Prometeu? Então vai ter que cortar. No início desta época, havia um argentino sem muitas esperanças. O Mundial aproximava-se, a idade da reforma também (32 anos) e acabara de chegar ao campeonato (Premier League) onde a velocidade e o ritmo desenfreado são imagens de marca. Portanto, decidiu arriscar também a sua – o rabo de cavalo. Meses depois, o seu nome estava numa lista com 23 convocados. A tesoura apareceu, a cabeleira foi-se e Martín Demichelis ficou pronto. Venha daí o campeonato do mundo do Brasil.
As promessas cumprem-se e o defesa argentino não estragou a regra. Na terça-feira, um dia após Alejandro Sabella, seleccionador argentino, divulgar a lista final dos convocados, Demichelis foi à tosquia. E assim perdeu a longitude no cabelo que sempre o acompanhou nos 10 anos que leva a jogar em relvados europeus – chegou em 2003/04 ao Bayern de Munique, vindo do River Plate.
Con @evange_anderson y @demichelisok cambio de look pic.twitter.com/y5HbXGPHbX
— Gus (@gusres) June 3, 2014
Cabelo, futebol, Mundial e convocatória. Dezanove anos volvidos, a Argentina voltou (quase) ao mesmo. É só mudar o protagonista e retirar uma coisa: a bronca que, em 1995, a questão capilar provocou. Vamos por partes. Um ano antes (1994), a versão jogador de Maradona ainda existe e leva os argentinos ao Mundial dos EUA. A visita corre mal e fica pelos oitavos de final. O país não gosta, muito menos a Federação Argentina de Futebol, que promove uma substituição no banco de suplentes: sai Alfio Basile, entra Daniel Passarella.
Passarella e A “estupidez” do cabelo
A missão é arrumar a casa, aspirar os problemas e decorar a seleção com outra mobília para mostrar no Mundial seguinte (1998). Há quatro anos para fazer tudo mas os problemas surgem logo ao início. Fernando Redondo não é convocado. Uma, duas e outras tantas vezes, o trinco do Real Madrid fica de fora. Algo se passa. “Compreendo-o e respeito-o, mas o cabelo faz parte da minha personalidade”, acaba por desvendar o jogador, em setembro de 1995.
O problema, então, era este – o pelo en la cabeza de Redondo. “Sou jogador de futebol, porém, antes disso, sou uma pessoa e sinto-me bem assim”, esclarece ao El País, com palavras que o próprio Diego Maradona não demora a aplaudir. “Estou com Redondo até à morte. É importantíssimo vestir a camisola da seleção, mas o jogador manteve-se firme na sua decisão, e isto demonstra que alguns têm personalidade e não renunciam às suas convicções”, diz, quando se chega à frente com as críticas ao que considera ser “uma estupidez”.
A coisa dura e dura. Entre 1994 e 96 até nem se fala muito de Redondo. As lesões pregam-lhe partidas no joelho e não aparece muito com o Real Madrid. Em 1997, recomeça a jogar. Muito. Nos merengues, é o pé esquerdo do argentino que toma conta do meio campo. Na camisola tem o número ‘6’ e na cabeça ainda estão os longos cabelos. Aí ressurge a polémica. “Não sou dos que hoje dá um abraço e amanhã uma facada”, garante Redondo, ao revelar que Passarella lhe dissera “uma coisa e publicamente falou” outra. “Falhou-me, mentiu-me e depois ainda disse que eu era um mentiroso”, lamentou.
Cinco anos de exílio
Só aí, em 1997, com o Mundial à espreita, se começa a perceber a história. “Na primeira reunião que tivemos, Passarella explicou-me o seu projeto e, após o Mundial de 1994, queria mudar um pouco a imagem da seleção”, desvendou o médio do Real Madrid. De facto, na edição dos EUA, não tinham faltado cabeleiras – além do próprio Redondo, também Ariel Ortega, Abel Balbo ou Gabriel Batistuta usaram o cabelo quase até aos ombros. “Cada um tem a sua maneira de ser e viver”, resumiu Fernando Redondo. E da vida faz parte o cabelo, exceção feita a Passarella.
O seleccionador, do seu lado, atira que “não [pode] ter um jogador que não quer estar na seleção”. Os rumores dizem que Redondo se recusa a jogar com um homem ao seu lado, à frente da defesa. O jogador fala em mentiras. Afinal, não era por acaso que os argentinos batizaram a sua posição como el volante – e, por cada máquina, só costuma haver um.
A vida continua. Em Madrid, o argentino tem um reinado que já é aceite por todos. Chamam-lhe El Principe. Redondo agradece e vai respondendo. No relvado, claro está. É lá que fala e não se cala durante a época de 1997/98. É em si que os merengues se apoiam para chegarem à final e vencerem a Liga dos Campeões. Mais sucesso, mais lenha para a fogueira da polémica. “Pensei muito. Não foi fácil para mim. A ideia de falhar o Mundial foi o que mais me deu que pensar. Dói-me, mas estou tranquilo”, confessa ao El País, dias antes de conquistar a Champions.
Antes do verão sai a lista de convocados mas de lá não saem surpresas. Fernando Redondo fuera, Gabriel Batistuta dentro. O avançado, o Batigol, foi um dos que acatou a exigência de Passarella e, portanto, cortou o cabelo para ser um dos argentinos a ir ao Mundial. De cabelos curtos e expetativas cheias. A viagem dura até aos quartos de final, onde termina frente à Holanda e debaixo de uma das sete maravilhas da prova, vinda do pé direito de Dennis Bergkamp.
O Mundial de França acaba e o adeus a Passarella confirma-se. Com ele, Redondo não apareceu em nenhum dos 59 jogos que a seleção argentina fez entre 1994 e 1998. “É absurdo, ainda por cima devido a um tema extrafutebolístico”, admite o médio, já em 1999, ao El Clarín. E agora sim, já lhe doía “muitíssimo” ter assistido a um campeonato do mundo sem Redondo. “Mas não tinha outra hipótese: não ia trair as minhas convicções. À medida que o Mundial se aproximava, aumentava a minha sensação de bronca, de impotência. Mas sabia perfeitamente o que estava a fazer”, explicou, conformado.
Bola para a frente, diz Redondo. O argentino pega na mágoa de falhar o Mundial e usa-a para continuar a gritar. E em 1999/00, os relvados até ficaram moucos. Com 30 anos, qualidade ainda era muita. Maior que nunca. E Marcelo Bielsa não era cego. O novo seleccionador convoca-o e Redondo ainda aparece em três amigáveis com a camisola argentina, em 1999. Cinco anos depois, estava de volta. Redondo motiva-se e volta a guiar o Real Madrid pelos caminhos de outra Champions. Sempre a berrar qualidade.
Alex Ferguson bem o ouve, em Old Trafford, estádio do Manchester United onde o argentino leva o Real Madrid às costas, na segunda mão das meias-finais da Liga dos Campeões. “O que tem este jogador nos pés? Um íman?”, questiona o treinador escocês, após o encontro que os merengues vencem por 3-0. Semanas depois, Redondo (e o Real), voltam a conquistar a Liga dos Campeões.
Em 2000 muda-se para o lado vermelho e negro de Milão. É lá que voltam as lesões no joelho. Tantas que é operado três vezes e, até 2004, mal joga. Não mais aparece na seleção e, no ano em que Portugal chega à final do ‘seu’ Europeu, Fernando Redondo diz adeus. Estava com 34 anos. A história do argentino é longa mas o capítulo da seleção ficou (bastante) curto – apenas 29 internacionalizações. Percebe agora porque Demichelis cortou o cabelo?