Eram 7h12 quando a Rita Blanco me enviou uma mensagem a informar do Cohen. O SMS vinha com um coração e uma lágrima. Eu só acordei minutos depois e pensei que tinha de ficar outra vez forte porque o ano transformou-me a vida num ringue, e às tantas tenho de olhar para as mãos e para os pulsos a pensar se aguento mais um combate.
Disse eu ao dia baixinho: trata de mim. E o dia encarregou-se das coisas triviais: da roupa, do banho, da minha filha. Lembrei-me ali junto às flores secas que emolduram a fruteira, que foi numa manhã assim há muitos meses que um amigo, o Samuel, me mandou uma mensagem a dizer que o Bowie tinha morrido. E eu dei por mim a preparar uma torrada e a pensar: o Bowie morre e estou a preparar uma torrada? Onde está o glamour disto? Nessa manhã saí de casa e fui fazer a rádio que aliviava o meu coração. E foi nessa manhã que percebi o estranho fenómeno da comunhão mais do que nunca: A dor torna-se numa linguagem universal e todos precisamos de beber um bocadinho dela. Eu por exemplo procuro formas de a combater, tentando torná-la elegante. Será pretensioso tornar a dor elegante?
O problema é que o ano se tornou num combate cansativo. E um dia vi-me de muitas lágrimas nos olhos, a juntar Prince e Bowie na rádio. Eles já não estavam no mesmo mundo que nós e eu era de novo a miúda que achava que tinha sido diferente por ter começado a ouvi-los ainda cedo. Nestes momentos penso nas palavras antes, para não ser traída pela voz (a voz um canal do coração) e só depois abro o microfone.
O que fui aprendendo ao longo da vida é que ninguém está a salvo: do amor e da dor. Ninguém pode exigir ao outro uma certeza eterna quando a morte nos questiona diariamente. Sim o Bowie morreu, o Prince morreu, o Alan Vega morreu e o Cohen também se foi embora. O Cohen já sabia que se estava a ir embora. Até ficámos chocados quando ele torna isto tão claro no disco que agora vamos todos ouvir com mais atenção (como fizemos com Bowie) You want it darker. Está lá tudo. Ele no fundo já tinha convidado a morte para a última dança porque é ela o nosso último par.
Cohen morreu em paz. Tinha escrito a carta a Marianne que também morreu este ano, musa e amante. Nós para morrermos bem, temos de ir em paz com os nossos amores.
Sempre me intrigou este homem que já era velho há muito tempo. Que descobriu religiões e credos diferentes porque mal de quem tenha certezas imutáveis. Não se faz poesia com certezas. Faz-se da falha e da dúvida e do medo da morte.
Hoje a minha filha disse-me: “ainda bem que o ano está a acabar”. A minha filha aos 8 anos já sabe que a vida se faz de demasiadas incertezas. O tempo que vivemos é aquele que nos serve de amostra: 2016 é o ano que não nos garantiu nada: foi-nos empurrando devagarinho para o precipício enquanto alguém dizia – claro que não vais cair. E fomos…
Quando cheguei à rádio esta manhã, estava pronta para o combate: nestes dias penso que troco a emissão por emoção. Houve Cohen sim. Lembrei-me muito da conversa há dias com o Pedro Mexia quando falávamos da vitalidade de Cohen o homem que chegou tarde às canções — e já agora desculpem-me: como se alguém fosse autoridade suficiente para dizer quando é a altura certa para chegarmos ao que quer que seja!.. Pela emissão tantas coisas bonitas foram passando hoje, e eu num exercício muito egoísta pus as minhas dores ao serviço do microfone. Pedi um impermeável para as lágrimas quando passei Lloyd Cole na sua versão famosa de “Famous Blue Raincoat”. Cohen editou-a em 1971 em Songs of Love and Hate. Se fizéssemos uma banda sonora das nossas vidas era provavelmente isso que lhe tínhamos de chamar: Canções de amor e de ódio. Desculpem, mas a vida a sério não conhece o meio termo, nem os poemas e as canções se fariam de meias medidas.
Hoje na emissão de manhã caíram-me as lágrimas em cima da mesa quando passei Brel a dizer: “J’arrive”. Não há canção tão funda no grito da morte. Depois recompus-me e soprei umas quantas palavras e mais canções das que fazem de nós melhores: Lennon, os Buckley (pai e filho), Nina Simone, Bowie, Prince, Cave, Johhny Cash, Tom Waits.
As minhas pernas ficaram sem força. E as minhas mãos outra vez a tremer. Não se chega ao coração dos outros sem verdade. É por isso que esta gente é toda grande e escreveu e cantou canções malditas, absolutas, canções de fracasso e poucas vitórias… “Love is not a victory march…”
Quando a emissão acabou, eu estava de novo a passar o “Dance me to the end of love”. Se isto fosse um filme ficávamos com a ideia de uma dança que não acaba. As canções não acabam. Saí da emissão e tinha uma mensagem da amiga Blanco a dizer: “estou no carro a chorar”.
Preciso de pulsos novos em 2017.
Inês Maria Meneses é autora dos programas Fala com Ela e PBX da Rádio Radar