1. Os governos alternam, os deputados vão rodando nas cadeiras do Parlamento mas há coisas que não mudam. Uma delas é a ideia de que é com uma linha de montagem de produção legislativa que se alteram hábitos, costumes e comportamentos, no fundo que a sociedade pula e avança através de editais publicados no Diário da República.

Esta elevada produtividade dos nossos legisladores encontra, do outro lado, cidadãos ingratos, pouco ou nada disponíveis para seguir muitas dessas regras de forma voluntária. Se delas retiram benefício próprio, ainda podem reflectir sobre o assunto. Mas se elas mexem com a sua comodidade em nome do bem colectivo, é certo que o caso é perdido – o estacionamento de carros em cima dos passeios e o cocó dos cães na via pública são disso o maior símbolo.

É por isso que estamos cheios de leis que “não pegam”. Porque apesar da indiscutível bondade da maioria – quando não são paternalistas e tentam impor hábitos que devem cair na esfera de decisão individual ou familiar – não são acompanhadas de meios para as fazer cumprir com penalizações para quem as violar. Porque, goste-se ou não, é assim que as coisas funcionam num Estado de Direito.

Um exemplo desta semana, entre os muitos que podem encontrar-se. Há dois anos saiu nova lei do álcool, que proibia o consumo a menores de 18 anos. Um estudo feito agora concluiu, e socorro-me da notícia do Público, que “o consumo de álcool entre os jovens com menos de 18 anos não diminuiu e a frequência dos problemas associados – como as situações de coma alcoólico ou de sexo desprotegido – manteve-se”. Porquê? A frase seguinte da notícia dá uma pista: “Não foi reforçado o controlo em bares, discotecas ou outros locais de consumo e venda ao público de bebidas para garantir que se cumpria a lei”. Ninguém fica surpreendido com estas conclusões.

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Mas surpreende que os especialistas, paralelamente à sugestão de se reforçar a fiscalização, defendam que a lei deve ser “mais restritiva”. Se o Estado não consegue fazer cumprir o mínimo conseguirá impor o máximo? Aparentemente isso é pouco importante. Sai nova legislação, comparamos muito bem quando nos colocamos lado a lado com as regras dos países do primeiro mundo e é irrelevante que a realidade teime em manter-se inalterada, ficando cada vez mais afastada de leis laboratorialmente desenvolvidas. O Estado fica de consciência tranquila porque já fez uma, duas ou três leis sobre o assunto e considera cumprida a sua missão. Assim pode lavar as mãos da pedagogia, da sensibilização ou da educação, esses sim, caminhos para mudar comportamentos. Tal como parece não incomodar ninguém que a principal vítima desta forma de fazer as coisas seja a credibilidade do Estado e a sua capacidade para fazer cumprir regras.

2. A crise grega segue o seu curso, com posições extremas contaminadas pelo choque ideológico. É totalmente legítimo que assim seja porque não há política sem ideologia. E como se tem visto a ciência económica permite largo espaço para divergência, já que nunca tem uma racionalidade única para o mesmo assunto. Todos querem, certamente, que as economias dos países floresçam e que daí resulte prosperidade que possa ser distribuída. Os caminhos para lá chegar é que conhecem propostas diferentes. Radicalmente diferentes, por vezes.

Mas a elasticidade racional da economia também não é infinita ao ponto de poder acomodar a completa inversão da lógica natural das coisas.

E foi a isso que assistimos esta semana com a discussão sobre o agravamento do défice comercial português com a atribuição de responsabilidades à Alemanha – quem mais poderia ser? Se a troca de bens entre Portugal e a Alemanha se desequilibrou a nosso desfavor isso só quer dizer uma de três coisas: os portugueses compraram mais produtos alemães; os alemães compraram menos produtos portugueses; ou um pouco de ambas as coisas.

Na base destes grandes números estão sempre milhões de decisões tomadas todos os dias por empresários e consumidores. Como estamos num mercado único, sem barreiras alfandegárias ou legais que distorçam as regras do jogo, se uns e outros escolhem comprar produtos alemães é porque querem, analisados preços, qualidade ou outras questões relevantes para cada um. Esta é a essência da economia de mercado e o que é estranho é que em pleno século XXI ainda se tenha de voltar a estes conceitos básicos.

Mas ainda assim queremos culpados por esse agravar do défice com a Alemanha? Conheço alguns. Um vizinho meu comprou um BMW. Novinho, preto. O carro não faz o meu género mas ele está satisfeito. Tinha Renaults, Dacias e Fiats como alternativa, mas em vez de agravar o défice com a França ou com a Itália preferiu fazê-lo com a Alemanha. Uma prima afastada renovou a cozinha e, como é um pouco distraída nestas coisas da política europeia, escolheu electrodomésticos Miele em vez de Candy ou LG. E um amigo que tem uma empresa industrial teve que substituir os berbequins que por lá utilizam e comprou Bosch, apesar de se rever nas posições do Governo grego.

É este o “complot” dos alemães: têm muitas empresas que fabricam coisas que as pessoas querem comprar. E estes são alguns dos seus cúmplices: escolhem essas coisas quando podiam comprar outras.

A mensagem que se quer passar com a narrativa do desvio que os alemães estarão a fazer do nosso crescimento é simples: os malandros dos alemães impõem a austeridade aos outros mas depois vendem-lhes mais dos seus produtos e desequilibram a balança comercial. Mas nessa lógica os alemães não deviam ser os últimos a defender a austeridade dos seus parceiros comerciais? É que quanto mais austeridade impõem menos os consumidores podem comprar e menos eles vendem.

Foi, aliás, esse o argumento utilizado há quatro anos quando a nossa balança comercial, tradicionalmente deficitária, começou a equilibrar-se e até atingiu o primeiro excedente desde 1943. Desvalorizava-se o indicador argumentando, e bem, que com o forte aperto no consumo imposto pela austeridade as importações não tinham como não cair. Agora que estamos na trajectória inversa isso também é mau? Em que é que ficamos?

Bom, bom era não precisarmos de austeridade e termos um tecido empresarial que fabricasse muitos dos produtos que queremos e gostamos de comprar. Com óptima relação qualidade/preço, que rivalizassem com o que de melhor se faz por esse mundo fora. O calçado e o têxtil já o fazem. Algumas empresas de tecnologia também. E os vinhos, o mobiliário ou o turismo. Entre estes e outros temos muitos bons exemplos. Mas ainda assim são poucos.

Mas o pior do discurso da “culpa alemã” é a eterna tentativa de encontrar bodes expiatórios para as nossas fragilidades e erros. É o discurso que defende que as nossas dificuldades são sempre causadas por agentes externos. São os mercados, as agências de rating, os grandes bancos, as empresas alemãs… Nós até fazemos tudo bem mas o mundo está sempre contra nós.

Não, não é assim. Fazemos muitas coisas bem, algumas cada vez melhor, exportamos quantidade e qualidade como nunca. Mas ainda não chega.

Essa insuficiência nunca será ultrapassada invertendo a lógica natural das coisas. Por mais que nos queiram convencer “que a Terra gira ao contrário/E os rios nascem no mar”, como canta a Ala dos Namorados.

Jornalista, pauloferreira1967@gmail.com