1. Quando Mariana Mortágua anuncia o sentido de voto favorável do BE, à proposta do PSD no OE2017, fiquei incrédulo. Sabia que tínhamos acabado de assistir à mais forte coligação negativa (CDS-PSD-BE) que já levou à demissão de António Domingues, e cujas consequências ulteriores são ainda imprevisíveis. Que a oposição utilize todas as suas munições e manobras para atingir Domingues, a Caixa Geral de Depósitos (CGD), o ministro das Finanças e o Governo é já de si lamentável. Que o principal partido de apoio ao governo seja a muleta indispensável para o sucesso desse ataque dos partidos de direita é grave e preocupante.

É importante recolher já os elementos e os protagonistas para a história deste acontecimento, pois ele poderá contar para a História.

2. O governo convidou António Domingos para desenvolver um plano de negócios para a CGD se manter pública, através de um processo de recapitalização negociado em Bruxelas com a Comissão e em Frankfurt com o BCE. O processo foi no essencial um sucesso do governo e do ministro das Finanças pois, ao contrário do que todos pensavam, foi possível que as instituições europeias aceitassem esse plano sem que se considerasse ser ajudas de Estado. Apesar do sucesso, houve algo menor que não correu bem e que foi a questão das declarações de interesses dos administradores. O argumento para que seja “menor” é que, como referi em anterior artigo, é provável que estes administradores tenham tido mais escrutínio que a maioria dos administradores públicos.

3. O PSD, com uma miopia política que a história julgará, desde cedo definiu que tinha – neste acordo e em tudo o que envolve – um alvo estratégico a abater. A táctica foi atirar de todos os lados para desgastar pelo cansaço os principais protagonistas, utilizando todas as armas à mão, no estrito cumprimento da legalidade, claro (não sei se o PSD se reclama também do republicanismo, mas o lema deverá ser “tudo o que é legal é ético e politicamente justificável”).

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Não serei exaustivo, mas é bom relembrar. Primeiro as audições parlamentares a José de Matos, a António Domingues e a Mário Centeno. Tudo normal. Depois passa-se a um patamar superior de luta com a criação potestativa da Comissão de Inquérito à CGD (CPICGD), isto é, contra a vontade da maioria parlamentar, sendo anunciadas várias auditorias à CGD.

Depois novas audições a Centeno e Domingues, já na CPICGD em que PSD e CDS tentam ultrapassar constantemente o objeto da Comissão tentando saber coisas sobre o plano de negócios. Aí vários deputados relembram a separação de poderes: a AR fiscaliza o governo, não participa da ação executiva que cabe ao governo. O Presidente da CPICGD, Matos Correia (PSD), distribui carta anónima pela mesa e coordenadores da COFMA, cujo conteúdo da carta é desacreditar Domingues. Menos de 24 horas depois o Expresso dava notícia dessa carta.

O PSD pede a reapreciação parlamentar do Decreto-Lei 39/2016, o tal que retira os gestores da CGD do estatuto do Gestor público. É derrotado na sua tentativa. Mas o PSD não desarma. Faz duas propostas de alteração ao OE2017, numa das quais propõe a reaplicação de parte importante do estatuto do gestor público aos administradores da Caixa (a tal que foi aprovada).

Mas não, o PSD não fica por aqui. Introduz ainda em processo legislativo comum, e agora agendados para 6 de Dezembro, dois projetos de lei (o 341/XIII/2ª e o 342/XIII/2ª) em que parte do conteúdo do segundo é exactamente aquilo que o PSD propôs em sede de OE2017, isto é, a reaplicação do Estatuto do Gestor Público e a clarificação (como se fosse necessária clarificação, depois da nota clarificadora de Marcelo Rebelo de Sousa) que a Lei 4/83 também se aplica aos gestores da CGD.

Para os menos versados em táctica parlamentar, o PSD ataca primeiro pelo OE com as normas dos gestores públicos. Se perdesse no OE, ainda teria outra oportunidade de voltar à carga com as mesmas normas. Mas ganhou… com o voto do Bloco de Esquerda. Ganhou o PSD e o CDS, perdeu a Caixa e o resto se verá. Toda esta guerrilha política é de uma enorme irresponsabilidade política. A menos que se aceite, e eu não aceito, que os fins justificam os meios.

Não estou surpreendido com a demissão de António Domingues. É perfeitamente lógica e racional. Fiquei, sim, surpreendido e preocupado, e lamento profundamente, a votação do Bloco de Esquerda. A minha única dúvida é se a votação do BE foi ingenuidade ou se é mesmo táctica política. Prefiro acreditar que é a primeira.