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Enfermeiras ao lado das trabalhadoras do sexo

Faltam 700 enfermeiros nas Unidades de Cuidados na Comunidade no sul do país, de acordo com um estudo tornado público nesta quarta. Mesmo assim, o apoio social e clínico consegue ser inovador.

“Não é qualquer enfermeiro que faz isto”, diz Susana Santos, enquanto conduz. A enfermeira de 44 anos, que também é a coordenadora da Unidade de Cuidados na Comunidade (UCC) do Seixal, parece estar prestes a anunciar uma revelação. “É preciso despir todos os nossos preconceitos. Este tipo de trabalho é o fim de linha”, acrescenta.

A estrada é em linha reta, uma das mais famosas em Portugal: a reta de Coina, conhecida por ser um local onde se encontram muitas trabalhadoras do sexo. As mais novas têm 16 ou 17 anos, conta, mas não o admitem. São portuguesas, nigerianas, romenas, brasileiras… mas, acima de tudo, são pessoas. E por isso merecem o mesmo acesso aos cuidados de saúde que o resto da população.

Todas as semanas, por duas vezes, de manhã ou de tarde, uma equipa do projeto Gira Lua, da UCC do Seixal, visita estas trabalhadoras – uma parceria entre o Hospital Garcia da Horta, a Câmara Municipal do Seixal e a IPSS CRIAR-T.

Carrinha da UCC do Seixal.

A equipa é constituída por um motorista, uma enfermeira e uma psicóloga ou assistente social, que alternam consoante a semana. Cláudia Guerreiro, enfermeira responsável pelo Gira Lua, diz que as trabalhadoras já as “reconhecem como uma mais valia para a sua saúde ”e que por isso “nunca levantam questões” sobre as intenções das enfermeiras. Desde o início do projeto em 2010, já foram sinalizadas 111 trabalhadoras do sexo.

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As enfermeiras tratam do plano de vacinação das mulheres, distribuem preservativos, fazem regularmente testes rápidos de HIV, e encaminham as que necessitam para consultas de psicologia. Durante duas horas, a carrinha IVECO da UCC do Seixal percorre “a reta” parando ao lado de cada mulher. Quando encontram uma nova trabalhadora, fazem uma entrevista como elemento de referência, de forma a construir “as histórias de saúde e de vida” daquelas mulheres. “Elas sabem que têm a saúde em risco”, explica Susana.

Enfermeira Susana Santos.

Cláudia Mateus, psicóloga no projeto desde Dezembro de 2013, afirma que “demora o seu tempo” a criar uma ligação de confiança com as trabalhadoras, mas que algumas já recorreram a consultas. “Elas têm os mesmos problemas que nós”, afirma. Mas a enfermeira Susana é cáustica na importância que vê nestas visitas: “Um dia que nós não façamos isto, pode haver uma epidemia.”

Encontrar um “bom trabalho”

Miriam, 36 anos, está sozinha. Estava sentada num pequeno banco de plástico à sombra de um pinheiro, até chegar a carrinha da Unidade de Cuidados na Comunidade do Seixal para a visita semanal. Miriam é nigeriana e desde agosto que aquele é o seu “sítio”. “Nos primeiros encontros, é normal darem nomes e idades falsas”, explica a enfermeira Susana Santos, por isso não é de estranhar que ela esteja um pouco desconfiada com as caras estranhas que apareceram naquele dia. Vai olhando para o telemóvel que tem na mão, mas consente falar por causa da “confiança” que tem na enfermeiras.

“They are good [Elas são boas]”, diz. Ver as enfermeiras todas as semanas é um bom presságio para Miriam. “Sempre que faço o teste [de HIV], o resultado vem negativo”, conta. Mesmo assim, admite que o medo de contrair a doença existe sempre, e que acabam sempre por aparecer “homens parvos” que pedem para fazer sexo sem preservativo. Alguns carros passam e abrandam.

Preservativos oferecidos a Miriam.

Miriam tem uma falha no meio dos dentes, que lhe dá um sorriso e feições de criança. No cabelo, extensões de cor rubi. Continua a olhar para o telemóvel. Neste dia, Miriam está particularmente contente. Foi entregar uma série de papéis para conseguir um visto de residência em Portugal. Acredita que assim vai conseguir arranjar um trabalho “que não este”. “Um bom trabalho”, acrescenta. Para isso sabe que é importante preservar a saúde ao máximo.

Poucos metros à frente, dá para perceber que Cristina tem uma dívida de gratidão para com a enfermeira Susana Santos, pela forma como a recebe. Há algum tempo, Cristina apanhou um escaldão gigante devido aos banhos de sol que apanha ao lado da estrada. A enfermeira cobriu-lhe o corpo com Biafine para tratar das queimaduras. Cristina, 25 anos, diz ser portuguesa, mas o sotaque denuncia-a. Há dois anos que a podem encontrar na “reta”. Veste uns calções verdes, tem os braços repletos de pulseiras coloridas e na ponta dos dedos unhas de gel e um cigarro.

Não quer trocar muitas palavras. Desde que foi emitida na televisão uma reportagem sobre tráfico de seres humanos, muitas das trabalhadoras da reta ganharam anti-corpos aos meios de comunicação. “Filmaram-me na íntegra sem pedir autorização”, conta. Cristina não está sozinha. Ela e outra trabalhadora do sexo estão vestidas de forma semelhante, e ambas usam óculos de sol espelhados, modelo aviador. Impossível ver-lhes os olhos.

A colega de Cristina não se apresentou nem disse uma palavra enquanto a carrinha da Unidade de Cuidados na Comunidade do Seixal esteve parada ao lado da estrada. Foi buscar os preservativos e voltou para o lado do banco de plástico, rodeado por sandálias e toalhitas de higiene pessoal. E para tirar os óculos de sol, virou as costas à estrada.

Só no sul de Portugal, faltam 700 enfermeiros

Existem nove enfermeiros na Unidade de Cuidados da Comunidade do Seixal, dos quais sete têm especialização. É graças a isto que Alexandre Tomás, presidente da Secção Regional do Sul da Ordem dos Enfermeiros (OE), acredita que aquela unidade consegue manter para lá das suas responsabilidades comuns um “projeto inovador” como as visitas às trabalhadoras do sexo. Porém, nem tudo são boas notícias.

De acordo com o estudo “Unidades de Cuidados na Comunidade: Presente com Futuro!” a que o Observador teve acesso antes da sua divulgação nesta quarta-feira, faltam cerca de 700 enfermeiros nas UCC para garantir uma resposta “eficaz” aos 4,4 milhões de pessoas residentes entre Santarém e o Algarve. De acordo com dados de 2013, ao todo, existem 185 UCC em funcionamento em Portugal, das quais 89 na zona sul do país. “Ao vermos o desempenho destas unidades, que têm especialistas em número suficiente, verifica-se que há um resultado positivo, principalmente no acesso a cuidados de saúde”, afirma Alexandre Tomás. Ainda assim, admite que existe uma “capacidade de resposta limitada” devido à falta de enfermeiros.

O estudo, que decorreu em duas fases, obteve resposta de 44 UCC na segunda fase, no sul do país, o que correspondeu a um universo de 1,7 milhões de habitantes. Tendo por base o rácio de um enfermeiro para 5.000 pessoas, deveria haver cerca de 357 profissionais, mas só existem 70 – depois de subtraídos os enfermeiros necessários para face ao número de camas da Equipa de Cuidados Continuados Integrados (ECCI) -, estando em falta cerca de 287 enfermeiros. Recalculando em proporção à totalidade das UCC no sul do país, “seriam necessários mais 700 enfermeiros”, afirmou Alexandre.

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