Nas últimas semanas, a PSP tem vindo a multar viaturas da UBER e da CABIFY. Há relatos de mais de uma centena de contraordenações e, inclusivamente, de vários motoristas parados com receio de enfrentar coimas que os deixariam na iminência da insolvência.

Estas multas surgem na sequência de uma recente alteração legislativa ao regime que regula a atividade de táxi e que foi introduzida pela Lei n.º 35/2016, de 21 de Novembro. Estas alterações, por sua vez, levaram os Comandos Metropolitanos de Lisboa e do Porto a fazer circular uma informação, junto das unidades da PSP, anunciando que, em face desta nova Lei, as viaturas UBER/CABIFY estariam a praticar ilícitos de natureza contraordenacional pelo exercício da atividade de táxi sem alvará.

Serão estas multas legais?

Vejamos. A aplicação destas multas parte de dois grandes equívocos na interpretação da Lei n.º 35/2016, de 21 de Novembro.

O primeiro equívoco e, aparentemente, a raiz do problema, estará na interpretação que a PSP faz de uma nova disposição legal e que estende as contraordenações “à prática de angariação, com recurso a sistemas de comunicações eletrónicas, de serviços para viaturas sem alvará.»

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A referência a «sistemas de comunicações eletrónicas» foi nitidamente elaborada com o propósito de alcançar a UBER e a CABIFY. Isso, não nos parece discutível.

Acontece que a «prática de angariação» é exclusivamente efetuada por estas plataformas, já que os motoristas das viaturas se limitam a transportar os clientes que requisitam os serviços de transporte por via das mesmas. Deste modo, não se poderá conceber que os motoristas ou as empresas proprietárias das viaturas possam estar a ser multados com base neste preceito. De resto, para que os motoristas ou as empresas proprietárias das viaturas pudessem ser abrangidos por esta norma, além da «prática de angariação» o preceito teria ainda que aduzir a seguinte expressão: «e/ou prestem serviço de transporte», algo que manifestamente não consta do mesmo e que, necessariamente, os exclui automaticamente do ilícito em causa.

O segundo equívoco da interpretação da PSP decorre de uma visão alargada do que se deve entender por: «exercício da atividade de táxi».

A PSP tem invocado a infração do artigo que sanciona o «exercício da atividade sem alvará» para aplicar estas multas.

Ora, a atividade de táxi pouco ou nada tem a ver com a atividade desenvolvida por plataformas como a UBER e a CABIFY. São realidades distintas e que não se confundem, sendo abusiva qualquer interpretação que as misture ou tente «colar» uma à outra. As viaturas da UBER e CABIFY são descaracterizadas; os táxis, pelo contrário, têm distintivos que os caracterizam. Os táxis dispõem de taxímetros, UBER e CABIFY têm um sistema de avaliação de preço baseado numa plataforma. Os táxis têm um estatuto especial, associado ao serviço público de transporte, com prerrogativas especiais como: o uso de faixa de rodagem reservada ao transporte público, praças para recolha de clientes, lugares e zonas de estacionamento especiais, acesso especial a certas zonas interditas ao trânsito em geral, entre muitas outras. Todas estas prerrogativas estão vedadas aos serviços UBER e CABIFY que, basicamente, podem circular dentro das limitações de uma viatura convencional. Possivelmente, a única coisa que terão em comum será o transporte de passageiros mas, se seguirmos esta visão generosa da PSP, então, em Portugal, muitos outros tipos de negócio estarão a cometer este ilícito. Basta pensar, por exemplo, nas empresas de shuttle, de aluguer de limousines, de aluguer de viaturas turísticas, de aluguer de viaturas em unidades hoteleiras ou de transfers entre o aeroporto e hotéis.

De resto, não se entende este súbito despertar da PSP para a aplicação de multas com base num normativo que remonta a 1998. E, a verdade é que até à entrada em vigor desta Lei n.º 35/2016, as autoridades nunca se serviram deste normativo para punir a UBER e a CABIFY que, como é consabido, já atuam em Portugal desde 2014. Ou seja, a própria PSP (re)conhece este tipo de transporte desde 2014 e nunca se serviu deste normativo para aplicar multas aos motoristas da UBER e CABIFY. E porque não o fez? A resposta é mais que óbvia – nunca o fez porque nunca considerou este tipo de transporte como uma forma ilícita do exercício da atividade de táxi…

Mas o mais insólito deste caso é o facto de se encontrar em discussão na Assembleia da República uma Proposta de Lei (apresentada pelo Governo) que tem como objetivo regular a atividade destas plataformas.

O Governo, com esta iniciativa, que se louva, acaba por reconhecer a necessidade de regulação deste tipo de mercado e não deixa de, com ela, acabar também por reconhecer a clara separação que deve fazer-se entre este tipo de atividade e a atividade de táxi. Estamos, portanto, perante mais uma evidência do amplo reconhecimento da autonomização do que é a atividade deste tipo de plataformas. Aliás, esta autonomização surge perfeitamente assumida no preâmbulo da Proposta de Lei quando se reconhece expressamente que: «As novas formas de mobilidade reguladas na presente proposta de lei distinguem-se com nitidez da atividade do táxi, que continua sujeita a regulação autónoma».

Imagino que a esta hora muitos dos motoristas e empresas autuadas, estejam a questionar-se: Então, se desde 2014 nunca fui multado e o próprio Governo avançou agora com um diploma para regular este tipo de atividade, por que razão só agora e, no meio desta iniciativa legislativa, estou a ser multado?

A incoerência é flagrante e fere de morte a confiança dos motoristas e empresas que têm vindo a investir neste negócio desde 2014, aplicando recursos e energias em projetos que agora podem estar a ser violentamente comprometidos com multas que podem chegar aos € 30.000,00.

A censura feita pelas autoridades policiais com estas multas em massa afigura-se absolutamente extemporânea, desproporcional e violadora da mais elementar confiança que tem vindo a ser sedimentada ao longo de mais de 2 anos, por um longo e complacente silêncio legislativo e que agora (até) promete assumir-se na forma de uma lei.

Note-se que não estamos aqui a falar de realidades clandestinas ou oportunistas mas, sim, de pessoas e empresários que geram emprego e contribuem ativamente para o erário público com o pagamento de impostos, tentando sobreviver e prosperar com a prestação de um serviço que a sociedade reconhece amplamente como útil e altamente vantajoso. Dispõem de licenças próprias, estão inscritos e manifestados junto de autoridades, geram emprego e riqueza para a economia. Como se pode entender a censura?

A Lei 35/2016 (ou, melhor dizendo, a sua interpretação subversiva) é, por tudo isto, um caso evidente de ostensiva violação do princípio da proteção da confiança e resvala para um absurdo e incongruente propósito (que só serve os interesses de uma classe revanchista) que em nada se compagina com a realidade cristalizada ao longo de mais de dois anos de existência, nem, muito menos, com uma iniciativa legislativa pendente e que pretende regular e reconhecer expressamente a autonomia de todo um sector de atividade.

Por tudo isto, parece-me evidente que os visados nestes processos contraordenacionais têm de se defender. Não só em sede administrativa mas também, posteriormente, através da impugnação judicial das decisões do IMT que os venham a condenar.

Mas além da ilegalidade que me parece estar na base destes autos, há outra razão igualmente ponderosa para incentivar a reação.

Encontrando-se em discussão parlamentar o diploma que regula a atividade destas plataformas e, caso o mesmo venha a entrar em vigor, então, a partir dessa data, todos os autuados verão a sua atividade formalmente reconhecida e, em consequência, os processos de contraordenação pendentes (desde que os autuados não tenham deixado de reagir) perderão o seu sentido útil por já não se estar perante uma atividade de táxi ilícita, mas sim, perante uma atividade devidamente regulada, autonomizada e legalmente reconhecida. Naturalmente, o efeito próprio e natural deste novo diploma será o de fazer cair estas contraordenações, operando aqui uma extinção da responsabilidade contraordenacional e que, na prática, conduzirá à falta de fundamento para a aplicação de qualquer coima.

Agora, nesta fase, o que se impõe é que até à entrada em vigor do novo regime os motoristas e as empresas autuadas não deixem de exercer os seus direitos processuais.

Uma coisa é certa, se não o fizerem o que sucederá é que terão mesmo de pagar estas coimas! Argumentos para as impugnar, pelo que ficou dito, não lhes faltarão certamente…

Advogado