Cinquenta pessoas sentam-se numa sala em silêncio para ouvir quatro escritores declamar poesia e excertos de prosa de autores de língua portuguesa. Luís Vaz de Camões, Alexandre O’Neill, Ruben Braga, José Tolentino Mendonça, Millôr Fernandes, Herberto Hélder, Paulo Moura, Carlos Drummond de Andrade, Valter Hugo Mãe, Jorge Silva Melo, Lídia Jorge, Maria Teresa Horta, João Vário e claro, Fernando Pessoa.

Uma criança, que deve ter vindo a acompanhar a mãe, folheia uma caderneta de cromos do mundial de futebol. Muitos dos presentes apoiam a cabeça na mão, olham para o chão. Ninguém usa o telemóvel. Consegue distinguir-se o burburinho do ar condicionado. Começou nesta terça-feira, dia 10 de Junho, dia de Portugal, Camões e das Comunidades Portuguesas, a segunda edição do Festival do Desassossego, uma comemoração da “heteronímia” da literatura, teatro e música, na Casa Fernando Pessoa (CFP), em Lisboa, que culmina dia 13 com as comemorações do aniversário do nascimento do autor de “Mensagem”. Durante quatro dias vão-se homenagear estudiosos pessoanos, discutir “literatura em tempo de crise”, falar da construção das “musas e dos musos”, entre outros temas.

Depois de uma curta sessão inaugural, onde o presidente da junta de freguesia de Campo de Ourique, Pedro Cegonho, lembrou que a CFP é “de longe” o espaço de interesse cultural mais visitado da freguesia e a vereadora da cultura na Câmara Municipal de Lisboa, Catarina Vaz Pinto, ter desejado “um inteligente e lúdico desassossego” para o decorrer do festival, o evento foi aberto com um painel de “leituras cruzadas”. Por outras palavras, declamações de poesia e prosa de autores de língua portuguesa.

A poetisa brasileira Maria Lúcia Dal Farra estreou o silêncio com seis poemas da obra de Herberto Hélder, sendo que o último pertencia ao livro publicado ainda esta semana, na segunda-feira, A morte sem mestre.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“Se um dia destes parar não sei se morro logo, disse Emília David…

Por trás da poetisa, do cronista Nuno Costa Santos, do poeta cabo verdeano José Luís Tavares e da contista brasileira Cíntia Moscovich, estavam duas estátuas de Fernando Pessoa, que pareciam velar pelo que estava a acontecer na sala do segundo piso da “sua” casa. Alguns dos elementos da organização, que andavam com um crachá ao peito que tinha inscrito “sou do desassossego”, correram as persianas da sala, o que só criou um ambiente ainda mais intimista para as leituras.

Nuno Costa Santos escolheu seis excertos de seis autores diferentes para ler ao público. E também foi o cronista português que teve a leitura com mais impacto na plateia. Ao contrário do que se poderia esperar dado o espectro de autores que foram declamados, foi na prosa do repórter Paulo Moura, na reportagem “A rapariga que amou demais”, recém publicada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, no livro Longe do Mar, que a plateia trocou mais olhares e comentários depois de terminada a leitura. Principalmente os casais. A história de Joana, “a rapariga que amou de mais”, foi o texto que trouxe mais “desassossego” à sala.

Durante as leituras, várias pessoas continuam a chegar. Com todas as cadeiras já ocupadas, distribuem-se pelos espaços livres. É um público fiel e interessado que está presente. Uns fecham os olhos quando se lê poesia. “[O festival do desassossego] não vai tirar pessoas à feira do livro”, disse ao Observador Catarina Vaz Pinto, ao falar do porquê de ocorrerem dois eventos literários ao mesmo tempo em Lisboa. Para a vereadora da Cultura, este festival é “uma homenagem à data de nascimento de um poeta de toda a importância.”

A contista Cíntia Moscovich foi a única que optou por ler Fernando Pessoa. Estava com medo de ser “óbvia demais”, mas depois de conversar com o organizador da mesa apercebeu-se que todos os intervenientes tinham pensado o mesmo: escolher Fernando Pessoa era “óbvio demais”, logo, por final, ninguém o tinha escolhido. “Pessoa diz-me muito ao coração, como se ele falasse diretamente para mim”, diz Cíntia ao Observador. O primeiro contacto que teve com a obrado autor homenageado no festival foi “o poema em linha recta, no tempo da escola”, relembra. Durante o painel, Cíntia declamou um excerto do guardador de rebanhos, do heterónimo pessoano, Alberto Caeiro.

“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,/ Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia./ O Tejo tem grandes navios/ E navega nele ainda,/Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,/A memória das naus. (…)

A Casa Fernando Pessoa, que foi inaugurada em 1993, tem uma decoração em volta do autor que lhe dá nome. Na sala onde estão a ser lidos os poemas existem retratos de Pessoa pixelizado, com uma máscara, pintados à mão, colagens, e inclusive, a cara do autor no corpo do número sete da seleção nacional.

Para terminar o primeiro painel do Festival do Desassossego, foi a vez do poeta cabo verdeano José Luís Tavares ler. Começou com um excerto dos Lusíadas em crioulo, algo inesperado para a plateia, que só se apercebeu dos versos de Camões noutro dialecto que não o português original já o autor estava a declamar. E à semelhança dos gostos de Maria Lúcia Dal Farra, José escolheu poema “Bicicleta” de Herberto Hélder para acabar. “Aprendi a fazer poesia, mas não aprendi a andar de bicicleta”, disse o poeta, a rir-se.

“Lá vai a bicicleta do poeta em direcção ao símbolo, por um dia de verão exemplar. De pulmões às costas e bico no ar, o poeta pernalta dá à pata nos pedais. Uma grande memória, os sinais dos dias sobrenaturais e a história secreta da bicicleta. O símbolo é simples. (…)”

No final ouviram-se palmas, muitas palmas da plateia, que durante o painel esteve em silêncio e compenetrada nas palavras para desassossegar.

Programa do Festival do Desassossego

10 Junho
16.00 – Sessão inaugural Leituras cruzadas – poetas e escritores lêem textos de outros autores de língua portuguesa com Cíntia Moscovich, José Luiz Tavares, Maria Lúcia Dal Farra, Nuno Costa Santos Moderação de António José Borges

17.30 – Homenagem ao pessoa no Haquira Osakabe (1939-2008) com Jerónimo Pizarro, José Miguel Wisnik, Maria Lúcia Dal Farra21.00 – Aula-show Tom Jobim(local: Jardim de Inverno do Teatro São Luiz)com Arthur Nestrovski, Jaques Morelenbaum, José Miguel Wisnik, Paula Morelenbaum

11 Junho
17.00 – Literatura em tempo de crisecom Almeida Faria, Ana Paula Tavares, Cíntia Moscovich, José Carlos de Vasconcelos, Teolinda GersãoModeração de Rui Lagartinho

18.30 – Escrever poesia, ficção, canções, teatro – para dizer o quê, a quem?com Aldina Duarte, Maria Lúcia Dal Farra, Jaime Rocha, Pedro MexiaModeração de Ana Sousa Dias 12 de Junho 16.30- A construção das musas e dos musoscom António Carlos Cortez, Hélia Correia, Miguel Manso, Raquel Nobre Guerra Moderação de Luís Ricardo Duarte

18.00 – O cânone literário na era da multiplicação dos prémioscom Cíntia Moscovich, José Eduardo Agualusa, Miguel Real, Vasco Medeiros RosaModeração de Luís Ricardo Duarte22.00 – Espectáculo “Verbo Pessoa” pelo Teatro Tapa-Furos

13 de Junho
16.00 – A literatura tem género e gerações?com Isabela Figueiredo, José Mário Silva, Mário de Carvalho, Tatiana Salem LevyModeração de Ana Sousa Dias

17.30 – Escritor, editor, tradutor : como convivem estes personagens numa só pessoa?com Francisco José Viegas, Jorge Reis-Sá, Margarida Vale de Gato, Maria do Rosário Pedreira, Richard Zenith Moderação de Rui Lagartinho

22.00 – * Espectáculo de Paulo Bragança (bilhete: 5 euros)