1. Quando nos recordarmos de Mário Soares, vamos recordar-nos de quê? Há políticos de que só nos recordamos dos seus melhores momentos, outros de que só lembramos os seus grandes erros.

Um caso paradigmático do primeiro grupo é Winston Churchill. Raramente recordamos a trágica determinação com que planeou o desembarque em Gallipoli, durante a I Guerra Mundial, um desastre militar que o levaria a renunciar ao lugar de Primeiro Lorde do Almirantado (uma espécie ministro da Marinha de guerra) ou o facto de não ter compreendido, depois da II Guerra, que o Reino Unido não podia manter o seu império. Em vez disso, ele passou à História, com “H” grande, como o grande líder da resistência ao totalitarismo nazi e como um dos primeiros a denunciar com clareza o que Estaline estava a fazer na Europa de Leste no pós-guerra. Ele é o primeiro-ministro do “sangue, suor e lágrimas” e alguém que, nesses anos, tinha uma absoluta claridade sobre o que era decisivo fazer para vencer a guerra (conseguir que os Estados Unidos abandonassem o seu isolacionismo) e que por isso chegou a ordenar operações militares destinadas ao fracasso e que custaram muitas vidas humanas (Max Hastings descreve primorosamente esses tempos em Os Melhores Anos).

Não tenho grandes dúvidas que Mário Soares será julgado pela História da mesma forma. E que nessa altura o que dele recordaremos antes de tudo o mais é o seu papel na defesa da democracia no período revolucionário – quando o PS foi o grande dique que impediu que se concretizasse a profecia de Henry Kissinger, isto é, que se repetisse em Portugal o destino da Rússia em 1917, quando depois de uma revolução democrática (a de Fevereiro de 1917) tudo acabou por soçobrar quando se lhe seguiu uma revolução comunista (a de Outubro). Mário Soares não foi o “Kerensky português” (Kerensky foi o socialista russo que a revolução bolchevique trucidaria), e nesse momento isso deveu-se sobretudo ao seu instinto, à sua coragem e à sua determinação. E, claro, à sua liderança do país que resistia à vertigem revolucionária.

Nesse período não sabemos o que teria acontecido se, no final de 1974, não tivesse conseguido derrotar Manuel Serra no primeiro congresso do PS. Tal como não sabemos qual o nosso destino sem a batalha contra a “unicidade” sindical (travada ao lado de Salgado Zenha no início de 1975), sem a reacção destemida à ocupação do jornal República (o momento em que a imprensa internacional percebeu, pela primeira vez, que em Portugal a nossa revolução não se fazia só de cravos), sem o grande comício da Alameda (realizado apesar das tentativas de intimidação e das barricadas improvisadas nas entradas de Lisboa), sem o desassombro de perceber que tinha no embaixador dos Estados Unidos em Lisboa, Frank Carlucci, um aliado incondicional, sem a sua aliança com os militares moderados do “Grupo dos 9”.

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Muitos recordam, desses mesmos anos de brasa, o seu papel na descolonização. Terão razões de queixa, e sabemos que ainda há muita história por fazer, mas não creio que venha a ser recordado pelos erros que aí terá cometido. O que conta, repito, sublinho, insisto, foi que em 1974/75 ele se assumiu como o grande arquitecto da resistência a uma nova ditadura, uma ditadura de sinal contrário.

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2. 1985, recta final das negociações para a entrada de Portugal da então CEE. Havia alguns dossiers mais difíceis de fechar e os responsáveis por essas pastas estavam a demorar a chegar a acordo com os parceiros europeus. Conhecedores dos temas sensíveis das suas áreas, esforçavam-se para conseguir as melhores condições para Portugal. Mas o tempo passava, passava, aproximava-se a hora limite e não havia luz verde. Até que chegou a ordem de São Bento, vinda directamente de Mário Soares: fechem como está; não quero mais atrasos; se perdermos alguma coisa no dossier X ou no no dossier Y, isso de pouco conta considerando o essencial, e o essencial é fechar o processo de adesão. Ao mesmo tempo que Espanha. A tempo de entrarmos na CEE a 1 de Janeiro de 1986.

A vida de Mário Soares está repleta de episódios como este. Nunca deu demasiada importância aos detalhes e é lendário o seu desconhecimento dos dossiers – mas por regra sabia distinguir o que era essencial.

Muitas vezes julga-se que um político é melhor ou pior em função da sua inteligência ou da sua cultura. Que o importante é que domine os pormenores técnicos e possa falar sobre tudo com conhecimento de causa e sem se engasgar. É um erro.

Não duvido que possuir estas qualidades é essencial para se ser um bom ministro, até para se ser um bom político – mas creio que o essencial é ter, nos momentos-chave, o instinto certo e a energia necessária. Ora, nos momentos-chave da nossa história recente, Mário Soares teve esse instinto e essa energia.

Isso aconteceu no Verão Quente de 1976, mas também aconteceu em 1978 quando chamou pela primeira vez o FMI e “colocou o socialismo na gaveta”; como aconteceu em 1982 quando se aliou ao PSD e CDS para acabar, numa revisão da Constituição, com a tutela dos militares sobre a democracia portuguesa; como aconteceu em 1983 quando chamou de novo o FMI e formou governo com o PSD para levar por diante uma draconiana política de austeridade; como aconteceu em 1985 quando percebeu que não podia desistir da sua candidatura presidencial mesmo quando as sondagens o davam com apenas 8% e derrotado à partida; como aconteceu em 1987 quando tomou a mais controversa decisão dos seus dois mandatos presidenciais, a de dissolver a Assembleia e convocar as eleições legislativas de que resultaria a primeira maioria absoluta de Cavaco Silva.

É verdade que em muitos momentos da sua longa vida política Mário Soares foi um homem de partido no pior sentido do termo. Em nome disso fechou os olhos a muita coisa que não devia ter tolerado, processos que porventura até alimentou. Teve momentos de sectarismo e de abuso do poder. De novo, repito, esse seu lado menos nobre empalidece ao lado do papel que desempenhou em momentos-chave das nossas quatro décadas de democracia.

Se quisermos encontrar um denominador comum capaz de explicar o que nessas alturas o motivou, então esse denominador comum foi a liberdade. Por ela se bateu em 1974 e 1975. Em nome dela não deixou que a esquerda caísse na tentação radical e terceiro-mundista em 1986, quando derrotou essas tendências na primeira volta das Presidenciais desse ano. Para ter a garantia de que nunca mais a liberdade voltaria a ser questionada fez questão de nos ancorar na Europa, na CEE, no clube onde não se toleram derivas autoritárias.

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3. Na vida travam-se muitas batalhas, umas ganham-se, outras perdem-se, e poucos disso tinham uma consciência tão clara como Mário Soares. Sobretudo quando nunca se desiste e se sabe que há um dia seguinte, e nele um outro combate.

A única batalha de que não há recuperação possível é a que se trava com os limites da nossa existência, mesmo quando o mais indestrutível optimismo nos faz crer que mesmo essa pode ser sempre vencida. Mário Soares tinha esse optimismo sem limites, até quando brincava com a morte – ou melhor, como a vida. Conta-se que um dia, quando o aconselhavam a desistir de uma batalha que parecia perdida, perguntou ao seu interlocutor se este sabia o que lhe aconteceria se saltasse da janela do segundo andar em que estavam. “Morreria com certeza”, respondeu-lhe este. “Pois eu ficaria vivo, e por isso vou em frente”. Foi e ganhou a batalha “impossível” das Presidenciais de 1986. Tal como também se conta que uma outra vez, num avião presidencial que voava no meio de uma tempestade, tratou de tranquilizar um jornalista em pânico garantindo-lhe que o avião nunca cairia porque ele ia a bordo.

Não é possível compreender Mário Soares e o que ele representou na política portuguesa nos últimos 70 anos sem ter bem presentes estas duas características pessoais: uma enorme autoconfiança e um ilimitado optimismo. A que há que acrescentar a coragem – não a coragem irresponsável de quem se crê indestrutível, mas a coragem de quem tem um sentido do destino e a convicção de se tem sempre de dar a cara na hora no combate, por mais desesperado que esse combate se apresente.

Foi essa coragem que ele colocou ao serviço de causas que pareciam perdidas, e foi em torno do seu sentido de destino que encabeçou lutas titânicas e venceu nos momentos decisivos. Tal como foi com essa mesma coragem que lutou quando estava enganado, que batalhou quando foi derrotado, porque sem o seu inquebrantável optimismo não poderia ter regressado tantas vezes à luta política, sem a sua quase ilimitada autoconfiança não se teria empenhado em lutas com pouco nexo, em especial a sua última candidatura presidencial, em 2006, quando já contava mais de 80 anos e o país lhe virou as costas.

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4. Ao longo da sua vida, Mário Soares esteve mais à esquerda, depois mais à direita, terminou a vida muito à esquerda. Mudou de opiniões por vezes por instinto, outras vezes porque é um homem genuinamente livre. Que sempre gostou ilimitadamente do que fazia e, por isso, foi político com intervenção permanente no espaço público até muito perto do fim da sua vida. Nunca foi capaz de estar parado e por isso dele sempre era possível esperar uma surpresa.

Neste momento de despedida não posso omitir que, sobretudo nos últimos anos, tive a percepção de que era alguém que não fora capaz de acompanhar o que mudara no mundo, e escrevi-o com clareza. Acredito que talvez por isso mesmo tenha vivido muitas desilusões e até chegado a mostrar, a espaços, uma amargura que não lhe era comum.

Contudo, como português, como democrata, não tenho a menor hesitação em afirmar que desapareceu alguém a quem devo muito – a quem devo imenso. Tivesse ele perdido as batalhas em que se empenhou nos primeiros anos da nossa democracia, um tempo em que de alguma forma foi o rosto de um Portugal na vanguarda – na inauguração – daquilo a Samuel P. Huntington chamou a “terceira vaga democrática”, e eu não estaria a escrever este texto. Talvez nem estivesse vivo, ou livre, ou a viver em Portugal.

Por isso, porque prezo antes de tudo a liberdade, foi em liberdade que em 2004 participei no jantar dos seus 80 anos, porventura a maior e mais comovente homenagem que recebeu em toda a sua vida. E é em liberdade que quero continuar a recordá-lo pelos seus melhores anos. Os que marcarão para sempre o seu legado.

Não foi por acaso que, a abrir este texto, escolhi como referência o mais marcante estadista do século XX, Winston Churchill. Na nossa democracia Mário Soares ocupa um idêntico lugar cimeiro.