O meu avô era médico. E pai, marido, filho, amigo, tudo o resto que a vida nos traz no seu arrastão. Mas, o que o definia era a sua profissão. Médico de clínica geral numa vila litoral algarvia começou a exercer na década de trinta do século ido. Não havia análises, nem antibióticos, os remédios eram escassos e caros. O primeiro equipamento de radiografia da vila foi ele que o comprou e muito provavelmente ter-lhe-á dado o cancro que o veio a matar. Ser-se médico era intuição, sabedoria e persistência digo eu hoje, ele dir-me-ia que ser médico, é ser médico. Define-se por si. Ele era médico.

As campainhas, quer a da porta, quer a do telefone tocavam às horas mais desvairadas, um parto, uma queda, uma febre grave… Não me lembro nunca, uma única vez do meu Avô se ter recusado a ir. Ia sempre, as chamadas mais urgentes eram para a serra, sempre para a serra. Só quem já fez a estrada que liga Mértola ao litoral é que tem uma ténue, pálida, levíssima ideia do que eram/são as estradas secundárias, perdidas nos vales e picos onde o horizonte fugiu, os trilhos e carreiros até aos montes onde viviam isoladas as pessoas. Uma paisagem desoladora, árida de fome e sede. Muitas vezes os táxis nem lá chegavam, parte do caminho era feito a pé. Regressava a desoras longas, pagava o táxi e tinha ainda deixado dinheiro para medicamentos, para o que fosse. Por vezes, refazia os passos quando o caso pedia, as vezes que fossem precisas. Era médico.

No Natal chegavam ovos, galinhas, perus e coelhos. Vindos das serranias, eles em fato domingueiro, embiocadas elas em lenços, traziam nos cabazes as ofertas esperneantes e carcarejantes. Iam para o consultório e saíam com uma consulta como agradecimento. Jamais isto era comentado, não era nem motivo de orgulho, nem generosidade, nem abnegação. Era obrigação. Era médico.

Não pertencia ao sector público de então – dispensários e outras pequenas estruturas. Não porque fosse mal pago (em princípio de vida ter-lhe-ia até sido útil), não porque as horas extraordinárias tinham sido reduzidas ou porque no privado se ganhasse melhor. Não. Não trabalhava no Estado porque recusou assinar a declaração de “repúdio do comunismo e das ideias subversivas” que Salazar impunha aos funcionários públicos. Canseira bastante já tinha viver de acordo com aquilo em que acreditava e em paz com a sua consciência. Não se comprava, nem se vendia. Encolhia os ombros e continuava na vida a fazer o que devia, o que se lhe impunha fazer. Era médico.

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No fim da vida, ainda a exercer, muito para lá de qualquer tempo de reforma, de manhã punha o chapéu e ia ver os seus doentes fiéis alquebrados como ele. Sábio, as doenças tratavam-se tanto no corpo como no espírito. Tornava regressado de uma consulta a uma velha conhecida e a minha Avó perguntava preocupada:

– Então? O que tem?

– Está sozinha, o que haveria de ser. Falámos, ficou melhor.

Neste tempo de S. Josés e lembrando o meu avô, quero saudar todos os médicos que são médicos. Não os outros, os licenciados em Medicina.

Historiadora