, perante o meu entusiasmo para editar isto e aquilo, que me parecia do maior interesse, ergueu-se da secretária (do ateliê de Daciano da Costa) e levou-me até à mesa do seu gabinete onde havia uma pilha de livros, nenhum deles da editora que dirigia, e explicou-me que aqueles eram os livros que ele gostaria de editar, mas que não tinha poder para isso, pois a realidade comercial impunha regras contra as quais já não conseguia lutar. O realismo do discurso não encobria a amargura na voz. Aproximavam-se tempos difíceis. Poucos anos depois a editora haveria de mudar de mãos e o seu catálogo de entrar em acentuada decomposição. A frase do editor britânico Stanley Unwin que, emoldurada, pendia de uma parede da antecâmara do seu gabinete ganhava então uma nova realidade: “It is easy to become a publisher, but difficult to remain one; mortality in infancy is higher than in any other trade or profession“.

Jorge Colaço é editor e tradutor independente, antigo coordenador editorial da Enciclopédia Verbo