Tudo era novo. Nos pés, calçados, tinham sapatos esquisitos. Uns às cores, outros pretos, todos com pitões colados à sola. Usavam-nos para pisar relva, pela primeira vez. Não havia areia, terra ou pó. No meio do campo viam um homem, sempre com um apito na mão. Estavam no Curdistão para jogar futebol mas do desporto só conheciam uma coisa: a bola. À primeira tentativa, 15-0. No dia seguinte, 18-0. Ao terceiro jogo, 5-1. No final, mesmo com tanto golo sofrido (38) em 360 minutos, Suleiman Bourma ficou “muito orgulhoso” do Darfur United.

Palavra de capitão. E garantia também. “Perdemos os jogos todos, mas não estamos preocupados com isso. Conseguimos vir aqui e fazer história”, dizia, armado com um sorriso de rasgar a cara.

Dois meses antes, Bourma era apenas mais um. Estava perdido no meio de algum dos 12 campos de refugiados espalhados pela fronteira do Chad com o Sudão, onde as Nações Unidas estimam que haja mais de 270 mil refugiados do Darfur. Foi lá que i-ACT, uma organização não-governamental, decidiu realizar treinos de captação.

Era preciso formar uma equipa do Darfur. Bourma foi escolhido. Ele e outros 15. Juntos ficaram durante oito semanas. Dois meses que serviram para treinar, aprender e colar uma equipa. Depois descobriram o que era voar e aterraram no Curdistão. Perderam os três jogos e voltaram para casa. Parafraseando, para o campo de refugiados. Foi esta a história em 2012, quando o Darfur formou a primeira equipa de futebol e a levou ao VIVA World Cup – última de cinco edições da prova para equipas não filiadas na FIFA, organizada pela New Federation Board.

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Esta semana, em 2014, voltaram a viajar. O destino foi Östersund, cidade plantada no lado sueco da Lapónia. Terra do Pai Natal, sim. E a partir de amanhã, do Mundial.

As diferenças que não acabam

Não devemos estar a pensar no mesmo campeonato do mundo. E não estamos. Hoje, 31 de maio, arranca o World Football Cup, na Suécia. E só a 12 de junho começará o tal Mundial 2014, no Brasil. Entre as duas competições há apenas um ponto comum, o futebol. E a separá-las houve diferenças suficientes para desenhar uma final e decidi-la apenas nos penáltis. Com direito e crónica e tudo.

Primeira parte. De um lado, a 20.ª edição de uma prova que sentará à mesa 32 nações, terá jogos em estádios com mais de 50 mil lugares e cuja organização rondará (pelo menos) os 8 mil milhões de euros. Do outro, a primeira vez de um torneio sem países, com 12 equipas, só um estádio com 6 mil cadeiras e que custou cerca de 600 mil euros a preparar.

Chegamos ao intervalo. Na bancada, a apoiar o Mundial mais conhecido, está a FIFA, como sempre. A puxar pelas cores do World Football Cup aparece a CONIFA. O nome é parecido, as siglas nem por isso – traduzem-se para Confederação de Associações Independentes de Futebol. “Não havia uma organização profissional que servisse de chapéu de chuva e assumisse responsabilidades no mundo do futebol que está fora da FIFA”, começou por justificar Per-Anders Blind, presidente da entidade, ao Observador. A FIFA tem hoje 209 países filiados e Blind disse que a CONIFA pode “facilmente duplicar esse número” – hoje conta com 20 membros.

Afinal, a entidade só nasceu em março de 2013. “O objetivo é fazer as pessoas sorrirem, estimular o respeito pelas diferenças e apoiar minorias étnicas e regiões isoladas”, prosseguiu. Tudo isto com uma bola de futebol no meio, claro.

O toque para entrar na aula de geografia

Venha a segunda parte. Ao Brasil vão chegar seleções representantes de países, vindas de uma fase de qualificação, enquanto a Suécia dará as boas-vindas a equipas que convidou de regiões separatistas, estados não reconhecidos e minorias étnicas. “Têm existido tantos desafios que é difícil contá-los”, desabafa Blind, ao lembrar o exemplo mais recente: os problemas com a obtenção de vistos para pessoas vindas de Tamil Eelam, da Occitânia ou de Nagorno Karabakh entrarem em território sueco.

Noventa minutos é pouco, por isso há prolongamento. E aqui a melhor ajuda é ter um planisfério ao lado e ficar atento à lição de geografia. A Östersund, cidade plantada na Suécia, vão chegar 12 equipas com nomes esquisitos e origens estranhas para o World Football Cup.

A Occitânia é uma nação sem Estado que reúne jogadores do sul de França, de uma pequena fatia da Catalunha e de alguns territórios de Itália. Tamil Eelam corresponde a uma região separatista, localizada no nordeste do Sri Lanka, e Nagorno Karabakh é o nome de uma área rodeada por montanhas, pelo Azerbeijão e pela Arménia, no sul do Cáucaso.

As 12 equipas (ou regiões) do World Football Cup:

Darfur: situado no oeste do Sudão, tendo fronteiras com a Líbia, o Chade e a República Centro-Africana. Acolhe desde 2001 um conflito entre populações árabes e não-árabes.
Ossétia do Sul: localizada na Geórgia, que declarou a sua independência em 1991 e que, em 2008, foi reconhecida pela Rússia.
Padânia: zona do norte de Itália que abrange regiões como a Lombardia, Piemonte ou Ligúria, por norma associada à Liga Norte, um partido de direita italiano.
Ellan Vannin: equipa vinda da Ilha de Mann, localizada entre a ilha da Grã-Bretanha e a Irlanda. Tem um parlamento autónomo mas está dependente do Reino Unido.
Nagorno Karabakhuma república rodeada por montanhas, entre o Azerbeijão e a Arménia.
Condado de Nicese a França for um quadrado, está encostado no canto inferior direito. Um pequeno território centrado na cidade de Nice.
Tamil Eelam: território não reconhecido situado no nordeste do Sri Lanka. Até 2009 esteve sobre o controlo de um grupo denominado Tigres da Libertação do Tamil Eelam.
Arameans Suryoye: povo arameu, oriundo da antiga Mesopotâmia e que hoje se concentra sobretudo no norte da Síria.
Curdistão: região que abrange sobretudo o norte da Turquia, incluindo também partes do Iraque, Irão ou Síria, por exemplo.
Occitâniaum território europeu sem Estado, que ocupa a maioria do sul de França, além de uma pequena área na Catalunha e do norte de Itália.
Sapmi: corresponde à Lapónia, área que se espalha no norte da Escandinávia, entre a Noruega, Suécia e Finlândia.
Abecásia: república autónoma no norte da Geórgia, parcialmente reconhecida por esse país e pela Rússia.

Há mais nove equipas e, além de um GPS certeiro, quase todas precisam de um livro de história as explicar. Ellan Vannin, por exemplo, é o nome celta para a equipa vinda da Ilha de Mann, localizada entre a ilha da Grã-Bretanha e a Irlanda. Padânia, por exemplo, é a região no norte de Itália que junta províncias como a Ligúria, Piemonte ou Lombardia.

Um Balotelli em cada mundial

Chega-se aos penáltis e às últimas diferenças. Basta comparar os nomes. No Mundial do Brasil vão jogar estrelas para encher vários parágrafos – Lionel Messi, Cristiano Ronaldo, Neymar, Andrés Iniesta, Andrea Pirlo, Steven Gerrard e por aí fora. Para o World Football Cup também houve listas de convocados. Na Suécia, contudo, nem 1% da reputação se consegue reunir.

A equipa da Ossétia do Sul conta com dois jogadores que passaram a época na segunda divisão russa. A de Nice até tem dois com estiveram esta temporada na primeira liga francesa. Mas nomes como Ciaran McNulty (Ellan Vannin), Mohammed Sabir Hamin (Curdistão) ou Enri Ashuba (Abecásia) não captam muitas atenções. Para tudo existe uma exceção e na Suécia também estará uma – chama-se Enoh Barwuah.

Não conhece? Falta acrescentar o último apelido então: Enoh Barwuah Balotelli. É nome de avançado, jogará pela Padânia e sim, é irmão de Mario Balotelli, o também avançado do Milan que estará no Mundial do Brasil com a seleção italiana. “Disse logo que sim. Nasci e vivi lá [na região da Padânia], por isso sinto uma ligação”, explicou à CNN o jogador de 21 anos, que passou a última época no Vallecamonica, da terceira divisão italiana.

As grandes penalidades passam e esta final acaba. Entre um e outro Mundial, ninguém ganha. Nesta comparação o resultado não interessa e Per-Anders Blind explica porquê numa frase – “Quando jogamos somos todos iguais.” Ninguém lhe rouba a verdade mas, a 6 de junho, terá de haver um vencedor no World Football Cup. E seis dias depois (12 de junho), arrancará o Mundial. O outro.